Colonialismo e Resistência: a Palestina por Haneen Zoabi
Uma entrevista com a primeira mulher palestina eleita para o parlamento israelense
Foto: Haneen Zoabi, deputada palestina do parlamento israelense. (Baz Ratner/AJ)
No contexto do genocídio palestino em Gaza e das recentes agressões sionistas contra o Irã, republicamos entrevista com a deputada Haneen Zoabi, primeira mulher eleita para o parlamento israelense por uma lista árabe, realizada em 2018 por Frederico Henriques na cidade de Nazaré.
Durante o mês de maio de 2018, integrei uma comitiva do PSOL a convite do comitê latino-americano da campanha de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS). Estivemos na Palestina ocupada, dialogando com autoridades e lideranças dos movimentos de resistência. Percorremos a Cisjordânia, do Vale do Jordão a Jenin, passando por Jerusalém e Tel Aviv. Ao final da viagem, permaneci mais alguns dias para aprofundar o contato com o movimento palestino dentro do território controlado por Israel, viajando até a Galileia.
Foi nesse contexto que conheci Haneen Zoabi, em um hotel em Nazaré. Primeira mulher eleita para o Knesset por uma lista árabe, Zoabi exerceu seu mandato de 2009 a 2019, tornando-se uma das principais vozes políticas da população palestina dentro de Israel. Sua trajetória é marcada por uma atuação combativa e por sucessivas perseguições do Estado israelense, justamente por sua defesa intransigente de uma sociedade baseada na igualdade e na justiça.
A entrevista que realizamos durou quase duas horas. Para facilitar a leitura e destacar os pontos que considero mais relevantes diante do contexto atual, editei a conversa em tópicos. Este formato busca valorizar as reflexões de Zoabi e aproximá-las dos dilemas que hoje se impõem: o genocídio em curso em Gaza, o avanço da anexação da Cisjordânia e a intensificação da repressão aos palestinos que vivem dentro das fronteiras de 1948.
Ouvir Zoabi nos ajuda a compreender os desafios persistentes da luta palestina — desde dentro das entranhas do regime colonial israelense — por meio de uma das vozes mais lúcidas, corajosas e coerentes da resistência contemporânea.
Apresentação, política e identidade
Frederico Henriques: Posso? Sim, claro. Camarada, antes de tudo, gostaria agradecer o seu tempo e atenção na noite de hoje aqui em Nazaré. Inicialmente você poderia se apresentar e explicar como chegou à política e como se envolveu com a causa árabe.
Haneen Zoabi: Eu sei que é muita coisa, mas só para que compreendam. Ok, meu nome é Haneen Zoabi. Nasci aqui, nesta bela cidade de Nazaré.
Eu represento a Assembleia Nacional Democrática no Knesset, que é o parlamento israelense — na verdade, é o parlamento sionista. Represento meu povo, os palestinos que Israel não expulsou em 1948. Israel veio para a Palestina para realizar um sonho, que era o de criar um Estado judeu.
E convenceram o mundo e a si mesmos de que era uma terra vazia, embora não fosse. Era uma terra cheia de palestinos. E, para ter um Estado judeu com palestinos, fazia parte do plano expulsar os palestinos — porque não havia outra forma de estabelecer um Estado judeu.
Era necessário ter uma maioria judaica em uma terra onde a maioria era palestina. Então, o jeito mais fácil foi expulsar os palestinos, e foi isso que aconteceu em 1948. Eu sou parte da quarta geração que, como disse, Israel não expulsou.
Hoje somos um milhão e 200 mil palestinos, dentro de uma população de 8 milhões e 500 mil, representando 18%. E lutamos para ter uma vida normal, um Estado normal, uma democracia normal.
Isso significa uma democracia para todos. Um Estado para todos os cidadãos. Essa definição contradiz a definição de Israel como um Estado judeu, porque por “Estado judeu” entende-se direitos exclusivos para israelenses que não são palestinos.
Desde que me lembro, sempre me interessei por política. Na verdade, o que me interessava era a justiça, e as questões de injustiça. Desde os 10 ou 11 anos, para mim era claro que havia injustiça em todo lugar. E questões sobre minha identidade — quem sou eu, o que significa ser palestina, onde está a Palestina, este Estado me representa? — foram perguntas que comecei a fazer desde cedo.
