O pacto democrático, as incertezas e reviravoltas
A extrema direita está acuada, e a esquerda, burocratizada, enquanto as massas estão ausentes da situação política
Foto: Lula e Moraes (NT/Reprodução)
A tentativa golpista no Brasil, cuja data pode ser marcada pelo 8 de janeiro (ainda que os que comandaram a empreitada pareçam já ter vacilado antes disso em seus propósitos), foi muito mais longe nos crimes contra a ordem pública, a constituição e o regime democrático dominado pela burguesia do que a tentativa de golpe nos EUA. Lá, a parte mais pesada foi a baderna de 6 de janeiro, a invasão do Capitólio e, anteriormente, as tentativas de Trump de convencer governadores a questionar o resultado eleitoral e declará-lo fraudado. Nos tristes trópicos, a ação planejada foi mais longe, incluindo assassinato do presidente eleito, do vice e do presidente do Tribunal Superior Eleitoral. O mais violento ocorreria em dezembro. Antes da baderna de janeiro, o plano era impedir a posse. A baderna já foi a irracionalidade exposta em rede nacional. A turba tinha perdido sua direção, com os generais golpistas fracassando na tentativa de ganhar a maioria do alto comando e provavelmente com o ainda então presidente Bolsonaro se assustando diante da dinâmica que suas propagandas e decisões haviam desencadeado, dividindo-se entre ir adiante ou recuar, desorganizando mais o grupo golpista. Mas, sem dúvida, a ação criminal aqui foi mais pesada do que no império do norte. A reação das forças democráticas burguesas também.
Como se sabe, apesar de tudo, Trump não foi declarado inelegível e, apesar de muitos processos judiciais e condenações por fraudes financeiras, não foi preso. E mesmo que estivesse preso, a legislação dos EUA garante o direito à eleição ao candidato preso. Trump finalmente concorreu e ganhou. Bolsonaro está inelegível e absolutamente nada indica que essa situação mudará. Ao contrário. A possibilidade de sua prisão foi posta na ordem do dia. A prisão de Braga Netto, seu vice, e de vários oficiais das Forças Armadas, mostra que a reação do Judiciário e a investigação policial foram longe no Brasil. A prisão de Braga Netto mostra como tem sido bem decidido o judiciário brasileiro em enfrentar o crime e a estratégia contrarrevolucionaria do bolsonarismo. Isso por si só é algo marcante na situação política e não pode deixar de revelar uma disposição de defesa do regime democrático burguês levado adiante por um setor importante da burguesia, com influência determinante no mundo jurídico. Se o partido político desse setor tivesse um nome, diria que o principal seria Rede Globo. Mas para ter esse poder não deve ter apenas esse nome. Afinal, a guilhotina judicial atingiu pela primeira vez vários altos oficiais e um general. É certo que nunca os generais tiveram tanto peso num governo civil desde a queda da ditadura quanto no governo Bolsonaro, mas é certo também que a punição atual foi mais forte do que na época da transição (no fim da ditadura não teve punição alguma, exceto a perda de protagonismo).
Nunca se pode confiar na disposição democrática da burguesia brasileira nem de nenhum dos seus setores. A adesão de parcelas importantes ao bolsonarismo, sem sequer o país estar diante da possibilidade de uma revolução social que exigisse uma linha de contrarrevolução preventiva, prova isso uma uma vez mais. De toda forma, tem sido notória uma reação democrática mais forte no Brasil do que nos próprios EUA. A aliança de uma parcela da burguesia com o PT, particularmente com Lula e a superestrutura do Judiciário, foi muito sólida. Ao preço de sequer ensaiar qualquer ruptura no modelo econômico, Lula foi o líder público escolhido para que a liderança de extrema direita não assumisse as rédeas do país. Marcar a importância desse pacto democrático é fundamental porque é o argumento do acerto em apoiar Lula nas eleições de 2022 e da nova relação que a esquerda socialista teve de estabelecer com o PT depois da ascensão do bolsonarismo, e ainda deve pautar os movimentos táticos e até o horizonte estratégico do movimento dos trabalhadores, se compreendemos que o enfraquecimento da extrema direita é uma necessidade que vai além da conjuntura. O PT, e em particular Lula, é o carro político do pacto democrático contra a extrema direita.
