Comunicação é importante, mas não resolve tudo. Os erros do governo Lula e a polêmica do PIX
O governo Lula acumula mais uma derrota na batalha contra a extrema direita na polêmica do PIX
Essa semana, o governo Lula acumulou mais uma derrota na batalha contra a extrema direita. Em setembro do ano passado, a Receita Federal publicou uma normativa (1) que ampliava a fiscalização de movimentações financeiras, entre elas, o PIX. Embora publicada em setembro de 2024, a medida passou a vigorar apenas no dia 01 de janeiro de 2025.
Não demorou muito para que a extrema direita criasse um caos em torno disso, disseminando a falsa notícia de que o governo federal não buscava apenas fiscalizar, mas sim taxar o PIX. A “gota d’água” aconteceu na última terça-feira (14.01), quando o bolsonarista Nikolas Ferreira fez um vídeo no Instagram criticando a medida, alcançando milhões de visualizações (no momento em que este texto foi feito, a publicação já ultrapassava a marca de 310 milhões) . “O pix não será taxado, mas não duvido que possa ser”, disse ele.
A jogada ensaiada de Nikolas foi parte de um plano muito bem calculado, com articulação direta entre Valdemar da Costa Neto (presidente do PL) e Duda Lima (marketeiro de Bolsonaro, que também coordenou a campanha de Ricardo de Nunes em São Paulo) (2). E, se por um lado se vale de ilações e insinuações mentirosas, por outro explora de maneira cínica um sentimento legítimo e verdadeiro: haveria aumento de arrecadação que recairia contra quem não deveria. É uma peça bem produzida para redes sociais, que provavelmente conta com a benevolência dos donos das big techs, que agora mais do que nunca se empenham em catapultar nomes da extrema direita. Mas não são apenas esses elementos, ao nosso ver, que explicam o êxito bolsonarista no assunto mais comentado da semana.
Dizemos isso porque, embora o vídeo de Nikolas Ferreira fosse repleto de mentiras – a começar pelo fato de dizer que a fiscalização começaria neste governo – ele também continha verdades, e esse é um dos motivos pelos quais teve tamanho alcance nas redes sociais. De fato, é necessário se perguntar como vivem aqueles que recebem apenas um salário mínimo por mês. Como vivem aqueles que se desdobram para realizar entregas por aplicativo para ganhar o suficiente para sobreviver. É justo e importante que essas pessoas não naturalizem que políticos – sejam de direita ou de esquerda – gastem milhões de dinheiro público nos cartões corporativos. Que o Congresso movimente tanto dinheiro através do Orçamento Secreto e não se saiba para onde vai o montante. Também é justo que se indignem por terem que pagar tantos impostos e terem serviços públicos de saúde e educação tão sucateados.
No dia seguinte à publicação do vídeo, o governo federal revogou a medida. Esse caso foi um triste exemplo de como o governo Lula tem errado em sua política de comunicação e como erra, principalmente, nas prioridades e empenho político no que diz respeito aos temas econômicos e fiscais.
A ideia de fiscalizar movimentações financeiras não é simples de se compreender: mesmo nós, que estudamos e debatemos política diariamente, tivemos que pesquisar muito para finalmente entender do que se tratava. Desde 2002, um decreto de Fernando Henrique Cardoso (3) prevê que movimentações financeiras acima de R$5 mil (no caso de pessoas físicas) e R$10 mil (no caso de pessoas jurídicas) devem ser reportadas à Receita. A mudança tentada pelo governo Lula, ampliava a fiscalização e a obtenção de dados – com ela, não apenas os bancos tradicionais teriam que prestar informações à Receita, como também instituições de pagamento, como o PagSeguro, por exemplo (4).
