Neoliberais são os outros? Desmistificando o estereótipo do “Uber de extrema direita”
Sobre as falácias e caricaturas das posições políticas dos trabalhadores de aplicativos que se mobilizam por salários e melhores condições de trabalho
Foto: Mobilização de motoristas de aplicativos em Brasília. (Agência Brasil/Reprodução)
Via Passa Palavra
Este texto foi escrito em 2024 no contexto das mobilizações dos motoristas de aplicativos contra a tentativa de regulamentação do trabalho por plataforma no Brasil.
Este texto trata sobre como tem repercutido publicamente, no Brasil, o debate sobre a regulamentação do trabalho por plataformas digitais. A construção de um estereótipo dos trabalhadores do ramo de transporte por aplicativos, segundo a qual estes seriam majoritariamente alinhados à extrema direita, tem sido constantemente mobilizada em meio à polarização social como artifício para a interdição do debate crítico às políticas implementadas pelo atual e terceiro governo Lula. Assim, pretendo contribuir de maneira introdutória com três debates de ordem global, a partir do caso brasileiro: a regulamentação do trabalho plataformizado; os conflitos laborais inescapáveis ao neoliberalismo progressista e a subjetividade emergente da classe trabalhadora, em sua nova morfologia.
Antes de entrar no debate sobre a regulamentação propriamente dita é importante uma delimitação sobre como caracterizar estas plataformas digitais. Falo aqui em “empresa-aplicativo” não por um acaso. Um mecanismo central que permite com que a economia digital se apresente como ideal para legitimar mais amplamente o capitalismo contemporâneo é justamente a ideia de que as tecnologias digitais são “naturais, neutras e iguais para todos”1. O ponto de partida, então, é tomar estas plataformas como empresas-aplicativo, atores dentro do modo capitalista de produção2. Estas empresas capitalistas têm se expandido em todo o mundo para diversos ramos da economia, inaugurando um novo modelo de administração e controle dos processos produtivos e da força de trabalho.
Não à toa, diversos países têm discutido a regulação do trabalho via plataformas digitais. Assim, muitas das atuais disputas político-judiciais envolvendo as empresas-aplicativo partiram do reconhecimento do vínculo laboral e aplicação da legislação trabalhista aos motoristas e entregadores que trabalham por meio de plataformas digitais, como ocorreu no estado da Califórnia, e também no Chile, Espanha, França, Holanda, Itália, Reino Unido e Uruguai3. Contraditoriamente, o Brasil encontra-se na contramão, expressando os limites do neoliberalismo progressivo e sua incapacidade de atender às reivindicações por direitos trabalhistas e proteção social frente às chantagens do mercado. Ao fim e ao cabo, como buscarei demonstrar a seguir, muitos elementos da narrativa das empresa-aplicativo têm sido assimilados por setores que se reivindicam como parte do “progressismo” no Brasil, responsabilizando os trabalhadores por supostamente aderirem à uma subjetividade neoliberal.
Sobre a proposta de lei que visa regulamentar o trabalho mediado por plataformas digitais no Brasil
A votação da proposta de lei complementar que regulamenta o trabalho de motoristas por plataforma no Brasil, o chamado “PL da Uber”, estava indicada para a semana de 12 de junho. A apresentação do substitutivo do PLP 12/2024 ocorre após enorme rejeição da categoria ao projeto em março deste ano, forçando o recuo da votação em regime de urgência por parte do governo federal. O texto foi enviado para a Comissão de Indústria, Comércio e Serviços da Câmara dos Deputados em junho e segue pendente de aprovação, para posterior votação, apesar de a expectativa anunciada em março pelo presidente Lula fosse a de uma aprovação o mais rápido possível4.
Muitos intelectuais, ativistas sindicais e trabalhadores têm argumentado quanto ao caráter reacionário da regulamentação proposta pelo PLP 12/2024, que representa um retrocesso histórico nos direitos trabalhistas do Brasil. Em texto anterior5, argumentei que este projeto de lei não cria uma organização diferente no mundo do trabalho, tal como propagandeado pelo governo, apenas legitimando a modalidade de superexploração já existente por parte das empresas-aplicativo.
