Dois anos após o 7 de outubro 

Dois anos após o 7 de outubro 

O cessar-fogo e os desdobramentos da Global Summud Flotilha

Israel Dutra e Pedro Fuentes 18 out 2025, 14:03

Escrevemos este texto quando se anuncia o cessar-fogo em Gaza, primeira etapa do chamado “Acordo de Paz”. A notícia foi recebida com emoção e alívio pelo povo palestino, massacrado por dois anos consecutivos pela máquina de morte do Estado sionista, sustentado pelas potências ocidentais. No mesmo dia em que se anunciou o acordo, chegou ao Brasil a delegação que participou da Global Summud Flotilha, após mais de um mês de jornada e quase uma semana de detenção na masmorra israelense de Nzoit, no deserto do Neguev.

Para além do heroísmo dos 13 participantes — entre eles três militantes do MES, Mariana, Gabi e Nico —, importa refletir sobre o significado político da Flotilha, como parte da luta internacional contra o genocídio palestino. Gaza sintetiza hoje o confronto entre dois projetos antagônicos: o do neofascismo disposto à “solução final”, com limpeza étnica e extermínio; e o de um novo internacionalismo antifascista, enraizado na resistência e na solidariedade à causa palestina e à luta contra o imperialismo neocolonial. A luta antifascista e a luta anticolonial convergem. Israel venceu militarmente, mas saiu mais isolado do que nunca diante de um mundo que repudia o genocídio. A causa palestina tornou-se uma bandeira de massas.

Um genocídio de nosso tempo

Durante dois anos, o mundo assistiu ao genocídio meticulosamente executado pelo governo neofascista de Netanyahu. Como antecipou Gilbert Achcar, crítico do Hamas, a resposta de Israel seria brutal — e foi. O massacre, transmitido em tempo real, destruiu 78% dos edifícios de Gaza e deixou mais de 79 mil mortos (considerando 11,2 mil desaparecidos), entre eles mais de 20 mil crianças e número semelhante de mulheres. Em conferência de imprensa, a relatora da ONU, Francesca Albanese, afirmou que devemos começar a pensar que o número de assassinatos pode ser de 680 mil pessoas, um número muito superior aos dados oficiais apresentados até aqui. Hospitais, escolas e redações foram alvos; jornalistas, médicos e civis morreram de fome e de falta de atendimento. Foi o genocídio mais sistemático desde o Holocausto nazista.

Com o apoio dos Estados Unidos, Netanyahu buscou concluir a limpeza étnica rapidamente, mas enfrentou resistência maior do que esperava — do Hamas, de outros grupos armados, da população palestina, do Hezbollah, dos houthis e do Irã. Ainda assim, impôs uma derrota militar ao Hamas e enfraqueceu seus aliados regionais. Em uma agressão inédita, as Forças de Defesa de Israel (IDF) atacaram também a capital do Catar, Doha, com o alegado objetivo de alvejar a liderança política do Hamas. Essa investida, duramente condenada pelo Ministério das Relações Exteriores do Catar como um “ataque criminoso” e uma violação flagrante das leis internacionais, elevou a aposta de Israel, ameaçando a soberania de um país mediador e desestabilizando o precário equilíbrio regional.

O Estado de Israel revelou sua verdadeira natureza: um projeto sionista de ocupação total da Palestina e de expansão territorial por meio de morte e deslocamento. A ideologia que o move — de raiz fascista — repete, com papéis invertidos, o mesmo princípio de extermínio que os nazistas aplicaram contra os judeus, mas agora exposta sem disfarces e defendida abertamente pela direita israelense. Outra marca deste genocídio é sua transmissão em tempo real, sobretudo nas redes sociais. O massacre israelita mostra também o papel de Israel como polo de desenvolvimento de tecnologias de controle e vigilância militar. O país consolidou um salto no capitalismo de guerra, com o uso de drones de nova geração, escudos antimísseis e operações cibernéticas como o ataque ao Hezbollah por meio da invasão de sistemas de pagers. Israel, durante décadas, usou o território ocupado da Palestina como laboratório para testar tecnologia armamentista e hoje exporta essa tecnologia de ocupação para o mundo todo, combinando metadados, inteligência artificial e ultra vigilância global

As bases do chamado “Acordo de Paz”

O Estado sionista obteve uma vitória militar, enfraquecendo a resistência armada em Gaza e ampliando os assentamentos na Cisjordânia. Ao mesmo tempo, debilitou aliados do Hamas — Hezbollah, Síria e Irã —, redesenhando o mapa do Oriente Médio em favor do eixo Israel-EUA e das autocracias petrolíferas. O acordo anunciado consagra essa vitória e a derrota da resistência armada palestina, com apoio de boa parte dos governos do mundo, inclusive de potências como China, Rússia, Índia e das potências europeias. O Reino Unido de Starmer, ainda mais com Blair como figura próxima ao sionismo, e o Brasil, que após papel progressivo acabou saudando Trump pelo acordo, mostram como o imperialismo recompus sua unidade, mas não sabemos até onde. Ainda não se conhecem todos os desdobramentos do pacto, mas é evidente que ele consolida o domínio imperialista sobre a Palestina. Trump, aparece como o grande fiador político do cessar-fogo. O acordo não agradou a ala mais à direita do governo israelense e significou uma mudança dos planos do mesmo Trump e Netanyahu de um mês antes quando falavam da limpeza étnica e transformar Gaza em um resort de luxo expulsando a os palestinos. Isto aconteceu pela rejeição dos árabes depois do ataque em Catar e mais especialmente pela ampliação da mobilização de massas em solidariedade a Palestina.  

