A bolha da IA e a economia dos Estados Unidos

A bolha da IA e a economia dos Estados Unidos

A economia dos Estados Unidos tornou-se, em essência, uma grande aposta na inteligência artificial

Michael Roberts 4 nov 2025, 13:18

Tradução do artigo de Michael Roberts publicado originalmente no site The Next Recession.

O mercado de ações dos Estados Unidos continua atingindo novos recordes; o preço da bitcoin também está próximo de valores máximos, e o preço do ouro disparou para níveis inéditos.

Os investidores em ativos financeiros (bancos, companhias de seguros, fundos de pensão, fundos de hedge etc.) estão extremamente otimistas e confiantes em relação aos mercados financeiros. Como afirmou Ruchir Sharma, presidente da Rockefeller International: “Apesar das ameaças crescentes à economia dos Estados Unidos — desde tarifas elevadas até o colapso da imigração, a erosão das instituições, o aumento da dívida e a inflação persistente — as grandes empresas e os investidores parecem impassíveis. Estão cada vez mais confiantes de que a inteligência artificial é uma força tão poderosa que pode neutralizar todos esses desafios.” As empresas de IA foram responsáveis por 80% dos ganhos nas ações norte-americanas até agora em 2025. Isso tem contribuído para financiar e impulsionar o crescimento dos EUA, à medida que o mercado acionário movido pela IA atrai capitais do mundo todo. Estrangeiros investiram um recorde de 290 bilhões de dólares em ações norte-americanas no segundo trimestre de 2025 e agora detêm cerca de 30% do mercado — a maior participação desde o pós-Segunda Guerra Mundial. Como comenta Sharma, os Estados Unidos tornaram-se “uma grande aposta na IA”.

A “bolha” de investimentos em IA (medida pela relação entre o preço das ações e o “valor contábil” de uma empresa) é 17 vezes maior do que o frenesi das empresas ponto-com em 2000 — e quatro vezes maior do que a bolha das hipotecas subprime de 2007. A razão entre o valor de mercado das ações dos EUA e o PIB (também conhecida como “Indicador Buffett”) atingiu um novo recorde de 217%, mais de duas vezes o desvio padrão acima da tendência de longo prazo.

E não são apenas as ações corporativas que estão em alta. Há uma enorme demanda pela dívida de empresas norte-americanas, especialmente das grandes companhias de tecnologia e inteligência artificial, conhecidas como as chamadas Magnificent Seven. O “spread” dos juros pagos sobre os títulos corporativos em comparação com os títulos “seguros” do governo caiu para menos de 1 ponto percentual.

Essas apostas no sucesso futuro da IA abrangem todos os setores, ou, em outras palavras, todos os ovos estão em uma só cesta: a IA. Os investidores estão apostando que a inteligência artificial acabará gerando retornos extraordinários sobre suas compras de ações e títulos, quando a produtividade do trabalho aumentar de forma dramática e, com ela, a rentabilidade das empresas de IA. Matt Eagan, gestor de portfólio da Loomis Sayles, afirmou que os preços elevadíssimos dos ativos sugerem que os investidores estão contando com “ganhos de produtividade de uma magnitude que jamais vimos antes” vindos da IA. “É o principal fator que pode dar errado”, acrescentou.

Até o momento, há poucos indícios de que os investimentos em IA estejam produzindo um aumento mais rápido da produtividade. Mas, ironicamente, o enorme volume de investimento em centros de dados e infraestrutura de IA tem sustentado a economia dos Estados Unidos por enquanto. Quase 40% do crescimento real do PIB norte-americano no último trimestre foi impulsionado pelos investimentos em capital fixo do setor de tecnologia, e a maior parte desses investimentos foi direcionada à IA.

A infraestrutura de IA aumentou em 400 bilhões de dólares desde 2022. Uma parte considerável desses gastos concentrou-se em equipamentos de processamento de informação, cujo volume disparou a uma taxa anualizada de 39% na primeira metade de 2025. O economista de Harvard Jason Furman comentou que o investimento em equipamentos e softwares de processamento de informação equivale a apenas 4% do PIB dos Estados Unidos, mas foi responsável por 92% do crescimento do PIB na primeira metade de 2025. Se essas categorias forem excluídas, a economia norte-americana cresceu a uma taxa anual de apenas 0,1% no mesmo período.