Pensar sobre a injustiça e as desigualdades entre homens e mulheres também fez parte da minha conscientização precoce sobre a vida, sobre as diferenças de poder entre os setores da sociedade. Depois, percebi que, se eu queria promover mudanças, não poderia fazer diferença sozinha. Precisava estar em um movimento organizado.
Precisava ser ativa dentro de um movimento político. Não poderia ser passiva, nem aceitar meu destino como povo indígena — como alguém que não imigrou para Israel. Foi Israel que imigrou para nós.
Essa é uma ideia muito importante para nós. Na verdade, é um fato: não emigramos para Israel. Foi Israel que emigrou para nós.
E como é ser uma ser humano árabe, palestina, no parlamento israelense?
Antes de tudo, você sente alienação. É uma situação muito contraditória. Você tenta promover mudanças e influenciar um Estado que não acredita em você, que te vê como um invasor, como um obstáculo ao Estado judeu. Um Estado que não entende que tomou sua terra, confiscou sua propriedade, usa seus recursos de forma exclusiva, oprime sua identidade, sua história, e quer reescrever essa história. Um Estado que, na verdade, nem quer fazer parte do Oriente Médio.
Ele quer ser parte da Europa. Então, você vem até mim, despreza minha língua, minha cultura, minha história, se sente superior a mim — e mesmo assim insiste em se identificar como europeu. Metade dos israelenses vieram da Europa, e ainda se sentem europeus, ainda se veem como colonizadores. E continuam a me chamar de invasora. Eles querem ser parte da Europa. Então por que vieram até mim? Segundo o Instituto Israelense para a Democracia, 65% dos israelenses não querem se integrar ao Oriente Médio — eles querem se integrar à Europa.
É tão ridículo. Vocês poderiam ter ficado na Europa e lutado por igualdade lá, lutado contra o antissemitismo lá, permanecendo europeus. Ninguém pediu que viessem colonizar minha terra natal para continuarem se sentindo europeus.
É um sentimento muito estranho para nós, porque estamos fazendo uma enorme concessão histórica ao dizer a quem nos trata como colonizadores que queremos ser iguais a vocês. Se eu quisesse justiça, poderia dizer: “Vocês vieram até aqui, essa não é sua terra natal, voltem para a Europa.” Mas não. De forma democrática, com base em valores democráticos, estamos propondo uma visão de igualdade, de um Estado para todos — não um Estado que se define como Estado judeu e que aprovou mais de 800 leis racistas contra os palestinos.
Quantos parlamentares árabes existem? E qual é a relação com os partidos de esquerda em Israel? Como se organiza essa representação?
Zoabi: Somos 13 parlamentares árabes num total de 120. Mas 47% dos palestinos dentro de Israel não votam, em comparação com 78% dos israelenses que votam para o Knesset. Apenas 53% dos palestinos votavam, mas na última eleição esse número subiu para 62%, por causa da Lista Conjunta — uma união dos três principais partidos árabes: o comunista, o islâmico e o nacionalista. Meu partido se unificou a eles e, por causa disso, a participação aumentou.
Mesmo sendo minoria e não conseguindo impedir muitas leis racistas, somos a voz das vítimas, representando nossa história, nossa nacionalidade, e resistindo ao processo de “domesticação” a que Israel quer nos submeter. Porque essa foi a ideia de Israel: ao manter 15% dos palestinos (depois de expulsar 85% em 1948), o plano foi domesticar esse restante. Isso significa reprimir nossa identidade, impedir que nos conectemos com outros palestinos — da Cisjordânia, de Gaza, dos campos de refugiados — e nos dar uma nova identidade.
Aos olhos de Israel, não somos palestinos. Somos “árabes israelenses”. Ou seja, 50% árabes e 50% israelenses. Mas o que significa ser 50% israelense? Significa sermos leais a Israel, mas sem termos os mesmos direitos. E o que significa ser 50% árabe? Podemos comer comida árabe, tudo bem — embora até isso tenha sido apropriado: o hummus, o falafel, até a salada árabe agora é chamada de “salada israelense”.
