Qual soberania?
O “tarifaço” de Trump expõe não só a ofensiva imperialista contra o Brasil, mas também as contradições internas que impedem a soberania popular de se concretizar sob o domínio da burguesia e do capitalismo
O anúncio de um “tarifaço” contra o Brasil pelo presidente dos EUA, Donald Trump, marca a conjuntura neste início do segundo semestre de 2025. Com a imposição de tarifas de 50% sobre produtos brasileiros, o governo norte-americano busca enfraquecer nossa economia, diminuindo o mercado consumidor para as mercadorias produzidas aqui e, consequentemente, provocando o fechamento de empresas e desemprego em massa. Essa medida afetará sobretudo as “pessoas comuns”: o pequeno e médio empresariado e, principalmente, o conjunto da classe trabalhadora, mesmo com a exclusão de setores como as indústrias de aviação e automobilística.
A ingerência de Trump é gravíssima, ainda mais quando percebemos que o resultado final esperado é nada menos do que a mudança do regime político brasileiro. Os Estados Unidos desejam aumentar a insatisfação contra o governo Lula – democraticamente eleito, ainda que não isento de críticas justas – a fim de criar o cenário propício para substituí-lo por governantes de extrema-direita subservientes ao imperialismo estadunidense. Como pretexto, utiliza-se uma suposta perseguição judicial ao ex-presidente Jair Bolsonaro, responsável pela condução catastrófica da pandemia de COVID-19 no Brasil, com o saldo de mais de 700.000 (setecentas mil) pessoas mortas, e ora acusado de vários crimes, dentre os quais organização criminosa e tentativa de abolição violenta do Estado de Direito, devido ao planejamento de um golpe de Estado que culminou com os atos terroristas contra sedes das instituições da República no dia 08 de janeiro de 2023, em Brasília.
O “tarifaço” de Trump é, nitidamente, um ataque à nossa soberania nacional, pois visa intervir diretamente em assuntos de política interna brasileira. São cúmplices a família Bolsonaro, seu entorno e setores golpistas brasileiros, verdadeiros sabujos que se prestam a bater continência à bandeira estadunidense e colocam seus interesses particulares acima de todos. Com razão, a situação gerou comoção nacional e a necessidade de nos unirmos em defesa da nossa soberania. Porém, o que realmente significa um Brasil soberano?
A teoria política tradicional define o Estado a partir de três elementos: povo, território e soberania. Esta última é entendida como o monopólio do poder no plano interno, livre de interferência externa. Mas, para existir, a soberania precisa ter legitimidade, significa dizer, aqueles sobre o qual o poder é exercido precisam, de alguma forma, aquiescer, concordar com isso. Em regimes ditatoriais, a legitimidade é obtida com a preponderância da coerção, do medo gerado pela ameaça de violência: se você não obedece o comando do Estado, você pode ser torturado e morto. Em regimes democráticos, prepondera a construção da legitimidade pelo consenso: o povo concorda com a autoridade do Estado porque entende que ela é, em maior ou menor medida, benéfica aos seus próprios interesses.
No Brasil nós temos, ao menos formalmente, um regime democrático desde outubro de 1988. “Formalmente” porque ainda convivemos com índices altíssimos de violência estatal, das mais variadas maneiras, voltadas principalmente contra as parcelas historicamente oprimidas e marginalizadas da população, a exemplo de negras e negros, mulheres, povos originários, comunidades tradicionais, LGBTQIA+, pessoas com deficiência, dentre outras. Apesar disso, a nossa Constituição diz taxativamente que o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou diretamente por plebiscito, referendo ou leis de iniciativa popular. Ou seja, a soberania que nós temos no Brasil é uma soberania de tipo popular. Portanto, a soberania popular é um dos fundamentos constitutivos do Estado brasileiro.
Vemos, assim, que democracia e soberania popular são indissociáveis. Uma não se faz sem a outra, vez que a razão de ser do regime democrático é atender aos anseios do povo. A democracia é, ou deveria ser, expressão da soberania popular. Contudo, o que ocorre quando a democracia não se mostra capaz de atender as demandas populares? A Constituição promulgada em 1988, incluindo o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, prevê um extenso rol de princípios, direitos e diretrizes programáticas ao Estado para a sua consecução. Além das necessárias liberdades civis e políticas, com as correlatas garantias fundamentais, estipula contraprestações estatais na forma de direitos sociais, dentre os quais pode-se destacar a saúde, a educação, a cultura, a alimentação adequada, a segurança pública, a previdência e a assistência sociais. Indo adiante, prevê também o respeito e a preservação do meio-ambiente ecologicamente equilibrado, a função social da propriedade, o imposto sobre grandes fortunas, a auditoria da dívida pública, a reforma agrária, a demarcação de terras indígenas e a titulação dos territórios quilombolas.