A proposta apresentada não contempla sequer a lista de reivindicações formulada por parte de centrais sindicais e entidade representativas de trabalhadores de aplicativo ao grupo de trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego do atual governo; não corresponde aos parâmetros de trabalho digno na economia digital a exemplo do sistema de pontuação do Fairwork Brasil; é inconstitucional no que tange ao período máximo de regime de trabalho diário e regulamenta o direito de punição ao trabalhador, uma das práticas mais denunciadas pelos trabalhadores de aplicativo, sobretudo devido à falta de transparência e critérios obscuros das plataformas. Estes são apenas alguns exemplos que validam a repercussão negativa do PL 12/2024 sobre a categoria de motoristas de aplicativo.
Ainda assim, o debate público sobre o tema foi polarizado a partir da ideia amplamente difundida de que os motoristas de aplicativo se posicionaram contrariamente ao Projeto de Lei em razão da subjetividade neoliberal, segundo a qual estes trabalhadores acreditam serem empreendedores de si. Dessa forma, o que poderia ser um profícuo debate em torno da necessidade de formulação de políticas públicas por direitos trabalhistas na economia digital, se esvai em um debate vulgar sobre a subjetivação dos motoristas de aplicativo.
A generalização de uma caricatura sobre a categoria, que chega praticamente a transferir-lhes a responsabilidade pela situação precária de vida na qual estão inseridos, está no cerne de um pensamento extremamente vantajoso à quebra dos laços de solidariedade. Ao fim e ao cabo, a incapacidade com que parte dos setores progressistas olham para estes trabalhadores com alteridade não está, ela própria, dissociada da razão neoliberal.
O sujeito neoliberal
A ordem social que respondeu à crise de austeridade e estagflação dos anos 1970 e ao colapso do bloco soviético no final dos anos 1980 foi o capitalismo neoliberal. Esse conjunto de políticas que privatizam a propriedade e os serviços públicos, reduzindo o Estado social e amordaçando o trabalho foi criado no colóquio Walter Lippmann em 1938, lançando as bases políticas para o que depois se tornaria a Sociedade Mont Pèlerin. Muito já foi escrito sobre a racionalidade neoliberal, interpretando esta ordem para além da dimensão político-econômica, mas talvez poucas formulações sejam tão auto-explicativas como a célebre frase de Margaret Thatcher: “A economia é o método: o objetivo é mudar a alma”6.
Antes de expôr nossa crítica à caricatura da subjetividade dos motoristas de aplicativo, que aqui chamamos de arquétipo do “Uber de extrema direita”, julgamos necessária uma breve localização sobre a ideia de sujeito neoliberal. Em “A nova razão do mundo”, Dardot e Laval argumentam que, com a ascensão do neoliberalismo, se constitui também uma nova norma subjetiva, distinta do sujeito produtivo das sociedades industriais. Se o sujeito ocidental moderno na sociedade industrial foi incutido como sujeito produtivo, marcado pela mercantilização das relações humanas, que assumem a forma de contrato; na sociedade neoliberal o indivíduo é o ser competitivo, cuja subjetividade empresarial é moldada para localizar-se no mundo como empresário de si mesmo.
O sujeito empresarial deve governar a si mesmo para realizar seus objetivos em uma sociedade competitiva: “deve maximizar seus resultados, expondo-se a riscos e assumindo inteira responsabilidade por eventuais fracassos”7. Trata-se de uma racionalidade muito funcional às tendências cada vez mais precárias do trabalho sob o neoliberalismo, com vínculos trabalhistas frágeis, desmoronamento de direitos sociais, empobrecimento e instabilidade financeira, aumentando a situação de medo e insegurança social.
