“Parte da esquerda tem calado sua voz diante dos ataques do capital”
Apesar do amplo manifesto contra a austeridade fiscal, parte do PSOL continua vacilando sobre os cortes planejados pelo governo federal
Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado
Via X
Há mais de um ano, junto a outros colegas, estou produzindo estudos técnicos, escrevendo artigos acadêmicos, organizando atividades e denunciando incansavelmente o pacote fiscal de perversidades antipopular que agora vem à tona — um pacote que ataca saúde, educação, direitos trabalhalhistas e as pessoas idosas e com deficiência em situação de extrema pobreza. Todos que acompanham a política de perto sabiam que esse pacote estava sendo elaborado no Ministério da Fazenda desde o primeiro semestre de 2023 e que seria apresentado logo após as eleições municipais.
Infelizmente, organizações, partidos e políticos de esquerda optaram por um conveniente silêncio para proteger os interesses do Ministro Haddad e da Faria Lima, impedindo a reação popular a tempo de barrar o pacote. Na prática, alinharam-se a um modelo neoliberal autoritário, que silencia o debate democrático e ignora os interesses populares, negociando às portas fechadas com a FEBRABAN e bloqueando até mesmo os poucos instrumentos de participação democrática no parlamento, como os debates e audiências em comissões.
Nem mesmo a direção do PSOL, meu próprio partido, ou um dos nomes mais conhecidos da legenda, o deputado federal Guilherme Boulos, se pronunciaram. Esse silêncio, neste momento, soa como cumplicidade — por isso, um posicionamento imediato é fundamental.
Alguns ex-ministros do PT, como José Temporão, da Saúde, e Roberto Amaral, de Ciência e Tecnologia, já assinaram o manifesto contra esse pacote de perversidades. O Ministro do Trabalho, um petista histórico, declarou que pediria demissão caso o pacote avançasse; o Ministro da Educação afirmou que não aceitaria tais medidas. E a direção do PSOL? Silenciosa. Até mesmo figuras como o camarada Valério Arcary, da Resistência, parecem ter evitado expor essa batalha à militância, mantendo-a distante do necessário enfrentamento.
Confesso que a atitude da parte do meu partido que controla a burocracia (mas perdeu a direção moral e ideológica ao se afastar dos anseios da militância) é uma das maiores decepções políticas que já experimentei. Com todas as divergências internas que tenho com essa ala, não esperava por essa omissão. Afinal, o que unia o PSOL era o compromisso de defender a classe trabalhadora e os mais pobres, nunca de atacá-los.
É igualmente revoltante ver editoriais e colunas na Folha de SP, Globo, Estadão, Valor Econômico e outros veículos do mercado financeiro apoiando o pacote, enquanto alguns ainda tentam justificar que “não podem se posicionar” sobre algo que “não existe,” mesmo com setores contrários aos interesses populares se manifestando há mais de um ano. Os representantes do grande capital estão declarando guerra abertamente há muitos meses, e os nossos?
Aliás, será que muitos dos principais intelectuais e especialistas em orçamento, saúde, educação, direitos sociais, macroeconomia e áreas afins, que assinaram o manifesto contra o pacote antipopular ao lado de mais de 20 mil militantes, acadêmicos, comunicadores populares e sindicalistas, estão realmente lutando contra algo que “não existe” e estariam descolados da realidade? Seria a ampla mobilização da Febraban e de seus veículos, com uma verdadeira e custosa guerra ideológica, realizada pela aprovação de um pacote que simplesmente não existe?
Ainda assim, mantenho uma convicção sólida no PSOL, pois sei que nosso partido tem uma história e uma militância que não se dobrarão a uma omissão deste tipo. Me enche de orgulho ver dezenas de parlamentares, como as deputadas e deputados federais Luiza Erundina, Sâmia Bomfim, Fernanda Melchionna, Glauber Braga, Tarcísio Motta e Chico Alencar, e a deputada estadual e fundadora do partido Luciana Genro, além de muitos militantes históricos do PSOL, já assinando o manifesto contra esse pacote, posicionando-se com firmeza.
Minha confiança na capacidade do partido de superar momentos difíceis se fortalece ao lembrar que a organização liderada por Guilherme Boulos no PSOL, apesar de muito poderosa na burocracia do partido, já foi derrotada pela militância e pelas demais forças do PSOL quando ousou defender o voto favorável no Novo Arcabouço Fiscal — justamente o instrumento que agora conduz aos ataques que enfrentamos. Digo tudo isso com a tranquilidade de quem é militante em um partido que tem como princípio jamais perseguir alguém por divergências públicas, pois elas fazem parte do processo democrático.
Para aqueles que dizem que “é preciso esperar o anúncio formal para se posicionar,” não há outra palavra: hipocrisia. Vamos aos fatos. Um pacote como esse é impopular até entre os parlamentares do centrão, que, afinal, ainda dependem de votos do povo. Atacar idosos em extrema pobreza, saúde e educação não é algo que passe despercebido pela sociedade e tem enorme custo eleitoral. Claro, sabemos que o Centrão tem seu preço e, se bem pago — talvez com emendas parlamentares—, é capaz de qualquer ataque ao povo. Por isso, Haddad e sua equipe primeiro negociam com o parlamento e setores do governo, contando com o forte apoio da FEBRABAN e da imprensa, antes de apresentar o pacote oficialmente na forma de PEC e/ou Projetos de Lei.
Na política parlamentar, não se queimam etapas em algo tão grande: primeiro garantem os votos dos parlamentares, depois apresentam formalmente as medidas. O Ministro Haddad e o governo federal chegaram ao ponto de negociar apoio ao candidato de Lira à presidência da Câmara em troca de suporte para esse pacote, que impacta diretamente conquistas históricas da classe trabalhadora, conforme amplamente divulgado na imprensa.
Se esse pacote virar PEC ou projetos de lei e for enviado ao Congresso Nacional, o apoio institucional já estará garantido, e qualquer resistência estará seriamente comprometida. Vamos trabalhar incansavelmente para que o pacote jamais chegue a tramitar como PEC ou Projeto de Lei. E tenho convicção de que vamos vencer. A não apresentação desse pacote não será prova de que ele “não existia,” mas, sim, de que a classe trabalhadora o derrotou.
É uma conclusão amarga, mas precisa ser dita: parte da esquerda tem calado sua voz diante dos ataques do capital, esperando receber em troca o respaldo dos aparelhos ideológicos das classes dominantes numa tática puramente eleitoreira. Nessa troca, abdica de sua capacidade de influenciar e, pior, acaba desmobilizando e desarmando a classe trabalhadora diante dos ataques que sabemos que virão. Desarmar a classe trabalhadora para que ela seja atingida sem defesa na guerra contra o capital é uma omissão inaceitável. Eu gostaria de não precisar escrever isto, mas, neste momento, não me resta outra opção.