Até onde a disposição democrática de parcelas da burguesia seguirá é difícil de saber. Mas parece certo que Bolsonaro não poderá ser candidato. É certo também que Lula não irá romper o pacto na parte econômica. A burguesia brasileira até quer um projeto Milei. Mas sabe também que o país parte de uma miséria e de uma violência urbana tão profundas que dá preferência para um projeto neoliberal com alguma política de conciliação de classes, disfarçando e amenizando a estratégia, tentando manter um pouco (um pouquinho mais) de cobertura social. Nesse ponto, nesse projeto, Lula ainda é o melhor.
Porém, a saúde de Lula agora novamente colocou na pauta uma dúvida geral. Entre Lula e Tarcísio, o setor anti-Bolsonaro da burguesia até poderia se inclinar mais por Tarcísio. E sem Lula, ele seria o candidato ideal para a classe dominante. Exceto por um detalhe: os votos. Como a burguesia não pode simplesmente colocá-lo na presidência, também as incertezas afetam a classe dominante. Tarcísio mesmo sabe que os votos não são seu forte e, por isso, também mantém sua relação de proximidade com Bolsonaro. Bolsonaro não desistindo de disputar de alguma forma, mesmo que via o lançamento de seu filho, pode colocar Tarcísio para escanteio. O governador de SP, nesse caso, disputará a reeleição. O PT sem Lula ficará numa situação complicada. E sem Lula, o pacto democrático, o maior mérito político do atual mandato de Lula, cujo símbolo foi Alckmin de vice e a marca maior, o dinamismo, competência e coragem do ministro Alexandre de Moraes, não terá um nome forte. Por isso, a saúde de Lula passou a ser um fator político decisivo. Além do mais, sempre pode surgir um Pablo Marçal. Assim, a instabilidade e as incertezas seguem as principais características da política nacional. É uma marca que nos acompanha desde 2013. Por isso, erram tanto os que carimbam o cenário como de ofensiva permanente da extrema direita ou do fascismo. A extrema direita cresceu muito e ganhou peso de massas. Sua força pressiona ainda mais pelo ajuste neoliberal. Mas o velho Marx quando dizia que “tudo que é sólido se desmancha no ar” não falava em vão. Quem imaginou que Lula teria sido preso? Quem imaginava que Bolsonaro seria presidente? Quem imaginava que Lula voltaria à presidência, e o vice de Bolsonaro seria preso e Bolsonaro ficaria inelegível? Enfim, há muitas reviravoltas. Agora a extrema direita está na defensiva. Pelo menos seu núcleo duro ao redor de Bolsonaro.
Acuados, nem manifestações contra as “injustas” prisões ousam chamar. As forças da esquerda, embora pudessem avançar em pautas como a luta contra a escala 6 por 1, e mesmo na exigência de prisão para Bolsonaro, também não têm iniciativas. Não está acuada, mas simplesmente acomodada, esperando a direção de Lula, administrando o Estado, os mandatos parlamentares e esperando/preparando as próximas eleições. Com o governo Lula reivindicado pela maior parte da chamada esquerda aplicando o ajuste neoliberal e a esquerda radical muito fraca, a possibilidade de aumentar o hiato, a separação entre as massas e a identidade de esquerda fica mais presente. Com isso, ganha a extrema direita.