O neo-sujeito não é um ser passivo, impelido a agir de determinada maneira contra a sua vontade. O grande diferencial da razão neoliberal é a incorporação pelo indivíduo da atitude empresarial, o que vale para todos e não apenas empresários ou autônomos. A ética neoliberal está no discurso gerencial, no coaching e quaisquer outras técnicas que prometem formar o indivíduo para ser mais eficaz e produtivo em todas as dimensões da vida; está na autocoerção e na autoculpabilização, como aquele sentimento de fracasso em um dia de homeworking mal sucedido; está na utilização das redes sociais como espaço de ostentação de desempenho e gozo; está nos Big Brothers da vida, em que a sobrevivência se dá por meio da competição, para a qual qualquer arma pode ser útil.
Ou seja, a racionalização gerencial está presente em múltiplas esferas da nossa vida e é interiorizada por sujeitos das mais diversas camadas sociais, não sendo um mal de origem de trabalhadores inseridos na economia de plataformas. Da mesma forma, como tem afirmado Nancy Fraser sobre o neoliberalismo progressista, a política econômica neoliberal não é um patrimônio da extrema direita ou da direita tradicional. Segundo Fraser, as expectativas frustradas com os neoliberalismos progressistas, inclusive, estão diretamente relacionadas com o crescimento da extrema direita frente à crise de hegemonia global.
O estereótipo do “Uber de extrema direita”
A repercussão negativa do PL 12/2024 entre os motoristas de aplicativo se deu tão logo o mesmo foi a público. A postura reativa do governo, reproduzida também na mídia que o orbita, foi imediata. O ministro do Trabalho, Luiz Marinho, sustentou que a proposta deveria ser mantida em regime de urgência e que a repercussão negativa se deu por falhas de comunicação do governo ou por desinformação8.
Outro argumento utilizado por defensores do Projeto de Lei, para justificar a rejeição majoritária entre a categoria, foi o de que estes trabalhadores “negam direitos” devido à sua afinidade ideológica com setores de extrema direita no Brasil. Apenas quatro dias após o governo Lula ter apresentado o PL 12/2024 a Revista Fórum publica o seguinte artigo de opinião: “Retrato do Brasil: 30% de entregadores e motoristas de app são de extrema direita”9, o que é complementado no subtítulo “Trabalhadores em situação mais precária abraçam setores que negam direitos”.
O artigo parte da perspectiva de que a ideologia neoliberal, segundo a qual estes trabalhadores acreditariam serem empreendedores de si, é a causa para a reprovação da medida: “Os dados mostram um problema para o governo do presidente Lula (PT), que recentemente apresentou uma proposta ao Congresso Nacional para garantir direitos trabalhistas, como renda mínima fixa e previdência social, para os motoristas de aplicativo, já com a intenção de propor uma ação semelhante para os entregadores num futuro próximo. No entanto, os números apresentam uma reprovação, seguindo a lógica do posicionamento ideológicos exposta na pesquisa, já que a maior parte dos próprios entregadores e motoristas, dizendo-se “empreendedores”, não querem formalizar a relação de trabalho com as plataformas que utilizam”10.
No blog do jornalista Esmael Morais também se justificou a rejeição ao PLP 12/2024 por fatores ideológicos. Segundo o jornalista: “o que chama a atenção é que esses motoristas defendem os interesses das empresas proprietárias dos aplicativos em detrimento de suas próprias reivindicações”11. E assim explica a suposta defesa dos interesses patronais por parte dos trabalhadores: “A recusa por parte dos motoristas em aceitar os direitos trabalhistas propostos pelo governo reflete uma ideologia que os considera empreendedores independentes, e não trabalhadores assalariados. Isso resulta na negação de direitos fundamentais da classe trabalhadora, tais como seguro saúde, férias remuneradas, 13º salário e aposentadoria. Para muitos deles, a autonomia é vista como mais valiosa do que a garantia de direitos trabalhistas básicos”12.
O mesmo pode ser identificado em entrevista cedida por Carina Trindade, presidente do Sindicato dos Motoristas Privados de Transportes por Aplicativos do Rio Grande do Sul, em que afirma que a categoria é contra qualquer tipo de regulamentação. Segundo a sindicalista: “A categoria é totalmente contra regulamentação, eles não querem ser regulamentados de nada. Eles querem continuar como está, as plataformas explorando e não ter nenhum tipo de regulamentação, não ter representatividade e também não ter a questão de criação de categoria”13.
