Áustria: um desastre para a democracia, o Estado de bem-estar social – e a esquerda
Sobre a vitória da extrema direita nas últimas eleições parlamentares na Áustria
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O partido de extrema direita austríaco, Freiheitliche Partei Österreichs (FPÖ, Partido da Liberdade Áustriaco, em tradução livre), liderado por Herbert Kickl, obteve 29% dos votos, segundo os resultados oficiais preliminares, sendo escolhido por 1,4 milhões de eleitores – quase o dobro em comparação com cinco anos atrás. Esse é o melhor resultado dos “Libertários” desde a fundação do partido em 1955; em 2019, foram 770.000 votos. De onde vieram os eleitores, em comparação com a última eleição para o Conselho Nacional (o parlamento da Áustria)? Seus eleitores são fiéis: 76% votaram novamente no FPÖ, 443.000 vieram do ÖVP, outro partido grande de direita, e 258.000 dos não eleitores.
O FPÖ foi principalmente escolhido por trabalhadores, empregados com formação profissional e sem diploma de ensino médio, pela faixa etária de 35 a 59 anos, e quase igualmente por mulheres e homens. Este último ponto é novo, pois anteriormente as mulheres tendiam a se afastar do partido. Entre idosos, aposentados e pessoas com diploma de ensino médio ou superior, o partido teve menos aceitação.
Os principais motivos de voto foram a insatisfação com a política de combate à Covid-19, o aumento do custo de vida, especialmente os preços da habitação e da energia, o deterioramento do sistema de saúde, a questão da migração/refugiados (que recentemente foi associada a ataques terroristas), além dos temas da guerra da Ucrânia e da neutralidade austríaca.
Sob Herbert Kickl, líder do partido desde junho de 2021, o FPÖ radicalizou-se significativamente, adotando publicamente teorias da conspiração (sobre a Covid), recomendando medicamentos veterinários para cavalos em vez de vacinas, exigindo a “remigração” de refugiados, propondo a criação de uma central de denúncias para professores politicamente engajados, cortando taxas para o serviço público de rádio, privando-o de financiamento, e citando Viktor Orbán, da Hungria, como grande modelo. O partido também desempenhou um papel crucial na reconfiguração das facções de extrema-direita no Parlamento Europeu, oferecendo a Orbán uma plataforma para suas ideias e uma bancada parlamentar.
Eles defendem uma política neoliberal rígida, disfarçada com slogans populares de redução de impostos, como “mais líquido do bruto”, o que prejudicaria o financiamento do sistema de bem-estar social. Assim como o partido AfD, o FPÖ se apresenta como o “partido da paz”, quer reduzir os preços da energia aumentando ainda mais as importações de gás da Rússia e adota uma postura muito compreensiva em relação à guerra de Putin na Ucrânia. Como muitos populistas de direita, desconsideram a proteção ambiental. Kickl se autodenomina “chanceler do povo” e quer manter refugiados “concentrados em campos” – uma referência provocativa ao vocabulário nazista. Os Identitários (movimento de extrema direita europeu) parecem já ter se estabelecido como o corpo ideológico do FPÖ, sendo caracterizados pelo líder do partido como uma “ONG desejável”.
O sucesso do FPÖ não se deve a habilidades especiais de seu líder, mas principalmente ao vácuo político e ao deslocamento à direita do conservador Österreichischen Volkspartei (ÖVP, Partido Popular Austríaco em tradução livre). O ÖVP tem governado desde dezembro de 2021 em uma coalizão com os Verdes, tendo o chanceler federal. O partido tem adotado cada vez mais temas e até mesmo termos da extrema-direita. Eles defendem que refugiados sejam mantidos em campos nas fronteiras externas da UE, atacam jovens ativistas climáticos e tentam criminalizá-los, enquanto se referem à Áustria como uma “terra dos automóveis”. Propostas de reformas neoliberais e maior vigilância eletrônica foram, até agora, bloqueadas pelo veto dos parceiros verdes da coalizão.
O ÖVP enfrenta graves acusações de corrupção e uma série de processos judiciais decorrentes do período de coalizão com o FPÖ sob o então chanceler Sebastian Kurz (2017-2019). O partido também perdeu mais de um quarto de seus eleitores devido à má gestão da pandemia e do aumento do custo de vida, ao enfraquecimento do bom sistema de saúde público, a dados econômicos ruins e políticas pouco convincentes – com mais de um quarto de seus eleitores migrando justamente para o FPÖ (e para a abstenção).
Na noite da eleição, o chanceler do ÖVP surpreendeu ao declarar que não pretende formar uma coalizão com o FPÖ de Herbert Kickl (algo amplamente esperado). Ainda não está claro se essa declaração foi sincera ou apenas uma manobra tática para forçar a social-democracia a fazer concessões, para então, de súbito, formar uma coalizão com o FPÖ (como fez o chanceler Schüssel de 2000 a 2006).
O Partido Social-Democrata, sob a nova liderança do reformista Andi Babler, que se apresentou com autoconfiança e combatividade, estagnou com o pior resultado eleitoral em décadas (21,1%) e não conseguiu capitalizar as perdas do ÖVP. Embora um terço dos eleitores dos Verdes tenha migrado para esse partido, esse ganho foi apenas suficiente para compensar as perdas de votos para os não-eleitores, mas não contribuiu para o fortalecimento do partido. Babler foi marginalizado pela mídia devido a suas propostas de reformas – que eram bastante moderadas – enquanto lutas internas dentro do partido e intrigas minaram o ímpeto da campanha.
Agrupamentos à esquerda da social-democracia não conseguiram superar a barreira dos 4%. O Kommunistische Partei Österreichs (KPÖ, Partido Comunista Austríaco em tradução livre) triplicou seu resultado, atingindo 2,4% (um aumento de 1,7%, quase 115.700 votos), mas não o suficiente para entrar no parlamento. Da mesma forma, falharam a Liste Gaza (0,4%) e o partido “Keine” (Nenhum) (Wandel; 0,6%).
Em 20 de setembro, uma semana antes da eleição, 13.000 pessoas protestaram em Viena – uma ação conjunta do movimento de greve climática com dezenas de iniciativas locais de toda a Áustria, sob o guarda-chuva de defesa da democracia. Comparado à manifestação do “Mar de Luzes” de janeiro de 1993, que contou com mais de 100.000 participantes, o número infelizmente é ainda muito baixo. No entanto, essa aliança é um embrião delicado, que pode marcar o início de um movimento de resistência contra o avanço da extrema direita, se conseguir desenvolver sua cooperação e incorporar temas sociais. Caso contrário, corre-se o risco de um enfraquecimento maciço do Estado de bem-estar social e das conquistas democráticas.
Por E.F., W.H. e P.S. (Viena/Tirol) | 30.09.2024