Portanto, sem os gastos em tecnologia, os Estados Unidos teriam ficado próximos de, ou já em, uma recessão neste ano.

O que isso revela é o outro lado da história: ou seja, a estagnação do restante da economia norte-americana. A indústria manufatureira dos Estados Unidos está em recessão há mais de dois anos (isto é, qualquer pontuação no gráfico abaixo inferior a 50).

E agora há sinais de que o setor de serviços, ainda maior, também está com problemas. O ISM Services PMI (um indicador baseado em pesquisa econômica) caiu para 50 em setembro de 2025, em comparação com 52 em agosto, e ficou bem abaixo das previsões de 51,7, sinalizando que o setor de serviços estagnou.

O mercado de trabalho dos Estados Unidos também parece fraco. O emprego cresceu a uma taxa anualizada de apenas 0,5% nos três meses até julho, de acordo com dados oficiais. Isso está bem abaixo das taxas observadas em 2024. “Estamos em uma economia de pouca contratação e poucas demissões”, disse o presidente do Federal Reserve, Jay Powell, no mês passado.

Os jovens trabalhadores nos Estados Unidos estão sendo desproporcionalmente afetados pela atual desaceleração econômica. O desemprego entre os jovens norte-americanos aumentou de 6,6% para 10,5% desde abril de 2023. O crescimento salarial para os trabalhadores jovens caiu acentuadamente. As vagas de emprego para iniciantes de carreira diminuíram em mais de 30%. Trabalhadores em início de carreira em ocupações expostas à IA sofreram uma queda relativa de 13% no emprego.

Os únicos norte-americanos que estão gastando grandes quantias de dinheiro são os 20% mais ricos. Esses domicílios tiveram um bom desempenho, e aqueles situados nos 3,3% do topo da distribuição se saíram ainda melhor. O restante está apertando o cinto e não está comprando mais.

As vendas no varejo (após o desconto da inflação de preços) têm se mantido estagnadas por mais de quatro anos.

O gráfico acima mostra que a inflação corroeu o poder de compra da maioria dos norte-americanos. A taxa média de inflação permanece estagnada em cerca de 3% ao ano, segundo os dados oficiais, bem acima da meta de 2% ao ano estabelecida pelo Federal Reserve. E essa taxa média oculta boa parte do impacto real sobre o padrão de vida e sobre os aumentos salariais reais. Os preços dos alimentos e da energia estão subindo muito mais rapidamente. A eletricidade agora custa 40% mais do que há cinco anos.

De fato, os preços da eletricidade estão sendo ainda mais pressionados pelos centros de dados de IA. A OpenAI consome tanta eletricidade quanto as cidades de Nova York e San Diego combinadas, no pico da intensa onda de calor de 2024. Ou o equivalente à demanda total de eletricidade da Suíça e de Portugal juntos. Isso corresponde à eletricidade utilizada por cerca de 20 milhões de pessoas. Recentemente, o Google cancelou um projeto de centro de dados de 1 bilhão de dólares em Indiana, após protestos de moradores que alegaram que o centro “aumentaria os preços da eletricidade” e “sugaria quantidades incalculáveis de água em uma área já assolada pela seca”.

E há ainda o impacto da tarifa de importação imposta pelo governo Trump sobre os bens importados para os Estados Unidos. Apesar das negativas da administração Trump, os preços de importação estão subindo e começam a se refletir nos preços dos bens dentro do país (e não apenas nos de energia e alimentos).

Até agora, as empresas estrangeiras, em conjunto, não estão absorvendo os custos das tarifas. Durante a guerra comercial de 2018, as empresas estrangeiras foram as principais responsáveis por reduzir os preços de seus produtos exportados aos Estados Unidos. Desta vez, os preços de importação não caíram. Os importadores norte-americanos, e não os exportadores estrangeiros, é que estão pagando as tarifas, com maior repasse aos consumidores provavelmente à frente. Como afirmou o presidente do Federal Reserve, “as tarifas estão sendo pagas principalmente pelas empresas que se situam entre o exportador e o consumidor… Todas essas empresas e entidades intermediárias dirão que têm plena intenção de repassar esses custos [ao consumidor] com o tempo.”