Nas redes sociais não faltam exemplos de como esse discurso está incutido em setores que se dizem defensores dos direitos trabalhistas, atribuindo ares de paternalismo ao governo que – segundo esta narrativa – está tentando “ajudá-los” ou até mesmo “promulgar a nova lei Áurea”. Os prints abaixo foram retirados de comentários no Instagram que divulgava matéria sobre a rejeição dos motoristas de aplicativos ao PLP 12/2024.




Estes comentários são ilustrativos de como as categorias do neoliberalismo progressista funcionam, culpabilizando os trabalhadores e projetando nestes “outros” a ameaça da extrema direita, diante de qualquer crítica. Assim, cria-se uma verdadeira “cortina de fumaça” que dissimula o caráter conservador e subordinado, das políticas econômicas implementadas pelo governo Lula 3, a uma forma extremada de neoliberalismo, tal como tem demonstrado o economista David Deccache14.
Ouvir os trabalhadores, aceitar o contraditório
O “Uber de extrema direita” é uma generalização, uma caricatura que não aceita o caráter contraditório de uma categoria que não é homogênea. Se formos rigorosos, a bem da verdade, a classe trabalhadora como um todo em si é um corpo heterogêneo e o campo subjetivo sempre controverso.
A utilização do percentual de motoristas de aplicativo que se consideram de extrema direita, tal como citado anteriormente em matéria da Revista Fórum, para justificar essa generalização é extremamente frágil quando comparado com a afinidade ideológica média da população brasileira. Segundo o Datafolha de março de 2024, 31% da população se define como bolsonarista. Em algumas camadas da população, há uma proporção ainda maior de bolsonaristas, como entre pessoas na faixa dos 35 aos 44 anos (36%), entre quem tem renda familiar de 5 a 10 salários (42%), na região Sul (38%), no conjunto das regiões Norte e Centro-Oeste (41%), entre quem se declara branco (37%), no segmento dos evangélicos (44%) e entre aqueles que reprovam a gestão do presidente Lula (67%).
Em todos estes segmentos a proporção de pessoas que se consideram bolsonaristas é superior à proporção de entregadores e motoristas de aplicativo (30%), segundo levantamento do Datafolha, citado no artigo acima da Revista Fórum. Ou seja, se formos comparar a proporção de entregadores e motoristas de aplicativos autodeclarados como de extrema direita, com a proporção de pessoas que são mais inclinadas ao bolsonarismo no Brasil, então os entregadores e motoristas de aplicativo refletem não mais do que a média da população15.
Se é verdade que há elementos de assimilação do discurso das empresas-aplicativo, segundo o qual os trabalhadores plataformizados são parceiros e empreendedores, é verdade também que desde a paralisação nacional de entregadores de aplicativos em 2020, o Breque dos APPs, se comprovou que estes sujeitos periféricos são também sujeitos políticos capazes de subverter as tendências individualizantes e competitivas em prol de alianças, solidariedade e formas de resistir à superexploração do trabalho. Sendo assim, da mesma forma que seria falso omitir que há no interior da categoria – assim como no conjunto da classe trabalhadora – reproduções de ideologias dominantes, é igualmente equivocado omitir as “contracondutas” que colocam os trabalhadores plataformizados como sujeitos ativos na luta política por reconhecimento e condições dignas de trabalho.
“Se esse PL passar prefiro mil vezes ser CLT”
No dia 26 de março estive na manifestação de motoristas de aplicativos em frente à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, que reuniu centenas de trabalhadores para manifestar suas reivindicações perante o PLP 12/2024. Este artigo foi motivado pela escuta dos trabalhadores neste dia, revelando que seus discursos entravam em franca contradição com parte da repercussão na opinião pública sobre os motivos da rejeição da categoria ao projeto de lei, sobretudo aquelas que justificavam as críticas ao projeto por cunho ideológico (conservador) dos motoristas de aplicativo.
