O uso político da Comissão de Ética por Nádia para perseguir a oposição em Porto Alegre
Enquanto protege o governo Melo e sufoca denúncias sobre o desmonte do Dmae, a presidente da Câmara transforma comissão em instrumento de intimidação contra quem ousa fiscalizar
Foto: CMPA/Divulgação
A Câmara Municipal de Porto Alegre vive um dos episódios mais graves de autoritarismo institucional desde a redemocratização. A presidenta da Casa, Comandante Nádia (PL), decidiu acionar a Comissão de Ética para perseguir e tentar cassação de cinco vereadores de oposição – todos envolvidos diretamente na investigação do desmonte do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae). O “crime”? Realizar uma coletiva de imprensa no Plenário Otávio Rocha após serem impedidos de usar uma sala da própria Câmara.
A acusação de Nádia – “uso indevido do plenário” – já nasce frágil. O plenário é espaço institucional dos vereadores, e a prática de coletivas nesses locais é corriqueira em legislativos de todo o país. O que muda aqui é o alvo: parlamentares que denunciam omissões, corrupção, conluio político e o desmantelamento de uma autarquia estratégica para a vida de Porto Alegre.
“A Nádia quer cassar o meu mandato. O que aconteceu aqui foi um retrato do autoritarismo e da violência que temos enfrentado”, afirma Natasha Ferreira (PT), presidente da CPI do Dmae e uma das perseguidas.
““A Nádia precisa desses factoides para ganhar a base dela. Se alimentam desses espetáculos medíocres. Quem tem de ser cassada é ela, que usa a máquina da Câmara pra fazer campanha pra deputada”, completou Roberto Robaina (PSOL), também alvo do processo, ao portal Sul 21.
A representação assinada por Nádia cita o Regimento Interno e o Decreto-Lei 201/1967 para justificar a abertura de processo disciplinar. Mas o gesto – acolhido pela Comissão de Ética – vem na esteira de um conflito político crescente na Casa, marcado por rusgas públicas entre a presidente e os vereadores progressistas, especialmente desde a condução da CPI do Desmonte do Dmae e da pressão contra o projeto de concessão da autarquia à iniciativa privada.
O estopim: a coletiva sobre o Dmae que Nádia tentou impedir
A reunião estava marcada para ocorrer em uma sala interna da Câmara. Porém, segundo Natasha, a presidência negou o uso do espaço. Diante da manobra, os vereadores da oposição decidiram utilizar o plenário – uma prerrogativa parlamentar.
A leitura do relatório paralelo foi marcada por tensão. Nádia apareceu no local para dar voz de repreensão aos parlamentares:
“A vereadora Natasha está incorrendo em atitudes nada regulamentares e nem republicanas.”
Natasha rebateu imediatamente:
“O plenário é soberano. A presidente precisa começar a ler o regimento da Casa.”
A tentativa de transformar um ato legítimo de fiscalização em “quebra de decoro” expõe a escalada autoritária da presidenta da Câmara, que – em vez de garantir o funcionamento institucional – busca sufocar politicamente os adversários, todos de partidos progressistas: PT, PSOL e PCdoB.
CPI do Desmonte do Dmae: o que a base do governo tentou enterrar
A crise atual nasce dentro da CPI. O relatório oficial, comandado pelo governo Melo, concluiu – surpreendentemente – que não houve desmonte no Dmae. A base rejeitou oitivas essenciais, blindou agentes públicos e até evitou depoimentos que poderiam revelar corrupção na autarquia.
O vereador Gringo (Republicanos) declarou na própria CPI que havia provas de corrupção, mas sua filha, testemunha chave, não foi ouvida – decisão sustentada pelo relator Rafael Fleck (MDB) e pela vice-presidente Cláudia Araújo (PSD).
A presidente da CPI, Natasha, classificou a condução da base como “insensibilidade e autoritarismo”. O caso mais grave ocorreu quando a vereadora desmarcou uma reunião por motivo de saúde familiar – seu tio estava hospitalizado – e a base, mesmo assim, convocou e leu o relatório em sessão extraordinária.
O relatório paralelo: o que a base quer calar
Diante do boicote e da tentativa de enterrar provas, os vereadores progressistas apresentaram um relatório paralelo, apontando elementos que a base tentou suprimir:
1. Omissão grave do prefeito Sebastião Melo (MDB)
O documento sustenta que o governo Melo reduziu drasticamente o quadro de servidores do Dmae, negligenciou a manutenção das casas de bombas e desconsiderou alertas técnicos. A omissão teria contribuído diretamente para o colapso do sistema de contenção de cheias que resultou na enchente de 2024.
“A inércia deliberada do prefeito diante do perigo manifesto configura dolo eventual”, afirma o relatório.
2. Responsabilização do ex-prefeito Marchezan Júnior (PSDB)
O texto aponta que o processo de sucateamento começou na gestão Marchezan, que cortou contratos, diminuiu investimentos e abriu caminho para a crise estrutural.
3. Indícios de corrupção ignorados pela CPI oficial
Casos citados no relatório paralelo incluem denúncias internas, falhas graves de supervisão e a blindagem política aos envolvidos.
4. Recomendação de indiciamento
O documento pede que o Ministério Público, o Tribunal de Contas do Estado e outros órgãos investiguem as responsabilidades penais e administrativas de Melo e Marchezan.
5. Defesa do Dmae como autarquia pública
Os parlamentares afirmam que o encerramento apressado da CPI e a narrativa de que “não houve desmonte” servem como palanque para a concessão da autarquia ao setor privado.
Por que Nádia avança agora?
O ataque da presidente da Câmara a seus adversários tem timing político perfeito — para ela e para o governo Melo. A cassação de opositores abre caminho para aprovar projetos de interesse do Executivo, especialmente a concessão do Dmae, sem resistência qualificada.
E também serve para neutralizar parlamentares que:
- Denunciaram irregularidades na CPI;
- Apresentaram relatório paralelo expondo omissões e corrupção;
- Questionam a condução autoritária da presidência;
- ingressaram com ações judiciais contra Nádia, como fez Robaina.
Em vez de cumprir seu papel institucional, Nádia transforma a Comissão de Ética em instrumento para punir – preventivamente – quem ousa fiscalizar o governo.
Cassação para calar, perseguição para governar
A ofensiva de Comandante Nádia não é uma disputa regimental: é um projeto de poder. Um esforço de silenciar vozes progressistas, impedir o avanço das investigações e preservar interesses políticos e econômicos envolvidos no desmonte – e possível privatização – do Dmae.
A crise no Legislativo de Porto Alegre revela algo maior: quando a fiscalização ameaça estruturas de poder, a extrema direita municipal reage com autoritarismo, abuso de prerrogativas e tentativas de cassação. Cabe à sociedade decidir se aceita que o parlamento seja transformado em trincheira de perseguição – ou se exige que ele volte a ser espaço de democracia, transparência e controle público.