Importadores, atacadistas e varejistas estão pagando custos mais altos antecipadamente e esperam poder, em algum momento, aumentar os preços o suficiente para transferir o ônus. O problema é que os consumidores já estão no limite. Os orçamentos domésticos estão sob pressão devido ao aumento da dívida, à inadimplência e aos salários que não são suficientes para cobrir as despesas. Tentar repassar os custos das tarifas nesse contexto reduziria ainda mais a demanda.

As empresas sabem disso, e é por isso que muitas delas estão absorvendo os custos em vez de repassá-los. Mas, quando fazem isso, suas margens diminuem, e torna-se mais difícil sustentar as operações sem realizar cortes em outras áreas. Quando a rentabilidade é pressionada, a administração tem poucas opções. Ela não pode controlar as tarifas, nem obrigar os consumidores a gastarem mais. O que pode controlar são as despesas. Isso começa pela desaceleração nas contratações e pela redução nos planos de crescimento, seguida por cortes de horas de trabalho e horas extras. Se as tarifas permanecerem e os consumidores continuarem fracos, os efeitos em cadeia se espalharão ainda mais pelo mercado de trabalho.

Há ainda os gastos do governo. O atual fechamento de departamentos governamentais, imposto pelo Congresso, deu à administração Trump uma oportunidade adicional para reduzir o número de funcionários do governo federal, numa tentativa vã de diminuir o déficit orçamentário e a crescente dívida pública. É uma tentativa vã porque a alegação de Trump de que o aumento das receitas tarifárias resolverá o problema não é crível. Desde janeiro de 2025, as receitas tarifárias seguem representando apenas 2,4% da receita federal total projetada para o ano fiscal de 2025, de 5,2 trilhões de dólares.

E quanto à alegação de que as tarifas eventualmente corrigiriam o déficit comercial dos Estados Unidos com o restante do mundo, isso também se revelou uma falácia até então. Nos primeiros sete meses de 2024, o déficit foi de 500 bilhões de dólares; nos primeiros sete meses de 2025, chegou a 654 bilhões — um aumento de 31% em relação ao ano anterior, atingindo um recorde histórico.

Ao contrário do que afirma Trump, os aumentos tarifários sobre as importações farão muito pouco para “tornar a América grande novamente” no setor manufatureiro. Robert Lawrence, da Kennedy School de Harvard, estima que “eliminar o déficit comercial mal aumentaria a participação do emprego manufatureiro nos Estados Unidos”. O valor agregado líquido correspondente ao déficit comercial em bens manufaturados em 2024 foi equivalente a 21,5% da produção norte-americana. Esse seria o acréscimo no valor agregado interno caso o déficit comercial fosse eliminado. Quanto de emprego isso geraria? O total seria de 2,8 milhões de postos de trabalho, o que representaria um aumento de apenas 1,7 ponto percentual na participação da manufatura no emprego total dos Estados Unidos, elevando-a para 9,7% do total de empregos. No entanto, a participação dos trabalhadores da produção dentro desse setor seria de apenas 4,7%, sendo os outros 5 pontos percentuais compostos por gerentes, contadores, engenheiros, motoristas, vendedores e outros profissionais. O aumento no emprego de trabalhadores da produção seria, portanto, de apenas 1,3 milhão de pessoas, ou apenas 0,9% do total de empregos nos Estados Unidos.

A economia norte-americana ainda não está de joelhos nem em recessão, uma vez que o investimento empresarial continua crescendo, embora a um ritmo mais lento.

Os lucros corporativos ainda estão crescendo. A receita operacional das empresas do S&P 500 (excluindo o setor financeiro) cresceu 9% no trimestre mais recente, em comparação com o mesmo período do ano anterior. As receitas aumentaram 7% (antes do ajuste pela inflação). Mas isso vale apenas para as grandes empresas, lideradas pelas Magnificent Seven. No conjunto, o setor corporativo não financeiro dos Estados Unidos começa a ver o crescimento dos lucros desaparecer.