O primeiro elemento que chamou a atenção, foi que muitos afirmaram que não eram contra existir algum tipo de regulamentação, mas sim contra a regulamentação nos termos apresentados pelo governo: “E é o que eu digo, nós não somos contra a regulamentação, nós somos a favor da regulamentação. Porém, essa PL que está aí hoje não atende a nossa demanda, né?”, afirmou Caio16, de 45 anos, que trabalha há sete anos para a Uber.
Já Ricardo está no aplicativo desde 2015, atuava como síndico profissional, e agora trabalha somente para a Uber. Assim como Caio, defende que haja regulamentação: “Porque eu sou a favor que haja regra sim, tem que ter, mas uma regra justa, bom para os dois lados ou por três lados.”
A queda no rendimento era a principal queixa dos motoristas, que reivindicavam aumento de valor mínimo e valor por quilômetro rodado. Quando questionados sobre o valor da hora trabalhada correspondente ao mínimo proposto no PL do governo, logo apresentavam suas contas, demonstrando que o valor da remuneração, considerando gastos como manutenção ou aluguel de carro, na verdade levaria a uma queda brusca no rendimento mensal.
“É inadmissível você hoje trabalhar por R$ 32,10 a hora. Isso daí você vai fazer no final do mês, aí um total de no máximo… Se for muito bem trabalhado… vai fazer R$ 2.400,00. Hoje não tá dando. Para quem tem um carro na rua, não tem como. Então. Eles têm que pagar, no mínimo, mudar essa PL para, no mínimo, por km e por tempo”, disse Wagner, professor de história.
A ideia de que, com a regulamentação, o trabalhador deverá na prática gastar para exercer o seu direito ao trabalho – uma vez que não está incluído no valor da remuneração o tempo de espera por trabalho enquanto o motorista está logado no aplicativo, bem como os custos do trabalho – está muito presente nos questionamentos dos motoristas de aplicativos ao projeto de lei complementar.
“Os custos não podem ser maior do que seus ganhos”, prossegue Ricardo, “porque o seu lucro… a gente tem que ter lucro para poder investir, comprar um carro novo, ter lazer, viajar com a família. Esse sistema é escravagista. Esse sistema sim, se passar, vai escravizar, não vai dar para ninguém. Quem está num país democrático não dá para viver na escravidão, não dá.”
Ainda sobre o valor insuficiente da remuneração, Caio diz: “(…) o mínimo virou teto! Várias e várias corridas de 30 minutos a R$ 16, corridas de uma hora R$ 38, então assim não passa disso e está ficando muito difícil. Eu mesmo já tenho carro, trabalho com carro alugado da KOVI, já entrei em negociação com eles. Eles me deram desconto porque eu não tô conseguindo fazer a minha meta diária para poder pagar o carro. É tanto que eu ganhei dois descontos de R$ 200 essa semana e a próxima, porque se for aprovado, infelizmente eu não vou conseguir mais trabalhar e é a minha renda principal hoje. Hoje eu dependo 100% do transporte de aplicativo para poder sobreviver, pagar aluguel do carro, aluguel da casa, família e tudo mais, né? Então a gente está pensando nisso aí seriamente para ver se consegue mudar, porque a gente por hora não atende. Teria que ser por quilômetro e minuto.”
A afirmação feita por Caio, de que, caso o PLP 12/2024 seja aprovado, nos moldes tal como foi apresentado, deveria a um abandono do trabalho na plataforma, foi reiterada por muitos trabalhadores entrevistados: “Hoje é minha principal renda e aqui no aplicativo. Mas continuar com essa PL… se for adiante, eu vou ter que procurar outra coisa para fazer.”, “Se isso fosse aprovado do jeito que está hoje, eu pararia total nos aplicativos e voltava para minha área de atuação.” disseram os entrevistados.