Eles roubaram tudo — até os nomes das cidades. O Google, por exemplo, indica como “prefeitura de Nazaré” um assentamento judaico ao lado da Nazaré original, construído para impedir sua expansão. Esse assentamento confiscou 80% das terras de Nazaré e das vilas ao redor. Agora Nazaré parece um polvo, com tentáculos impedindo qualquer crescimento.
E assim eles dizem que vão decidir por mim: minha consciência, minha identidade, minha história. Nas escolas árabes, somos proibidos de estudar nossa própria história. Pagamos impostos a Israel para aprender como somos inferiores.
Estudamos o sionismo, as “relações especiais” que os judeus teriam com essa terra. Os livros escolares não mencionam nossa identidade palestina, nem nossa história antes de 1948.
Divisão e estratégias de controle
Você pode explicar para os brasileiros e latino-americanos um pouco sobre a relação entre os palestinos da Cisjordânia e os palestinos que vivem aqui dentro (de Israel)? Como Israel tenta dividi-los? Qual é a relação entre o parlamento da Cisjordânia, o parlamento israelense e essa política de fragmentação?
Talvez quem se interessa pela causa palestina veja a situação como algo simples: um Estado normal, Israel, que ocupa a Cisjordânia e a Faixa de Gaza. Mas isso não é uma descrição precisa da realidade.
Não se trata de um Estado normal e uma ocupação anormal. O mais correto é dizer que existem quatro estratégias distintas de controle sobre os palestinos.
Em Israel a cidadania israelense para os palestinos que vivem dentro de Israel não é um direito pleno — é uma ferramenta de controle. Não se trata de empoderar os palestinos, mas de controlá-los. Israel sequer tem fronteiras definidas, nem constituição. A “cidadania” é uma estrutura colonial.
Já em Jerusalém Oriental, os palestinos não são cidadãos, são apenas “residentes”. E essa residência pode ser revogada se a pessoa se ausentar da cidade por mais de seis meses. Já foram expulsos mais de 140 mil palestinos de Jerusalém desde 1967. Isso é uma forma de limpeza étnica.
Na Cisjordânia e em Gaza, o controle se dá por meio da ocupação direta (na Cisjordânia) e do cerco (em Gaza). As pessoas ali vivem sob forte repressão militar e limitações severas à mobilidade e sobrevivência.
Por fim os palestinos refugiados e em diáspora lutam pelo direito de retorno às suas terras.
Apesar de vivermos em contextos diferentes, somos um só povo. Todos enfrentamos o sionismo como ideologia racista. Aqui dentro de Israel, lutamos para transformar essa “cidadania colonial” em uma cidadania verdadeira, normal. Lutamos para descolonizar esse conceito.
Na Cisjordânia, lutam contra a ocupação. Em Gaza, contra o cerco. Nos campos de refugiados, pelo retorno. Em Jerusalém, contra a judaização. Mas é uma única luta, com diferentes formas e estratégias.
Nosso papel, como palestinos com cidadania israelense, também é lutar contra a ocupação — mas com outras táticas. E nossa luta pela igualdade não é um problema interno de Israel, como muitos tentam dizer. É uma luta palestina.
Fale um pouco sobre o seu partido. E sobre as dificuldades de unir essas lutas em uma só estratégia. Eu ouvi que algumas lideranças do seu partido estão exiladas por perseguição política.
Sim. Meu partido, a Assembleia Nacional Democrática (Balad), foi fundado depois dos Acordos de Oslo, em 1995. Foi uma reação a Oslo.
Porque Oslo redefiniu o movimento de libertação palestino, transformando-o numa mera luta por um Estado. Mas a luta palestina não pode ser reduzida a um Estado. É uma luta por liberdade — inclusive para os palestinos que vivem em Haifa, Nazaré, ou nos campos de refugiados. E pelo direito de retorno.
Oslo dizia que os palestinos cidadãos de Israel eram uma questão “interna” de Israel, que não faziam parte da luta. Para nós, isso foi um erro estratégico.
Meu partido disse: “não.”
Nossa luta por igualdade é contra o sionismo, não uma luta dentro da definição de Israel como “Estado judeu”. Não aceitamos lutar dentro do racismo. Sionismo é racismo. Israel aprovou centenas de leis racistas no Knesset, e todas elas são justificadas por essa definição de “Estado judeu”.
