Bolsonarismo muda de lado: agora bandido bom é bandido solto?
Anistiar os golpistas do presente é repetir o erro histórico de 1979
Lei penal no tempo: regra, exceção e o uso (indevido) do punitivismo
A regra no Direito Penal é simples: tempus regit actum — aplica-se a lei vigente na data do fato. A exceção constitucional, porém, garante que lei penal mais benéfica retroage. Está escrito com todas as letras no art. 5º, XL, da Constituição: “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.”
O Código Penal repete e detalha: o art. 2º manda aplicar a lei posterior sempre que ela favorecer o agente, inclusive se já houver condenação definitiva; e reconhece a abolitio criminis, que extingue a punibilidade quando a nova lei deixa de considerar crime determinada conduta.
Tradução prática:
- Lei mais gravosa (aumenta pena, cria agravantes): não retroage; só vale do dia em que entra em vigor para frente.
- Lei mais benéfica (reduz pena, suaviza regime, cria causa de diminuição): retroage e alcança fatos passados, inclusive processos encerrados, para beneficiar.
- Abolitio criminis (quando a lei extingue o crime): elimina o crime e apaga a punição.
Por que isso importa agora
No debate recente na Câmara, o relator Paulinho da Força passou a falar em “dosimetria/redução de penas” em vez de uma anistia escancarada, afirmando que não construirá texto que “afronte o STF”. A manobra política de trocar “anistia” por “redução de penas” e tentar acelerar o projeto revela um movimento claro: não se trata de princípio jurídico, mas de conveniência.
E mais: se qualquer lei penal reduzir pena, ela retroage para todos os réus que se enquadrarem — não só para os condenados pelos atos de 8 de janeiro de 2023, mas para qualquer pessoa cuja situação seja afetada pelo novo texto. Não há “retroatividade seletiva”: a Constituição proíbe privilégios ao estabelecer uma cláusula geral de retroatividade em favor do réu.
A hipocrisia do punitivismo de ocasião
Durante anos, parte do discurso público bradou “bandido bom é bandido morto” e defendeu endurecimento penal absoluto. Hoje, as mesmas vozes defendem anistia ou redução de penas para os seus, os golpistas de 8 de janeiro de 2023. Isso mostra que nunca houve princípio: havia apenas cálculo político.
Historicamente, o uso do sistema penal no Brasil tem sido seletivo, atingindo com mais força o povo preto, pobre e periférico. Quando se flexibiliza a lei para “os meus” e se endurece para “os outros”, o resultado é mais desigualdade, não justiça. O Direito Penal deve ser última ratio — a intervenção extrema quando educação, cultura, emprego e políticas sociais falharam. Quando vira primeira ratio, tudo o resto já fracassou.
“Dosimetria” x Anistia de 1979: por que a comparação é indevida
Comparar a atual tentativa de anistia ou redução de penas com a Anistia de 1979 é uma distorção histórica.
- Em 1979, tratava-se de uma transição democrática após uma ditadura que usava o monopólio da força para perseguir, prender, torturar e desaparecer com opositores. A anistia era parte de um processo de recomposição e reconciliação nacional.
- Já em 8 de janeiro de 2023, a pauta era intervenção militar e ruptura democrática — ou seja, um golpe contra a Constituição. Tentar igualar os dois momentos é apagar diferenças estruturais e legitimar uma indulgência política para quem atacou a democracia.
Conclusão — memória, justiça e futuro democrático
O que se vê no Brasil de hoje é a extrema direita — representada politicamente pelo bolsonarismo — tentando mudar o discurso conforme a conveniência. Ontem, pregavam o endurecimento penal absoluto, resumindo tudo em frases de efeito como “bandido bom é bandido morto”. Hoje, não pensam duas vezes em defender anistia ou redução de penas para os seus, os golpistas de 8 de janeiro de 2023. Isso é a prova mais clara de que nunca houve princípio: havia apenas cálculo político.
E aqui está o ponto central: anistiar golpistas é repetir o erro histórico de 1979. Ao perdoar os militares e agentes da ditadura, abriu-se espaço para que as mesmas estruturas autoritárias sobrevivessem, para que a impunidade fosse regra e para que décadas depois tivéssemos novamente generais, servidores públicos e políticos tramando contra a democracia. Perdoar golpistas fabrica novos golpistas. É como plantar a semente da próxima tentativa de golpe.
Não se trata de vingança, mas de justiça histórica e garantia de futuro democrático. Punição exemplar aos que atentaram contra o Estado de Direito não é capricho — é necessidade de preservação institucional. Um país que pune ladrões de pão mas perdoa quem ataca a democracia inteira está de cabeça para baixo. É preciso mostrar, de forma inequívoca, que nenhum general, político, servidor ou financiador de atos golpistas está acima da lei.
Por isso foi tão fundamental a onda de atos em todo o Brasil neste último final de semana, contra a anistia e contra a PEC da Blindagem. Esse é o país que queremos: um povo nas ruas, resistindo a leis injustas. Os protestos podem ter sepultado a anistia, mas o debate sobre a dosimetria de penas exige reflexão profunda. Até quando mudaremos leis apenas para beneficiar gente de sobrenome, enquanto a imensidão de jovens pobres continua presa, muitas vezes sem julgamento adequado? Se fosse qualquer um desses jovens, os políticos corruptos do PL (Partido de Valdemar da Costa Neto e Bolsonaro) jamais estariam preocupados.
Se em 1964 e depois em 1979 faltou coragem de punir os responsáveis, em 2023 e 2025 não podemos repetir o mesmo erro. Não haverá democracia sólida sem responsabilização firme dos golpistas. Só assim deixaremos de fabricar novas ameaças ao futuro do Brasil.