O RS do desmonte ambiental à tragédia: sete meses depois, nada mudou
Enchente em Porto Alegre

O RS do desmonte ambiental à tragédia: sete meses depois, nada mudou

Infelizmente, sete meses depois das enchentes de maio, a história se repete

Luciana Genro 4 dez 2024, 10:56

Foto: Gustavo Mansur/Palácio Piratini

A crise climática que devastou o Rio Grande do Sul em 2024 foi precedida por um desmonte do sistema de fiscalização e proteção ambiental, que afrouxou legislações, cooptou órgãos reguladores, extinguiu estruturas públicas, transferiu responsabilidades à iniciativa privada e asfixiou o corpo técnico do serviço público. Essa política antiambiental, feita sob medida para atender aos interesses do agronegócio e das monoculturas de soja e eucalipto dominantes no estado, segue inalterada sete meses após a tragédia.

As consequências desse modelo econômico resultam na destruição do Pampa, bioma sul-americano que, no Brasil, existe apenas no RS e cuja biodiversidade vem sendo esmagada pelo avanço das monoculturas. Um estudo do Mapbiomas revela que, entre 1985 e 2022, o Pampa brasileiro perdeu 2,9 milhões de hectares de sua vegetação (32% da área existente).

É importante lançar luzes sobre os retrocessos ambientais do último período para compreender como as enchentes de 2024 atingiram um estado sem capacidade de prevenção e reação. Já em 2015, ao assumir o governo, José Ivo Sartori (MDB) pôs em prática um projeto de desmonte do estado, extinguindo diversos órgãos públicos, como a Fundação Zoobotânica (FZB), que tinha, entre suas responsabilidades, a publicação da lista de espécies ameaçadas de extinção no RS – estudo que foi feito pela última vez em 2014 e, desde então, há dez anos o estado vive um apagão na área.

A Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Sema), criada há 25 anos, foi fundida com a pasta da Infraestrutura no início do governo Leite. Mas sua desestruturação vai muito além da fusão. Faltam servidores, há omissão no cumprimento de funções – como as validações do Cadastro Ambiental Rural (CAR) – e sufocamento da área técnica. Responsável por gerir as 23 unidades de conservação ambiental, a Sema possui apenas 51 guardas-parque, fazendo com que cada um seja responsável por mais de 5 mil hectares de área.

Vinculado à Sema, o Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema) foi cooptado, com a representação destinada ao corpo técnico da Secretaria apropriada por CCs do governo. Com 32 assentos, o órgão possui maioria de conselheiros indicados pelo governo e por corporações empresariais ou ligadas ao agronegócio. O biólogo Paulo Brack, 1º suplente de vereador pelo PSOL em Porto Alegre, atua há quase 20 anos no Consema e já viu diversas medidas contrárias à preservação ambiental passarem pelo órgão. Em 2019, ele solicitou que o Conselho discutisse as 480 alterações no Código Estadual do Meio Ambiente que o governo estava propondo, mas a maioria do grupo, pasmem, disse que não era assunto para o órgão.

Essas mudanças, que devastaram o Código Estadual de Meio Ambiente (CEMA), foram aprovadas em regime de urgência pela Assembleia Legislativa. Os professores Gonçalo Ferraz e Fernando Becker, do Instituto de Biociências da UFRGS, realizaram um detalhado estudo de todas as mudanças e concluíram que: “As mudanças no novo Código Estadual do Meio Ambiente parecem seguir três princípios: eliminar, enfraquecer, subverter. (…) Desapareceram todos os artigos sobre áreas de uso especial, que não sendo unidades de conservação precisam ser definidas e protegidas. Desaparecem as diretrizes técnicas para elaboração de estudos e relatórios de impacto ambiental, assim como as ferramentas e mecanismos de controle da qualidade do ar”. Uma das principais alterações impostas pelo governo foi a criação da Licença Ambiental por Compromisso (LAC), em que empreendimentos são aprovados de forma expressa e somente depois são fiscalizados.

Em junho de 2021, o governo Leite aprovou um projeto de lei que liberou o uso de agrotóxicos proibidos nos países em que são fabricados, com o objetivo de transformar o RS na lata de lixo dos produtos que são banidos na Europa e EUA, onde são produzidos. Um mês depois, outro ataque foi aprovado: uma PEC autorizando a concessão das unidades de conservação ambiental à iniciativa privada. No primeiro turno, o meu voto foi o único contrário entre todos os deputados. Três anos depois, algumas dessas unidades já foram concedidas, sem respeito a seus planos de manejo, nem escuta aos técnicos da Sema.

Após a tragédia das enchentes, as bancadas de oposição na Assembleia Legislativa apresentaram um conjunto de projetos para revogar os retrocessos ambientais do último período. O “revogaço” propõe a volta da FZB, o fim da liberação de agrotóxicos proibidos em seus países de origem, a anulação do desmonte do Código Estadual do Meio Ambiente e a proibição de barragens e açudes em APPs. Os projetos criam um Plano Estadual de Mudanças Climáticas, o Instituto das Águas do RS e declaram o Pampa como Patrimônio Natural Estadual. A bancada do PSOL, composta por mim e pelo deputado Matheus Gomes, está na linha de frente desta luta. Além disso, também apresentei a PEC da Resiliência Climática, que prevê a aplicação de 1% da receita líquida do estado em prevenção a desastres ambientais.

Infelizmente, sete meses depois das enchentes de maio, a história se repete e praticamente nada mudou. No início de dezembro de 2024, um novo temporal voltou a alagar diversas regiões de Porto Alegre e mais de 60 municípios foram impactados, com mais de 400 mil pessoas sem luz. Um mês antes, a Assembleia Legislativa aprovou o orçamento para 2025 – com nosso voto contrário – com recursos insuficientes diante dos desafios da crise climática. Mais do que um debate sobre cifras, é a compreensão política que precisa mudar no sentido de se entender que vivemos uma emergência climática permanente, fruto de um sistema capitalista que busca a expansão de suas atividades e o lucro a qualquer custo, arrastando em seu processo de reprodução a devastação do meio ambiente não como consequência, mas como necessidade para sua existência. Políticos vestindo o colete laranja da Defesa Civil nos momentos de desastres naturais, como fazem Leite e Melo, acabam sendo a encenação teatral da gestão de uma crise cujas raízes eles ajudam a cultivar.

Texto originalmente publicado no SUL21


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