Questionados sobre a preferência pelo regime celetista de trabalho ou na plataforma seguindo os termos da regulamentação do PL 12/2024, a resposta era contundente: “Sem sombra de dúvida. Se for aprovado essa proposta dessa forma”, “É muito melhor ser CLT, CLT”, “Se regulamentar eu tô fora”, afirmavam os motoristas. Esse ponto opõe-se totalmente ao discurso de que “motoristas de aplicativos são contra o PL 12/2024 porque são contra qualquer forma de regulamentação e rejeitam a CLT”. Apesar de sabermos que há uma posição majoritária contrária a que o trabalho nas plataformas seja regulamentado nos termos da CLT (motivado pela flexibilidade no horário de trabalho, entre outros fatores), o que muitos motoristas entrevistados expressaram é que o PL 1204/2024, como foi apresentado inicialmente, teria efeitos tão negativos sobre a categoria que, neste caso, é preferível o regime celetista de trabalho.
A ideia pura e simples de que o trabalhador de aplicativo se considera um “empreendedor de si” não permite enxergar elementos de contradição existentes na experiência destes trabalhadores com as empresas-aplicativo. Nessa fala de Wagner há muitos elementos interessantes, apontando sobre a rejeição ao vínculo motivada pela flexibilidade de horário, ao mesmo tempo que reconhece não haver autonomia com relação ao aplicativo: “Então é assim: somos monitorados, não existe autonomia, porque a autonomia que eu entendo, eu que teria que colocar o meu preço minimamente, não sou eu que coloco o preço na minha corrida. Então, a partir do momento que temos aí o monitoramento… A precificação… É ele que precifica, o aplicativo. Acabou minha autonomia. Não tem, não sou eu. Agora, eu também não sou a favor, mas nem um pouco, de ser e de ter algum tipo de vínculo. Não sou a favor de vínculo empregatício porque acho que a única coisa que eles nos dão é a flexibilidade de horário.”
Ricardo se manifesta no mesmo sentido: “Quando se trata de parceria, eu digo que é parceiro, vamos sentar aqui, vamos conversar, vamos acertar o melhor para nós. (…) Isso não ocorre na Uber. Ela coloca lá o valor de tempo, faz tudo e só empurra pra gente aceitar.” Cristian afirma “não somos autônomos com direitos”, o que é complementado por Bruno “somos terceirizados”, e continua: “de autonomia a gente não tem nenhuma, né… porque a gente não determina o horário, o horário tudo bem que a gente vai entrar e sair mas… pelas nossas metas que a gente tem que bater, a gente tem que ficar 12, 15 horas na rua, né? E a maioria das corridas, 50% das corridas são corridas de R$ 5, R$ 7…”.
Trabalhadores plataformizados também resistem
O neoliberalismo como ordenamento social – econômico, político e subjetivo – complexo, inserido no modo de produção capitalista em sua fase financeirizada, não deixa de gestar contradições inerentes à relação capital/trabalho. As formas laborais mais precárias, nas quais se inserem os trabalhadores plataformizados, pertencem ao contexto global de crise e disputa, não podendo estes trabalhadores serem vistos como sujeitos passivos – seja da ideologia neoliberal, seja da precarização do trabalho.
Quando descemos do céu – seja o céu da burocracia sindical, do governo e de suas instituições, ou de certo academicismo – à terra, e partimos para uma escuta radical dos trabalhadores, é perceptível que há resistência à política neoliberal, que outras formas de associação coletiva estão sendo criadas para driblar a fragmentação no mundo do trabalho e que há elementos de uma racionalidade pautada pela coletividade. Se vivemos sob um neoliberalismo em crise, significa que é possível ““contracondutas” como prática de subjetivação”, nos termos de Dardot e Laval. É possível desde já resistir à racionalidade dominante e os caminhos dessa desobediência coletiva podem estar mais presentes entre os motoristas de aplicativos, do que imaginam alguns.
