O identitarismo no espelho
Sobre a extrema direita e suas perspectivas de identidade
Imagem: Sono (Salvador Dalí)
Quando nos olhamos no espelho, a imagem que vemos está invertida. Nossa mão direita aparece à esquerda, e a esquerda à direita. O mesmo fenômeno óptico ocorre no discurso político da extrema direita contemporânea, que contamina parcela também da esquerda: ao apontar o dedo para seus adversários e acusá-los de “identitarismo”, não percebe que está, na verdade, descrevendo sua própria defesa dos privilégios de uma identidade única.
As eleições municipais e dos Estados Unidos trouxeram resultados negativos para a esquerda. A avaliação desses resultados trouxe várias análises que apontaram a defesa dos direitos LGBT, das mulheres e do enfrentamento ao racismo como causas que estariam alienando os eleitores da classe trabalhadora.
Como no espelho, onde a inversão nos parece natural até que alguém a aponte, o discurso anti-identitário, seja de esquerda ou da extrema direita, se tornou tão comum que poucos param para observar sua fundamental contradição: o identitarismo mais consistente e historicamente enraizado é justamente aquele praticado pela extrema direita branca e masculina.
A Construção Histórica da Identidade Dominante
Ao longo da história, a identidade do homem branco como grupo dominante não precisou ser explicitamente afirmada porque estava implícita em todas as estruturas de poder. As instituições políticas, econômicas e culturais foram moldadas para refletir e perpetuar essa hegemonia. O que vemos hoje como “neutralidade” ou “normalidade” é, na verdade, o resultado de séculos de construção identitária.
Quando grupos historicamente marginalizados começam a questionar essa hegemonia e reivindicar espaços de representação, observamos uma forte reação identitária da extrema direita. Esta reação se manifesta através de pânico moral sobre a “destruição da família tradicional”, narrativas de “proteção da civilização ocidental” e retórica sobre a “discriminação reversa” e a acusação de que estariam “dividindo a sociedade”.
Estes elementos revelam uma política fundamentalmente baseada na defesa de uma identidade específica – branca, masculina e heteronormativa – que se sente ameaçada pela pluralidade democrática.
A Falsa Equivalência
Existe uma diferença fundamental entre a luta por reconhecimento e direitos dos grupos marginalizados e o identitarismo da extrema direita. Enquanto os movimentos progressistas buscam a expansão de direitos e a inclusão social, o identitarismo da direita radical visa preservar exclusões históricas.
Os movimentos feministas, antirracistas e LGBTQIA+ não lutam pela supremacia de suas identidades, mas pelo reconhecimento de sua humanidade plena e pelo direito de existir em igualdade de condições. Em contraste, o projeto político da extrema direita é essencialmente identitário porque busca manter uma hierarquia social baseada em marcadores de identidade.
O Paradoxo da Acusação
Ao acusar movimentos progressistas de “identitarismo”, a extrema direita revela sua própria obsessão identitária. É precisamente porque sua visão de mundo é estruturada em torno da supremacia de uma identidade específica que ela projeta essa mesma lógica em seus adversários políticos.
A denúncia do “identitarismo” como característica dos movimentos progressistas é, portanto, uma inversão da realidade. O verdadeiro projeto identitário é aquele que busca preservar privilégios históricos através da exclusão e da hierarquização de identidades. A luta por igualdade e reconhecimento não é identitária – é universalista em sua essência, pois busca a realização plena dos ideais democráticos de igualdade e dignidade para todos.
Qual autocrítica fazer?
A compreensão desta dinâmica é fundamental para desmascarar as estratégias retóricas da extrema direita e reafirmar o caráter emancipatório das lutas por justiça social. O que está em jogo não é a supremacia de uma identidade sobre outras, mas a possibilidade de construirmos uma sociedade verdadeiramente democrática e plural. No entanto, parcela da esquerda se deixa seduzir por essa retórica, culpando a defesa dos direitos das minorias pelas derrotas da esquerda.
É um erro grave cair na armadilha de ter que escolher entre a defesa dos direitos das minorias e a mobilização da classe trabalhadora. A verdadeira força da esquerda sempre esteve em sua capacidade de articular as diferentes dimensões da opressão e da exploração em um projeto político comum.
A luta pelos direitos dos trabalhadores – por melhores salários, condições dignas de trabalho, segurança no emprego, acesso à saúde e educação – não compete com a defesa dos direitos das minorias. Pelo contrário, elas se fortalecem mutuamente.
O caminho para a conquista da classe trabalhadora passa pela demonstração prática de que a defesa dos direitos sociais e trabalhistas é inseparável da luta contra todas as formas de opressão. É preciso evidenciar que o mesmo sistema que explora o trabalho também se alimenta do racismo, do machismo e da LGBTfobia para dividir os trabalhadores e enfraquecer sua capacidade de organização e resistência.
Como um espelho que revela a verdade invertida, é hora não apenas de devolver a acusação de identitarismo a seus verdadeiros praticantes, mas também de reafirmar um projeto político que una as diferentes lutas por emancipação em torno de um horizonte comum de justiça social. A verdadeira escolha não é entre identidade e classe, mas entre um projeto de dominação que se baseia na divisão dos oprimidos e um projeto de libertação que reconhece na solidariedade entre todas as lutas sua maior força.