Mas as dificuldades do governo em explicar essa mudança não se dão apenas por uma suposta inabilidade com as redes sociais. Demonstra, isso sim, que há neste governo não apenas uma falta de comunicação, mas sobretudo a falta de uma política capaz de combater a extrema direita brasileira e concretizar medidas que respondam aos anseios mais básicos da população. Se concretizada, a medida ampliaria o cerco contra os pequenos que não declaram parte dos rendimentos para pagarem menos tributos: ambulantes, motoristas de Uber, autônomos de maneira geral, MEI’s que recebiam rendimentos em contas digitais.
As novas regras (agora revogadas) davam conta de operações via Pix, TED, DOC, saques, depósitos e transações com cartões de crédito, débito e moedas eletrônicas abarcando operadoras de cartão de crédito, bancos digitais e instituições financeiras. Essas movimentações antes estavam parcialmente fora do alcance direto da Receita e seriam agora monitoradas de forma mais rigorosa. Não se tratava de uma taxação direta, mas é evidente que tinha como objetivo coibir a sonegação e garantir maior arrecadação de impostos. Com uma régua para pessoas físicas com renda acima de R$5 mil, ao contrário do que boa parte da narrativa governista apontou, o impacto seria imediato para pequenos contribuintes.
O centro do debate, então, seria justiça tributária: a mudança anunciada em tese buscava identificar inconsistências entre as movimentações financeiras e as declarações de imposto de renda. Mas essa deveria mesmo ser a prioridade do governo no âmbito fiscal? Se é para começar a combater grandes sonegadores, por que não priorizar a taxação das grandes fortunas, lucros e dividendos? Se é para fazer justiça ou aumentar a arrecadação, por que não começar revogando as isenções fiscais astronômicas, incluindo as que contemplam setores com ligação política e financeira direta com a extrema-direita, como o agronegócio? Por que a prioridade é coibir a sonegação de pequenos contribuintes, ao invés de cobrar os bilhões de reais que grandes empresas, como a Vale e a Ambev, devem em impostos ao governo (5)?
Esses questionamentos são fundamentais, não apenas para compreender os múltiplos fatores que levaram à derrota do governo, articulada pela extrema direita, mas também para identificar os caminhos mais eficazes para enfrentá-la. A ausência de uma política consistente de justiça fiscal contribui para a frustração da classe trabalhadora, abrindo espaço para que o bolsonarismo dialogue com esse descontentamento. Esse cenário explica, em grande parte, a repercussão do vídeo de Nikolas Ferreira. Atuando como porta-voz da extrema direita, o deputado aproveitou as vacilações do governo para apresentar o programa político de seu campo como solução para as dificuldades enfrentadas pela população: Estado mínimo e fim dos impostos. Um contrassenso para as necessidades do Brasil e seu povo.
A esquerda deveria ser o setor que vocaliza a indignação que nasce dessa frustração, tão importante e justa, sobretudo no momento em que vivemos. Já há certo consenso, entre estudiosos e movimentos sociais, de que o sistema capitalista passa por uma crise mundial. As condições de vida das pessoas estão piorando, de modo que a burguesia vem buscando explorar a classe trabalhadora com ainda mais afinco. O fenômeno da “uberização” do trabalho é um exemplo disso: pessoas sendo largamente exploradas, tendo que trabalhar mais de 12 horas por dia, enquanto os aplicativos enriquecem. A legalização das apostas online no Brasil também é mais um sintoma dessa crise social: a barbárie é tanta que as pessoas depositam a esperança em formas “fáceis” de conseguir mais dinheiro, ludibriadas por propagandas falsas e influenciadores picaretas (6).