“Estado judeu” significa direitos exclusivos para judeus à custa dos palestinos. É isso que essa definição quer dizer.
Então, o que propomos é o seguinte: igualdade real exige redefinir o Estado. Dizemos claramente: não existe forma democrática de ser um Estado judeu. Essa combinação é um mito.
Israel deve escolher: ou é um Estado judeu, ou é um Estado democrático. E, para Israel, essa nossa visão é considerada uma ameaça estratégica. Eles não consideram o Hamas ou o ISIS as ameaças principais. Para eles, a democracia é a ameaça.
Israel aprovou recentemente a “Lei do Estado-nação judaico”, que afirma que Israel é o lar exclusivo da nação judaica. Com isso, eles mesmos admitem que Israel não é uma democracia plena. Essa lei prioriza o caráter judaico do Estado acima de qualquer valor democrático.
Mesmo Israel tentando nos criminalizar por essa luta democrática — dizendo que não é possível ser um Estado judeu e democrático ao mesmo tempo —, a realidade é que nossa visão democrática é vista como uma ameaça estratégica.
Israel aprovou uma nova lei definindo o país como “lar nacional do povo judeu”. Essa lei confirma o que dizemos há anos: Israel escolheu ser um Estado judeu, e não democrático.
Eles falam tanto do Irã, mas fazem o mesmo…
Zoabi: Exato. A base do nosso partido, o Balad, é muito simples. Lutamos por igualdade. Mas em Israel, lutar por igualdade é muito difícil, porque isso significaria mudar todo o sistema. Como eu disse, é preciso descolonizar: o sionismo, o Estado e até os próprios israelenses.
E isso é o que pode reunificar a luta palestina: dizer que o problema não é apenas de cidadania ou de fronteiras, mas sim o sionismo como obstáculo à justiça. Desafiar o sionismo é o que nos unifica como povo palestino.
Uma grande parte da nossa luta é preservar a nossa identidade. Israel tenta, de forma sofisticada, nos apagar como palestinos, fazendo-nos “israelenses” de maneira distorcida. Na Cisjordânia, Israel reconhece que os palestinos são palestinos. Mas dentro de Israel, não querem nem que sejamos considerados palestinos.
Segundo a lógica do Estado, devemos ser leais ao opressor. Leais ao sionismo. Devemos pensar que estamos aqui por engano, que não deveríamos existir. Para eles, este deveria ser um Estado judeu puro.
Como unificar essa luta? Como articular estratégias mais unificadas?
O primeiro passo é preservar nossa identidade e ter consciência de que temos direito à luta — que somos palestinos, estamos em nossa terra, e não podemos aceitar nenhuma estratégia israelense de opressão.
Agora, quando se passa a defender um único Estado democrático, isso nos força a pensar estratégias mais unificadas.
Mas essa visão sua — pessoal, política — é perigosa para o governo, porque ela confronta o discurso oficial e vai direto às raízes do Estado. Há palestinos na Cisjordânia ou em Gaza que entendem essa proposta? Alguns dizem: “Zoabi fala muito bem, mas não pode fazer nada.”
Sim, eu entendi o que você quer dizer. Israel está muito confiante hoje. Tem o maior apoio dos EUA, um grande apoio da Europa, relações estreitas com Arábia Saudita, os países do Golfo, com o Egito. Tem até coordenação de segurança com a Autoridade Palestina, com Abu Mazen (nome de guerra de Mahmoud Abbas).
Então, Israel vê meu discurso como algo pequeno. Eles não consideram perigoso. Não estamos no Brasil, onde podem tentar matar lideranças da oposição. Lá, a oposição pode realmente provocar mudanças. Lá, a maioria das pessoas é contra o governo. Aqui, a maioria está com o governo. 80% da população são judeus, e a maioria apoia o governo.
Quando um regime está contra o povo, como no Egito, Síria, ou mesmo no Brasil, ele precisa usar muita repressão violenta. Mas em Israel não é necessário, porque a maioria apoia a opressão. E os regimes árabes também normalizam suas relações com Israel.
Por isso, Israel se sente segura e confiante. E por isso, me deixa falar. Mas também me persegue.