Trump está reorganizando as burguesias árabes em torno dos Acordos de Abraão, colocando os estados petroleiros na ofensiva e relegando a causa palestina a segundo plano, apesar da solidariedade popular persistente. O imperialismo pretende consolidar uma nova ordem regional sobre os escombros de Gaza. 

Mas é cedo para avaliar plenamente os desdobramentos do acordo. Resta saber muitas coisas que abrem um panorama incerto, incluso que seja rompido por Netanyahu que agora pode utilizar o pretexto de que Hamas não devolve os corpos dos reféns mortos para isso. Por outra parte, e incerto que se cumpram os pontos da segunda fase especialmente o desarme de Hamas.  A tensão seguirá e a causa Palestina permanecera aberta independentemente dos acordos a ruptura deles. Por isso, não podemos ter dúvidas quanto ao caráter neocolonial dos termos e ficarmos atentos à ruptura unilateral que pode ser feita por Israel. 

Uma nova situação na solidariedade

Dois anos após o 7 de outubro, abriu-se uma nova etapa na solidariedade internacional. A Flotilha foi o detonador, mas o processo é mais profundo: expressa uma solidariedade global sem precedentes, que transbordou os círculos militantes e alcançou amplos setores da juventude e do movimento operário, polarizando governos e tornando-se tema central em todo o mundo, especialmente na Europa e nos países árabes.

A nova mobilização combina indignação moral e consciência política. À medida que o massacre avançava, a brutalidade do sionismo se tornou impossível de ocultar, provocando uma reação mundial. O genocídio televisionado revelou o verdadeiro caráter do Estado de Israel e expôs o imperialismo ocidental como cúmplice. O horror, visto em tempo real, catalisou manifestações massivas e ações concretas de solidariedade.

A Global Summud Flotilha (GSF) foi o estopim dessa nova onda. Sua jornada, amplamente acompanhada, despertou greves, bloqueios e protestos — como a paralisação na Itália e as gigantescas manifestações na Europa e no mundo islâmico. Milhões foram às ruas com o grito “Parem o genocídio! A Flotilha não será tocada!”. Esse movimento marcou uma virada na consciência global: pela primeira vez, o sionismo é reconhecido amplamente como uma força genocida e colonial.

O debilitamento político e moral do projeto sionista

Graças a essa mobilização, Israel tornou-se um pária internacional. Sua imagem — antes protegida por décadas de propaganda — desmoronou diante da opinião pública mundial. O que antes era restrito à vanguarda militante transformou-se em sentimento de massas, sobretudo entre os jovens, estudantes, imigrantes e trabalhadores precarizados.

Israel venceu militarmente, mas debilitou-se politicamente perdeu moralmente. Não conquistou legitimidade nem reconhecimento; apenas repúdio. O movimento de massas não vai recuar. Ele pode mudar de forma, mas continuará expressando-se em campanhas de boicote, protestos, exigências de rompimento de relações comerciais e ações diretas de solidariedade.

Dessa nova situação emergem duas rupturas simbólicas: Cai o mito da singularidade absoluta do Holocausto, pois a comunidade internacional reconhece o genocídio palestino como crime de mesma natureza. Enfraquece a equação ideológica entre antissionismo e antissemitismo. Embora ainda usada para intimidar, ela perdeu grande parte de sua força diante da evidência da barbárie israelense. A luta prossegue em nova escala, com responsabilidades maiores para os setores que impulsionaram a solidariedade.

O programa para este novo período deve combinar ações humanitárias concretas e denúncia política: exigir a destinação de recursos para a reconstrução de Gaza por meio de Estados, ONGs e movimentos sociais; promover missões médicas e acadêmicas; responsabilizar Netanyahu no Tribunal Penal Internacional; e exigir uma comissão internacional independente para investigar os crimes de guerra de Israel. É preciso denunciar o caráter colonial do acordo e afirmar que o futuro da Palestina deve ser decidido por seu próprio povo.

Como bandeira política e de agitação, deve-se reivindicar a libertação de Marwan Barghouti, figura capaz de unificar os palestinos, e o rompimento das relações comerciais com Israel, especialmente por parte de governos progressistas como Indonésia, Malásia e Colômbia.

O acordo foi recebido com alívio em Israel, mas traz novas contradições a seu interior. O mesmo acordo pode levar à queda de Netanyahu e ao desmantelamento do atual governo. Em última instância, o cessar-fogo é mais uma vitória de Trump do que de Netanyahu, que tem os processos de corrupção abertos. 