O fato de que todas essas promessas permanecem, parcial ou integralmente, descumpridas nos permite questionar: existe, realmente, soberania popular no Brasil? É soberano o povo de um país que convive com altíssimos índices de violência contra as mulheres? Existe soberania num país em que a maioria da sua população, composta por pessoas negras, ainda sofrem preconceitos e discriminações racistas das mais variadas formas? Como falar de soberania se pessoas LGBTQIA+ não têm sequer o direito à sua integridade física e segurança plenamente resguardados? Se praticantes de religiões de matriz africana sofrem com manifestações de intolerância, inclusive violentas? É soberano um país em que a natureza é devastada em nome dos lucros do agronegócio, da indústria e da mineração? Um país onde, mesmo com sucessivas safras recordes, parte significante do seu povo vive em insegurança alimentar? Onde imigrantes de países africanos e latino-americanos são desrespeitados em seus direitos humanos? Onde os direitos socioterritoriais dos povos originários, quilombolas e comunidades tradicionais são sistematicamente negados? Onde o 1% mais rico detém mais da metade da riqueza nacional, não tributada, enquanto os mais pobres pagam proporcionalmente mais impostos? Onde as forças policiais contribuem mais para agravar os problemas de segurança pública do que para combatê-los? Onde trabalhadoras e trabalhadores da base do serviço público não são devidamente valorizados? Um país no qual os bancos se beneficiam de taxas de juros exorbitantes, aumentando seu lucro a cada ano, enquanto a classe trabalhadora está cada vez mais precarizada, inclusive trabalhando na escala 6×1?
Passados mais de trinta anos da promulgação da Constituição de 88, apesar de avanços tímidos, constatamos que seu programa não só continua, em grande parte, letra morta, como foi revisto e descaracterizado por emendas constitucionais de conteúdo neoliberal. Aliás, é possível intuir que a maior parte das medidas progressistas previstas originariamente quando do restabelecimento da democracia formal no Brasil jamais foram intencionadas para serem concretizadas, até mesmo em razão da “transição pelo alto” pactuada pelas elites burguesas. Dessa forma, chegamos a uma outra constatação: a burguesia brasileira, sócia minoritária das burguesias dos países centrais do capitalismo, enquanto classe dominante, sequestra o regime político e bloqueia qualquer possibilidade de avanço social no país, vez que deriva seus lucros da degradação nacional que a possibilita super-explorar a força de trabalho e exaurir o meio ambiente.
O sistema capitalista se caracteriza pelo domínio de poucos, da minoria que constitui a classe mais rica da sociedade e que governa em função dos seus interesses, até mesmo quando isso significa abrir mão de alguns poucos privilégios para manter a estabilidade do padrão de dominação vigente. Nesse sentido, é seguro dizer que a “democracia” que temos hoje não passa de um regime de dominação da classe burguesa e, sendo assim, é incompatível com o exercício da soberania popular.
Pelo exposto, a defesa de um programa ecossocialista, no âmbito de um projeto político no qual a classe trabalhadora assuma o poder, não exista a propriedade privada dos meios de produção e a economia, a ciência e a tecnologia sejam orientadas para atender os interesses do conjunto do povo, é um imperativo da soberania popular. Porém, também é certo que a implementação da estratégia ecossocialista não pode se dar em um só país, conforme comprovam os recentes ataques imperialistas dos EUA. Uma república popular com esse caráter dificilmente sobreviveria sozinha, isolada. A defesa da soberania do povo brasileiro também implica compreender que nosso destino está umbilicalmente ligado ao dos demais povos oprimidos e explorados de todo o globo, conforme nos mostra o caso paradigmático do genocídio contra o povo palestino, sendo inegociáveis os princípios da solidariedade internacional, da integração harmônica e da autodeterminação dos povos.
O combate ao imperialismo deve ser levado até as suas últimas consequências. A defesa da soberania popular do Brasil é imprescindível e deve estar conectada à luta pela libertação de todos os povos do jugo do capitalismo. Apenas o ecossocialismo aponta para um programa de superação definitiva da crise multidimensional (social, econômica, política, ambiental, humanitária, etc.) do modo de produção capitalista, que tem cada vez mais nos arrastado à barbárie. O imperialismo, enquanto fase superior do capitalismo, somente pode ser derrotado pela sua antítese, o ecossocialismo. Para nós, isso não significa importar modelos de outros países, mas buscar uma construção própria que respeite nossas especificidades sociais, históricas e culturais. O Brasil soberano é um Brasil ecossocialista!