Gjader ou o que fazer com o que fizeram de nós
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Gjader ou o que fazer com o que fizeram de nós

O campo de Gjader, na Albânia, é cogitado para receber imigrantes expulsos da Itália pelo governo de Georgia Meloni

Israel Dutra 24 out 2024, 11:04

Foto: Sandor Csudai/Reprodução

A ministra de extrema direita Georgia Meloni firmou um convênio com a Albânia para a construção de campos de deportação para onde seriam enviados imigrantes que tentam entrar em solo italiano.
Enviados para o porto de Shengjin, os imigrantes passariam para triagem e depois seria mandados para o campo de Gjader, no interior rural da Albânia. O primeiro grupo, com 16 pessoas, sendo dois menores e duas pessoas em condições de saúde vulneráveis, no dia 17 de outubro. Esses últimos quatro, por serem menores ou pelas condições de saúde, retornaram à Itália.

Um tribunal de Roma, no dia seguinte, anulou a ordem do governo Meloni, resultando num importante revés para o governo.

A disputa judicial lançou luzes sobre o impasse acerca da política migratória. É lugar da esquerda, no mundo inteiro, tomar esse tema com centralidade, pois ele é a principal síntese da visão de mundo da extrema-direita.

A Europa-Fortaleza como projeto da extrema direita

A resiliência dos resultados eleitorais da extrema direita nos recentes processos – crescimento nas europeias, vitórias regionais na Alemanha, triunfo na Áustria – tem como efeito imediato o recrudescimento da agenda desse setor. O centro da agitação política, que se converte em medidas institucionais onde a extrema direita governa, é a expulsão dos imigrantes. A xenofobia anda de mãos dadas com o racismo para impor um discurso ideológico e cultural de “pureza europeia”.

A mais importante agenda, que lamentavelmente conta com apoio de setores que não são diretamente ligados à extrema direita e sim da direita tradicional e às vezes até setores social-democratas, é a construção de um projeto de “Europa-Fortaleza” diante da chegada de imigrantes.

Numa espiral de retroalimentação, crescem as migrações por motivos dramáticos: um maior número de refugiados climáticos, o aumento das guerras, das crises econômicas e da perseguição política.

Os efeitos são notados por diversas frentes. Tendo seus direitos cada vez mais desfigurados, os imigrantes sofrem, além da descriminação institucional e um ambiente hostil, com o pagamento de salários muito mais baixos. Quebrando sua resistência e despojando seus direitos, a força de trabalho imigrante fica ainda mais vulnerável para a precarização do trabalho, ofertada pelos patrões que se beneficiam da campanha de ataques políticos e ideológicos contra os imigrantes.

É importante notar o interesse que Ursula Von der Leyen, líder da Comissão Europeia, na experiência trágica do campo de Gjader. A dirigente do CDU alemão (partido de centro-direita que está em crise como boa parte das formações tradicionais da política alemã) flerta com as posições da extrema direita, como podemos ler no seguinte artigo de Esquerda.Net:

Numa carta escrita aos governos da União Europeia, Ursula von der Leyen deu mais um sinal da aproximação da próxima Comissão Europeia às posições da extrema-direita sobre a imigração, ao apelar a que tirem lições do acordo assinado entre a Itália e a Albânia. A carta também inclui elogios aos atuais acordos com a Tunísia para travar as saídas de migrantes rumo à Europa – muito criticados por financiarem violações dos direitos humanos e um regime cada vez mais autoritário – e também ao trabalho conjunto com as autoridades líbias, cuja guarda costeira também é acusada de violações dos direitos humanos e de agir como traficantes de seres humanos, por intercetar barcos no Mediterrâneo a mando da UE e levar os migrantes e refugiados para centros de detenção onde são cometidos atos de violência e tortura.

Rish Sunak e os conservadores britânicos, derrotados nas urnas recentemente, tinham como proposta central a deportação para o Sudão de milhares de imigrantes.