A conjuntura internacional está em movimento

A situação em torno de Israel se desenrola em meio a novas ondas de protesto protagonizadas pela Geração Z em todo o mundo. Essa juventude, que há poucos anos parecia seduzida por figuras neofascistas “anti-establishment”, hoje se coloca na linha de frente da luta contra o neofascismo e o capitalismo. As rebeliões no Marrocos, Madagascar, Quênia, Indonésia, Nepal, Peru e a greve geral indígena no Equador expressam um novo ciclo de resistência global. Ainda não se trata de uma mudança no equilíbrio mundial de forças, mas de uma reação internacional em gestação, que pode abrir caminho para uma virada se se desenvolver. A Conferência Antifascista em Porto Alegre insere-se plenamente nesse cenário.

O futuro da Palestina dependerá, em grande medida, da evolução dessas lutas internacionais. O ascenso juvenil, ainda desigual, combina-se com uma nova situação política no continente europeu. Na Espanha, as mobilizações atingiram escala histórica; na Itália, a greve geral uniu estivadores — que ameaçaram “parar tudo” caso a Flotilha fosse atacada — e estudantes secundaristas, que ocuparam ruas, praças e universidades. As manifestações na Holanda e as marchas na Austrália, com centenas de milhares de pessoas, confirmam que a solidariedade à Palestina se tornou a maior causa internacional dos últimos vinte anos.

O epicentro da questão, contudo, continua sendo o mundo árabe. Após a derrota da Revolução Árabe, alguns movimentos — como o da Argélia em 2019 — mantiveram viva a chama da contestação, mas a repressão no Egito e na Síria impôs retrocessos. A simpatia popular pela Palestina na Jordânia e no Egito pode, contudo, reacender mobilizações de massas, como as que começam a despontar no Marrocos.

Europa se movimenta. Em na França, dois polos se consolidam: de um lado, a esquerda combativa de Mélenchon e da LFI, ativa na solidariedade à Flotilha e à causa dos imigrantes; de outro, a extrema direita de Le Pen, que se prepara para governar. Na Alemanha, a juventude rompeu o cerco do sionismo e, com o Die Linke, organizou as maiores manifestações pró-Palestina em décadas. Na Bélgica e na Grécia teve greves gerais

Nos Estados Unidos, o desfecho será decisivo. O segundo governo Trump se fortalece no plano externo, mas enfrenta contradições internas: paralisação administrativa, conflitos sobre imigração e protestos nas grandes cidades. A solidariedade à Palestina persiste, ainda fragmentada, mas com novos pontos de apoio — como a possível vitória eleitoral de Zohran Mamdani em Nova York. O que se passa nos EUA será central para definir os rumos da luta internacional. 

Nossa participação na Flotilha e no movimento de solidariedade à Palestina

A presença da Quarta Internacional e do MES na Flotilha representou um verdadeiro triunfo político e militante. A participação de Gabi, Mariana e Nico foi não apenas um ato de coragem, mas uma experiência formadora de ação internacionalista concreta. A IV apoiou desde o primeiro momento, articulando-se com parlamentares como Mariana Mortágua, do Bloco de Esquerda, e Paul Murphy, da Irlanda, e difundindo em tempo real as informações pela Inprecor. Isso se somou outras expressões como a FITU (MST e IS) na Argentina, a CUP na Catalunha, além de figuras de peso como Ada Colau, Rima Hassan (e vários parlamentares da LFI), Mandla Mandela, organizações da esquerda asiática e europeia, além de lideranças latino-americanas, africanas e dos 44 países que estiveram na Flotilha. 

Nossa corrente manteve, ao longo de dois anos, uma posição intransigente em defesa da Palestina. Participamos de todas as campanhas de solidariedade, e por meio da Fundação produzimos o principal material didático sobre o tema, hoje referência na esquerda. Somos parte ativa de movimentos como a Frente Palestina de São Paulo e a FEPAL. Nossas parlamentares e figuras públicas conquistaram autoridade e respeito por seu engajamento — mesmo enfrentando processos e ataques por isso.

Ganhamos também novos militantes árabes e judeus, como os integrantes do grupo Vozes Judaicas, e demos um salto qualitativo na solidariedade internacional com a participação de Thiago e Greta, que se projetam como referências mundiais nessa frente.

Agora no Brasil, depois das manifestações de 21 de setembro — que empurraram momentaneamente a extrema direita para a defensiva —, temos condições mais favoráveis para planejar os próximos passos. Além de somar forças para a Conferência Antifascista de Porto Alegre, em março de 2026, temos iniciativas práticas concretas. 

 Vamos fortalecer as campanhas do BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções), principalmente em relação ao embargo militar a Israel e o fim do envio de petróleo pela Petrobras, e o rompimento de relações entre Brasil-Israel e como ponto fundamental a liberação de Marwan Barghouti. 

O exemplo de Mariana, Gabi e Nico inspira, junto com os outros membros brasileiros da flotilha.  Ele mostra que o internacionalismo não é um discurso, mas uma prática militante, feita de coragem, disciplina e convicção. Essa experiência nos prepara para os novos desafios que virão, em um cenário mundial em transição e marcado por confrontos cada vez mais duros entre barbárie neofascista e resistência socialista internacionalista.


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