E o Federal Reserve deve reduzir ainda mais sua taxa básica de juros nos próximos seis meses, diminuindo o custo dos empréstimos para aqueles que desejam especular nesses ativos financeiros fictícios. Assim, uma recessão ainda não surgiu. Mas, cada vez mais, tudo depende de o boom da IA realmente se traduzir em ganhos de produtividade e rentabilidade. Se os retornos sobre os enormes investimentos em IA se revelarem baixos, isso poderá provocar uma séria correção no mercado de ações.

É verdade que as grandes empresas de tecnologia têm, em sua maioria, financiado seus investimentos em IA com o fluxo de caixa livre. No entanto, as enormes reservas de caixa das Magnificent Seven estão sendo drenadas, e as empresas de IA estão recorrendo cada vez mais à emissão de ações e de dívida.

As empresas de IA estão agora firmando contratos entre si para gerar receita. Trata-se de um “jogo das cadeiras” financeiro. A OpenAI assinou cerca de 1 trilhão de dólares em acordos neste ano para obter poder computacional destinado à execução de seus modelos de inteligência artificial, compromissos que superam em muito sua receita. A OpenAI está queimando caixa em infraestrutura, chips e contratação de talentos, sem possuir o capital necessário para financiar esses planos grandiosos. Para sustentar sua expansão, a empresa levantou grandes quantias por meio da emissão de ações e passou a recorrer aos mercados de dívida. No ano passado, obteve 4 bilhões de dólares em empréstimos bancários e, nos últimos 12 meses, captou cerca de 47 bilhões de dólares em acordos de capital de risco — embora uma parte significativa desse montante dependa de a Microsoft, sua principal apoiadora, permanecer envolvida. A agência de classificação Moody’s observou que boa parte das futuras vendas de centros de dados da Oracle depende da OpenAI e de seu caminho ainda não comprovado rumo à lucratividade.

Muito agora depende de que as receitas de empresas como a OpenAI cresçam o suficiente para começar a cobrir o aumento exponencial dos custos. Economistas do Goldman Sachs afirmam que a IA já está impulsionando a economia dos Estados Unidos em cerca de 160 bilhões de dólares, ou 0,7% do PIB norte-americano, nos quatro anos desde 2022, o que se traduz em aproximadamente 0,3 ponto percentual de crescimento anualizado. Mas isso é mais um artifício estatístico do que um verdadeiro aumento de produtividade gerado pela IA até o momento, e há pouco incremento real de receita no setor. Na verdade, os retornos do desenvolvimento adicional de IA podem estar diminuindo. O custo de lançamento do ChatGPT-3 foi de 50 milhões de dólares; o do ChatGPT-4, de 500 milhões; e o do mais recente ChatGPT-5 chegou a 5 bilhões de dólares e, segundo a maioria dos usuários, não apresentou melhorias perceptíveis em relação à versão anterior. Enquanto isso, empresas como a Deepseek, da China, e outros concorrentes muito mais baratos estão enfraquecendo as perspectivas de receitas.

Portanto, um colapso financeiro está no horizonte. Mas, quando as bolhas de investimento financeiro estouram, a nova tecnologia não desaparece; em vez disso, pode ser adquirida a preços baixos por novos agentes, no que o economista austríaco Joseph Schumpeter chamou de “destruição criadora”. Aliás, esse é exatamente o argumento dos ganhadores do chamado Prêmio Nobel de Economia deste ano, Philippe Aghion e Peter Howitt. Expansões e recessões são inevitáveis, mas necessárias para impulsionar a inovação.

Assim, a tecnologia de IA pode eventualmente gerar um crescimento mais elevado da produtividade, se conseguir reduzir suficientemente a necessidade de trabalho humano. Mas isso talvez só se concretize após um colapso financeiro e a consequente recessão da economia norte-americana. E, se a economia dos Estados Unidos impulsionada pela IA entrar em queda, o mesmo ocorrerá com as demais grandes economias. O tempo não está a favor das Magnificent Seven. De fato, a adoção da tecnologia de IA pelas empresas continua baixa e está até diminuindo entre as companhias de maior porte.

Enquanto isso, os gastos com a capacidade de IA continuam a crescer, e os investidores seguem injetando grandes somas de dinheiro na compra de ações e títulos de empresas do setor. A economia dos Estados Unidos tornou-se, em essência, uma grande aposta na inteligência artificial.


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