Linhas “vermelhas”

A linha institucional da extrema direita através dos campos de deportação tem como objetivo arrastar outros setores políticos – como o caso de Ursula, mas não apenas – para normalizar um verdadeiro “estado de guerra” contra os imigrantes.

O Ministério do Interior italiano confirma que quase 60 mil imigrantes buscaram entrar no país pelas águas do mar mediterrâneo. Os países de origem são, em sua maioria, Bangladesh, Síria, Tunísia, Egito e Guiné.

A normalização da guerra constante contra os imigrantes produz violentos efeitos na sociedade: além da xenofobia institucional, a desumanização do conjunto das nacionalidades e etnias fora do “padrão europeu”, tendo como desdobramentos o crescimento da islamofobia, os grupos de choque neofascistas contra os imigrantes nos bairros, ampliando o ambiente fértil para a extrema direita.

Diante do fenômeno e da pressão sobre setores de massas (eleitorais e políticos a resposta de alguns setores democráticos e da esquerda é “retroceder do inegociável”.

O governo dinamarquês, agora governado pela social-democracia, pressionado pelas direitas no parlamento, busca criar pontes para uma “deportação civilizada”.

No entanto, o mais grave exemplo, vem da esquerda alemã; o novo partido de Sara Wagenkhnecht, rompeu com o Die Linke, buscando se apresentar como mais capaz para capturar os setores atrasados da classe trabalhadora que estavam votando nos reacionários. Contudo, o que se demonstra até aqui é que seu partido começa a ser capturado pelas pautas da própria extrema direita. Atravessando a linha vermelha dos direitos humanos no caso da política migratória.

O relato do sociólogo francês Romaric Godin é assustador:

Antes de mais, há algo que chama a atenção. Tanto na campanha eleitoral como no manifesto do partido, o BSW insiste muito no seu conservadorismo “societal”. O partido retoma mesmo todas as obsessões dos partidos de direita europeus mais radicais.

É claro que isto também se aplica à imigração. Num folheto distribuído em Dresden antes de 1 de setembro, a BSW promete “parar as migrações descontroladas”. Embora o folheto prometa atuar “sem discriminação ou racismo”, não hesita, nas linhas seguintes, em sugerir que o “aumento da criminalidade estrangeira” deve ser tratado através da deportação imediata.

Sob a justificativa de “dialogar” com o eleitorado influenciado pela extrema direita, uma parte que provém da esquerda renúncia aos postulados mais básicos, num tema nada lateral. Isso contribui, na conjuntura imediata, para a normalização da “linha dura” e a confusão na vanguarda. O caminho é outro.

Da nossa parte, não devemos abandonar as linhas de princípio, humanas, políticas e civilizatórias, apoiando todas as campanhas e entidades que defendem a luta dos imigrantes.

“Nenhum ser humano é ilegal”

Retomar a bandeira que se popularizou na juventude de que “Nenhum ser humano é ilegal” é uma tarefa inadiável.

Tivemos “bons exemplos” nas últimas eleições europeias, inclusive na Itália. Foram eleitos dois importantes referentes na luta antifascista e em defesa dos imigrantes. Ilaria Salis, professora de 39 anos, foi presa na Hungria sob a acusação de violência contra neofascistas durante uma manifestação antifa no início de 2022. Mimmo Lucano, prefeito de Riace, ameaçado de prisão pelo governo de Matteo Salvini em 2019 por autorizar a chegada de um barco de migrantes no porto de sua pequena cidade, foi eleito para o Parlamento Europeu.

A Nova Frente Popular Francesa impulsionada por Melenchon construiu importantes alianças com imigrantes nos bairros da periferia, tendo consequências eleitorais importantes, dando exemplo que é possível ter êxito eleitoral sem rebaixar o programa em temas essenciais.

Não existe saída que não passe pela recomposição da classe e dos explorados como ela é: migrante, precarizada, feminina, racializada e diversa. Não se pode adiar para depois essa tarefa, sob o argumento eleitoral ou pragmático.

O futuro da humanidade está em jogo.


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