Não eu, individualmente, mas meu partido.
Quando Israel percebeu que nosso discurso podia construir uma consciência diferente, começou a nos perseguir. Mas não precisa nos assassinar. Eles são mais estratégicos.
Eles preferem silenciar?
Sim. E como? Criando leis para impedir que eu me candidate. Desde 2010, com o episódio da Flotilha da Liberdade para Gaza, fui suspensa cinco vezes. Israel matou dez ativistas naquele barco turco.
Eles preferem passar leis que me silenciem. Hoje, existe uma lei que permite que 90 membros do Knesset possam suspender permanentemente outro parlamentar se não gostarem de suas opiniões políticas. Ou seja, as eleições se tornam falsas. Mesmo que eu seja eleita por meio milhão de palestinos, oito parlamentares podem me expulsar. É mais fácil do que me matar.
E a história do seu partido? Você falou de 1995. E depois?
Desde 2003, Israel começou a perseguir Azmi Bishara, fundador do partido, acusando-o de manter contato com o Hezbollah e apoiar o grupo em discursos. Foi um processo de acumulação: acusaram Azmi e outros deputados de incitar os jovens palestinos à violência durante a Segunda Intifada.
Mesmo quando a polícia israelense matou 13 manifestantes palestinos desarmados — eles nos acusaram de incitação. Como fazem com Gaza: matam crianças e depois acusam os palestinos de provocação.
Tentaram desqualificar nosso partido e Azmi em 2003, 2005 e 2006. E tentaram me desqualificar em 2013 e 2015. Em cada eleição, há tentativas de nos tirar da disputa.
Mas os tribunais israelenses ainda exigem algum tipo de “prova” para nos acusar de terrorismo. Eles não podiam dizer que eu era terrorista só pela minha cara. Então, individualmente, os tribunais ainda exigem mais evidência. Mas isso está mudando.
Hoje, a sociedade israelense está se movendo ainda mais para a direita. Segundo pesquisas do Instituto Israelense de Democracia, os valores da sociedade estão se deteriorando.
55% não acreditam que Israel deva ser uma democracia. Apenas 11% entendem democracia como igualdade. E muitos acham que os palestinos deveriam ser colocados em campos de concentração se houver guerra com os países árabes — como os EUA fizeram com os japoneses na Segunda Guerra.
Uma pergunta importante para os brasileiros: o que é apartheid? Porque há muita opressão no mundo, mas o apartheid é algo diferente. O que você quer dizer quando fala em leis de apartheid?
Primeiro, precisamos entender que mesmo com cidadania israelense, vivemos sob apartheid. Não se trata apenas da Cisjordânia, onde há ruas, áreas e infraestruturas separadas para colonos judeus e palestinos. Lá, colonos vivem sobre terras palestinas confiscadas, e os palestinos nem sequer podem entrar em certas áreas.
Mas dentro de Israel, também existem zonas e cidades exclusivas — e, por lei, os palestinos não podem viver nelas. Dois dias antes desta entrevista, Israel aprovou uma nova lei reafirmando que é o “lar do povo judeu”. Um dos artigos dessa lei permite a criação de cidades exclusivas para uma etnia ou religião. Embora não digam abertamente “para judeus”, é óbvio que a intenção é essa.
Desde 1948, Israel criou 700 novas cidades e vilas — todas para judeus. Nenhuma para palestinos. Zero. E todas foram construídas sobre terras palestinas confiscadas.
Então, é também uma questão de demografia?
Sim, estou falando da parte dentro de Israel, desde 1948. Não estou falando de 1967, nem da ocupação ou dos assentamentos. Estou falando da “boa” Israel, do lado dito democrático — e mostrando que não é nada normal.
Israel foi fundado sobre infraestrutura ilegal, racismo, limpeza étnica. É uma forma colonial de nos tratar. Mesmo antes dessa nova lei, em 2011, já haviam aprovado a Lei dos Comitês de Aceitação, que permite que pequenas comunidades recusem qualquer cidadão por “prejudicar a harmonia social”.
O que significa isso? Significa que um palestino sempre prejudica a harmonia, apenas por existir. Nossa existência prejudica a harmonia de Israel.
