Congresso que protege estuprador não pode ser o das crianças, mulheres e pessoas que gestam
Entre omissões e retrocessos, o Parlamento brasileiro insiste em legalizar violências que atravessam infâncias e negam direitos fundamentais
Foto: Valter Campanato/Agência Brasil
Segundo o IBGE, em 2022 o Brasil contava com 27,6 mil crianças entre 10 e 14 anos em união estável. Um número alarmante, mas naturalizado em um país cuja cultura do trabalho e da sujeição dos corpos é de base escravocrata.
Nesse sentido, torna-se imperativo alertarmos para o epidêmico cenário de abusos onde, mesmo com as feministas às ruas, o Congresso permanece legislando pelo interesse de um sistema masculinista, um sistema que usa da religião das camadas mais pauperizadas para impedir o acesso aos direitos reprodutivos de mulheres e pessoas que gestam e, principalmente, negar direitos a crianças violadas.
Segundo os padrões da Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU (CRC), casamentos abaixo da maioridade legal de um Estado é classificado como casamento infantil. Além disso, o quinto Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU urge as nações pela eliminação de casamentos envolvendo meninas menores de 18 anos. Como se não bastasse, a Convenção da ONU sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), também explicita a idade mínima de 18 anos para a legalização de matrimonio ou união estável.
Nesse contexto, em 2024, o Comitê de peritas da CEDAW recomendou expressamente que o Brasil corrigisse seu Código Civil a fim de eliminar qualquer tipo de legalização de casamento de meninas menores de 18 anos, alinhando-se às normas internacionais de proteção de meninas e adolescentes.
No entanto, a recente proposta de atualização do Código Civil brasileiro, seguiu na direção oposta: os juristas responsáveis não apenas ignoraram a recomendação da ONU, como também reforçaram a legalização do casamento infantil ao proporem também o reconhecimento da união estável para meninas de 16 anos — um retrocesso direto na proteção de direitos. Tal medida se insere em uma engrenagem legal mais ampla e que combina idade de consentimento sexual aos 14 anos, permissão de casamento aos 16, criminalização do aborto e a Lei de Alienação Parental, criando um ambiente jurídico que fragiliza meninas e mulheres e restringe sua autonomia.
Nesse sentido, destacamos que, no Brasil, nossos corpos seguem submetidos a um regime de controle e dominação, e não de direitos. Assim, é importante evidenciarmos que o que diz o PL n° 4, de 2025 de autoria do Senador Rodrigo Pacheco, o qual trata da atualização do Código Civil, acaba por propor um reforço legal a prática do casamento de meninas de 16 anos ao se referir por diversas vezes no documento à legalização da união dessas adolescentes ainda em idade escolar.
A regra geral da maioridade civil é aos 18 anos, mas o Código Civil (tanto o vigente quanto o do texto base do PL) permite que pessoas entre 16 e 18 anos possam casar-se, regulamentar união estável ou pacto conjugal, desde que tenham a autorização de ambos os pais (ou de seus representantes legais). A legislação ainda apresenta uma brecha ao apontar a possibilidade de anulação após 180 dias, caso a família não tenha autorizado.
Nesse sentido, é importante salientar que, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a maioria dos casos de estupro contra crianças e adolescentes, além de ocorrerem dentro de seus lares, são perpetrados por parentes ou conhecidos próximos às famílias das crianças.
Os casamentos infantis são uma realidade cruel que afasta crianças e adolescentes dos seus direitos. E foi com esse entendimento que o Comitê de peritas da CEDAW da ONU em 2024 (CEDAW/C/BRA/CO/8-9), demandou ao Estado brasileiro a remoção da exceção que autoriza o casamento de jovens entre 16 e 18 anos. Para elas, além de todas as problemáticas apresentadas, o casamento infantil é um risco de vida para meninas, conforme a justificativa da recomendação: “casamentos infantis muitas vezes levam a gestações e nascimentos precoces e repetidos, contribuindo para as altas taxas de morbimortalidade materna”.
Portanto alertamos que esse tipo de união precoce contribuí com a violência estrutural e fere diretamente os direitos de acesso à saúde, educação e cultura. Situações que, somadas aos riscos gestacionais, dependência econômica e violências diversas, expõem a criança/adolescente a uma vida de vulnerabilidade social extrema.
Salientamos que casamentos precoces não são a realidade da burguesia nacional. No Brasil, a união estável dessa faixa etária atravessa diversas camadas da própria compreensão de interseccionalidade, pois são as famílias de baixa renda e escolarização que permitem que suas crianças e adolescentes se “casem”.
Nossas crianças e adolescentes precisam de políticas públicas, precisam das suas escolas voltadas para o seu desenvolvimento integral, precisam de parques, bibliotecas e teatros para que possam se desenvolver de forma acessível e gratuita. Precisam de educação sexual para melhor compreender seus corpos e assim reconhecer possíveis abusos e violências. Além disso, devem ter seus direitos preservados e garantidos, direitos que vão desde o acesso à pílula do dia seguinte até o aborto legal gratuito, via SUS, para que possam, de fato, romper com a perpetuação de violências sexuais e desigualdades de gênero estruturais.
Criança não é mãe!
É pela vida de quem gesta!