Identificar que há espaço para a radicalização em prol de uma agenda de defesa de direitos trabalhistas, reconhecimento e dignidade para pessoas inseridas na economia de plataformas parece, porém, inadmissível para parte da base aliada ao governo. Assim, é mais fácil criar uma caricatura do motorista de aplicativos como o sujeito de extrema direita, do que reconhecer a política neoliberal expressa no PL 12/2024, pautada por um governo apoiado, em grande parte, pela expectativa por parte de seus eleitores na defesa dos interesses trabalhistas. Para não jogar água no moinho da extrema direita, permitindo que o bolsonarismo dispute uma categoria para a qual nenhuma medida foi tomada quando governava o país, é necessário que movimentos sociais, intelectuais e entidades defensoras dos direitos trabalhistas incorporem a agenda mínima que os motoristas de aplicativo estão reivindicando, como o aumento do valor da taxa por quilômetro rodado e o fim dos bloqueios injustos. Diante da crise multidimensional em que vivemos e a falência do pacto conciliatório vigente no início dos anos 2000, a firmeza na defesa dos direitos trabalhistas e das maiorias será decisiva na permanente e longa disputa de hegemonia em curso no Brasil e no mundo.
Notas
- AMRUTE, S. Raça como Algoritmo: trabalhadores de tecnologia entediados sendo casualmente racistas. Revista Fronteiras, v. 23 n. 1 (2021): Janeiro/Abril, 11-28. https://doi.org/10.4013/fem.2021.231.02, p. 70. ↩︎
- SRNICEK, N. Capitalismo de plataformas. Buenos Aires: Caja Negra, 2018. ↩︎
- As especificidades da legislação em cada país em comparação com o modelo apresentado pelo Projeto de Lei Provisório no Brasil podem ser encontrados neste texto: https://outraspalavras.net/trabalhoeprecariado/empresas-plataforma-brasil-na-retaguarda/#sdfootnote13sym ↩︎
- https://www.moneytimes.com.br/projeto-para-motoristas-de-apps-ainda-deve-ser-votado-este-ano-no-congresso-diz-ministro-kda/ ↩︎
- https://www.cismacritica.com.br/o-projeto-de-lei-que-consolida-escravidao-digital/ ↩︎
- Margaret Thatcher em Sunday Times, 3 de maio de 1981. Disponível em: <https://www.margaretthatcher.org/document/104475>. Acesso em 17 de junho de 2024. ↩︎
- Dardot e Laval (data, p. 328). ↩︎
- ESTADÃO. ‘Vamos enfrentar a gritaria’, diz Luiz Marinho sobre o PL dos motoristas de aplicativo. Disponível em: <https://www.estadao.com.br/economia/entrevista-luiz-marinho-ministro-do-trabalho-motorista-por-aplicativo/>. Acesso em 21/06/2024. ↩︎
- https://revistaforum.com.br/politica/2024/3/8/retrato-do-brasil-30-de-entregadores-motoristas-de-app-so-de-extrema-direita-155370.html ↩︎
- Idem. ↩︎
- Blog do Esmael. Motoristas de Uber rejeitam direitos e proteção propostos pelo governo Lula. 27/03/2024. Disponível em:<https://www.esmaelmorais.com.br/motoristas-de-uber-rejeitam-direitos-e-protecao-propostos-pelo-governo-lula/>. Acesso em 18/06/2024. ↩︎
- Idem. ↩︎
- Sul21. Todo motorista é contra regulamentação dos aplicativos, até ser bloqueado, avalia sindicato. 7/03/2024. Disponível em: <https://sul21.com.br/noticias/geral/2024/03/todo-motorista-e-contra-regulamentacao-dos-aplicativos-ate-ser-bloqueado-avalia-sindicato/>. Acesso em 18/06/2024. ↩︎
- Em artigo recente, Deccache analisa detalhadamente as medidas abordadas neste primeiro ano de gestão do governo Lula 3, tais como a PEC de transição, o Novo Arcabouço Fiscal; o aprimoramento dos mecanismos de desestatização no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), entre outras. O artigo completo encontra-se em: https://movimentorevista.com.br/2024/11/governo-lula-3-continuidade-ou-ruptura/. ↩︎
- https://media.folha.uol.com.br/datafolha/2024/03/25/hxnnvpz2mvs5msosj0is3osfvijyflucqhw7mtjnjswq2pszj2h8pheveugt49u-qbzd6uncy5idru2kwegu1a.pdf ↩︎
- O nome dos interlocutores foram alterados para manter seu anonimato. ↩︎