Diante de uma realidade tão difícil, a esquerda deveria ter um programa para enfrentar a crise e defender o povo trabalhador. Mas não é esse o programa do petismo: o governo Lula não revogou nenhuma das medidas que prometeu revogar na campanha – nem a reforma trabalhista, nem a reforma do ensino médio, tampouco o teto de gastos instituído por Temer. Em seu governo, Lula propôs um projeto de lei que legalizava o trabalho de mais de 12 horas (7), uma medida inconstitucional. Não só isso, aprovou um novo teto de gastos – o arcabouço fiscal – que vem buscando cortar gastos dos trabalhadores, como a tentativa de cortes no BPC e a diminuição nos investimentos em saúde e educação. Já a ampliação da faixa de isenção do imposto de renda, ficou pra depois. Também está tangenciada por parte do governo uma luta que formou maioria social desde baixo, encurralou a direita tradicional e a extrema direita: a diminuição da escala de trabalho. As declarações do próprio Ministro do Trabalho foram de dar inveja a CEO’s de grandes empresas. Na ordem do dia do que diz respeito às políticas econômicas, o que Haddad, Tebet e Dweck vocalizam é sempre austeridade para o povo, na obsessão de garantir o tal superávit.
Apesar de ter vocalizado indignações reais da população, sabemos que o projeto de políticos como Nikolas Ferreira é um projeto da barbárie. Nikolas é um defensor do “estado mínimo” para os pobres e “máximo” para os ricos. Não à toa, recentemente foi uma das vozes que também se colocou contra a redução da escala 6×1, aliás, não faz muito tempo e quem declarou o intento de taxar o PIX foi Paulo Guedes, um dos heróis de Nikolas (8). Pois seu compromisso é com o grande empresariado, não com a maioria da população. Desmascarar isso é uma prioridade, mas que precisa vir acompanhada do impedimento a elementos da realidade que o habilitem a cumprir esse papel cínico de defensor do povo pobre e trabalhador.
Lula anunciou modificações na política de comunicação, incluindo a troca do Secretário de Comunicação Social da presidência e sua equipe, mudança necessária em tema que também vinha patinando. Essas modificações acontecem num tempo crucial para dois importantes debates do nosso tempo: em primeiro lugar, a batalha pela regulamentação das redes sociais. Em segundo, por uma comunicação política que alcance as pessoas, mobilize, engaje, informe, seja pedagógica e interativa. Para este último, não há Sidônio Palmeira, grandes técnicas de marketing, investimento ou equipes renovadas e joviais que possam resolver problemas de ordem política. E é principalmente aí que as coisas precisam mudar.
- Instrução Normativa n. 2219/2024. Disponível em http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=140539 acesso em 17.01.2025.
- “Vídeo de Nikolas Ferreira fez parte de ação coordenada de marketeiro de Bolsonaro sobre PIX”. Disponível em https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2025/01/16/video-de-nikolas-fez-parte-de-acao-coordenada-de-marqueteiro-de-bolsonaro-sobre-pix.ghtml acesso em 17.01.2025.
- Decreto n. 4.489/2002. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4489.htm acesso em 17.01.2025
- “PIX acima de R$5 mil: entenda o que muda com as novas regras impostas pela Receita”. Disponível em https://www.jota.info/tributos/pix-acima-de-r-5-mil-entenda-o-que-muda-com-as-novas-regras-impostas-pela-receita acesso em 17.01.2025.
- “Ambev, Vivo, Pão de Açúcar: conheça os 10 maiores devedores dos Estados brasileiros, segundo a Fenafisco” Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59004660 acesso em 17.01.2025
- Rita Von Hunty: “apostas, erosão social e o jogo do tigrinho” Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=gBbCAVyC990&t=1191s acesso em 17.01.2025
- Trata-se do projeto de lei (PL) dos apps, proposto pelo governo Lula em março de 2024. Em seu art. 3º, §2º, o projeto legaliza o trabalho superior a 12 horas diárias. O PL está disponível em https://static.poder360.com.br/2024/03/projeto-de-lei-complementar-regulamentacao-motoristas.pdf
- Ex-ministro da Economia de Bolsonaro afirmou em 2019 que o Brasil precisava “tributar transações digitais” e sugeriu imposto similar à CPMF.https://www.poder360.com.br/poder-economia/internautas-resgatam-falas-de-paulo-guedes-a-favor-de-taxacao-do-pix/