Acredito que, para os israelenses, foi um erro não expulsar 100% dos palestinos em 1948. Muitos ministros já disseram: “Por que deixamos 15%? Devíamos ter expulsado todos.” A ideia era que poderiam nos domesticar.
E mesmo na educação, existem dois sistemas segregados. As escolas palestinas não ensinam nossa identidade nem nossa história. Já as escolas hebraicas ensinam a história dos judeus — embora de forma distorcida.
Existem também leis de lealdade. Os judeus e sionistas podem expressar livremente sua identidade em eventos culturais, com apoio do Ministério da Cultura e da Educação. Mas nós, palestinos, não podemos. Se quisermos expressar nossa narrativa, não recebemos apoio algum.
Há, portanto, dois Estados dentro de um mesmo Estado. Um sistema legal, cultural e educacional para judeus, e outro para palestinos. É como uma aristocracia, ou um sistema de castas.
Se você olhar o site da ONG Adalah, verá mais de 85 a 100 leis que definem dois conjuntos distintos de direitos: um para judeus e outro para palestinos. Isso é apartheid.
E é um apartheid muito mais sofisticado do que o da África do Sul. Muito mais perigoso.
E como os outros países, os outros povos, podem ajudar? Como podemos apoiar essa iniciativa, trazer esse tema à tona?
O problema aqui não é só o racismo, a opressão, o apartheid. O problema é que Israel não paga nenhum preço por isso.
Se você permite que um Estado viole leis internacionais sem nenhuma punição, está na verdade encorajando esse Estado a continuar e até intensificar essas violações.
É isso que acontece com Israel. Até o ano 2000, antes da segunda Intifada, antes do muro e do cerco, e mesmo antes da coordenação de segurança com a Autoridade Palestina (especialmente com Abu Mazen), a ocupação era um problema real para Israel. Era difícil ocupar os palestinos. O tema palestino ocupava a mente da sociedade israelense.
Mas hoje, o que mudou? A questão palestina desapareceu da agenda israelense. Desde as eleições de 2009, não se fala mais dos palestinos. Não se discute mais Jerusalém, nem os planos de paz. As campanhas eleitorais são sobre habitação e economia para a classe média. A Palestina sumiu do debate.
Mesmo na América Latina foi assim. Até 2005 havia muito apoio. Depois de 2006, parou.
Exato. E acho que isso se deve, principalmente, à estratégia de Abu Mazen: negociar sem resistência. A luta desapareceu. E sem luta, a causa desaparece.
O mundo está cheio de causas justas. Mas se não há mobilização, elas morrem. A justiça precisa de resistência para existir. E a liderança palestina redefiniu a luta como se qualquer resistência fosse violência.
Mas o que pedimos à comunidade internacional é simples: que façam Israel responder por seus crimes. Israel mata palestinos, persegue crianças — mais de 700 crianças palestinas são detidas todos os anos — sem pagar nenhum preço.
Então, manter relações comerciais, culturais e diplomáticas com Israel é apoiar essas violações. O mundo está dizendo a Israel: “Está tudo bem. Continue assim.”
Gostaria de deixar uma mensagem aos brasileiros?
Zoabi: Sim. Na consciência palestina, a América Latina sempre foi solidária à nossa causa. Compartilhamos uma história de ditaduras e opressões. Para nós, é muito difícil aceitar que o povo brasileiro tenha mudado e deixado de nos apoiar.
Mas o povo não muda — é que saiu da agenda da esquerda. Agora vocês estão voltando, e por isso quero deixar uma mensagem.
Precisamos que vocês lutem por nós, mas também por vocês mesmos. Por seus valores de liberdade. Porque se você perguntar a qualquer pessoa do mundo, ninguém dirá que apoia a injustiça — a menos que esteja lucrando com ela.
Depois de 11 anos de cerco a Gaza e mais de 40 anos de ocupação, Israel está se tornando um Estado fascista. E hoje é muito fácil constranger quem apoia Israel, com fatos sobre apartheid, leis racistas, limpeza étnica, perseguição a crianças…
É hora de acordar.
Os palestinos precisam do apoio do povo brasileiro. Precisam de solidariedade para que possamos redefinir nossa luta: não como uma luta por fronteiras ou um Estado, mas como uma luta por libertação.