Por ora, entretanto, a extrema direita está acuada, e a esquerda, burocratizada, enquanto as massas estão ausentes da situação política. Se manifestaram nas eleições. Foi uma manifestação passiva. Uma eleição apática. Não cabe aqui repetir nossa avaliação. Apenas não deixar de esquecer do número recorde de abstenções. Quem vir nisso apenas despolitização, vê apenas o óbvio aparente. Será preciso analisar o que está latente, ir sentindo o pulso do movimento de massas e se colar nele. Esse é um desafio estratégico. Afinal, foram ações de multidões que inauguraram esse difícil momento histórico que vivemos, e o espírito do tempo está sendo moldado, e forças antagônicas estão se movimentando, ganhando ou perdendo terreno conforme as diversas conjunturas.
Tempos de viradas. Nem mesmo o fantasma das multidões de junho de 2013 ou de março de 2015 podem ser descartados no próximo período histórico. Por enquanto, é o grande ausente. Não é a tendência mais provável antes de 2026. E os espíritos do tempo se revelam diferentes conforme o corpo dessas multidões. Essa disputa é fundamental, ainda que sigamos num pensamento com peso na leitura da história dos que querem igualar junho de 2013 e março de 2015 por medo de quaisquer multidões ou por não querer que a política seja feita pelas massas em luta, ou simplesmente porque são contra as ações de massas se não se enquadram em seus esquemas programáticos e não são capazes de controlá-las. Na história recente do Brasil, tivemos junho de 2013, revelando um espírito crítico, revolta genérica e contradições com os ajustes econômicos neoliberais e os privilégios, germens de revolução. Março de 2015 foi a reação contra o espírito de junho, gestado no final de junho, na operação desmonte de junho (que envolveu não apenas a repressão mas também a massificação das pautas e a convocação do interior pela televisão).
Em março, irrompeu o espírito do preconceito e da contrarrevoluçao. Embora ainda as ideias da reação estejam mais organizadas e conseguiram peso de massas como nunca antes nos últimos 50 anos, essas duas forças seguem latentes.
O desafio de uma esquerda coerente é organizar os de baixo pelas propostas dos trabalhadores e dos setores oprimidos, com independência política, sem deixar de valorizar a importância do pacto democrático que foi construído, cujo papel de Lula foi fundamental, para barrar a ascensão da extrema direita ao poder governamental. No terreno da política de alianças, isso quer dizer valorizar as possibilidades de unidade com o petismo, por exemplo, e mais ainda a busca da unidade de ação. Mas também a necessidade de não se calar diante dos ataques levados adiante pelo governo, defendendo os direitos do povo e mobilizando sempre que possível. Insistindo na necessidade da luta e da organização independente. E não queimar a possibilidade de concretizar essa independência nas batalhas eleitorais, sobretudo quando há dois turnos. E pelo menos nos estados, ainda que a definição tática deva ser tomada levando em conta o momento da disputa. A questão é não perder de vista essa dupla tarefa: unidade e independência. Independência pode significar também enfrentamento, como no caso da luta contra o pacote fiscal.
Unidade deve também significar exigências, como o chamado para que as centrais e os partidos que se reivindicam de esquerda façam de fato uma campanha contra a jornada 6 por 1 e pela prisão de Bolsonaro, o que não foi feito. Basta que se veja a fraqueza do último ato chamado pelas frentes do Brasil Popular e Povo sem Medo. Foram a expressão da desmobilização. Então, a unidade e a independência requerem exigências e enfrentamentos, não apenas a solidariedade e o apoio diante dos ataques da extrema direita. É uma relação que combina solidariedade e tensão. Se não for assim, e um partido como o PSOL se limitar a ser uma voz subordinada ao maior partido do campo da chamada esquerda, o PT, então sua utilidade histórica estará em questão. Para construir o pacto democrático e estabelecer uma política defensiva mínima já basta o PT. Para que o espaço e o tempo ganhos realmente sirvam para uma acumulação de forças na base será preciso mais do que ser linha auxiliar petista. Será preciso um partido de combate. Isso que ainda não temos. Mas só assim poderemos ter conexão e capacidade de liderança ou influência nas lutas e revoltas que virão.