A luta por terra, moradia e soberania popular em tempos de crise: aporte programático do MPL Paraná para o debate nacional
Documento elaborado pela Coordenação do MPL Paraná como aporte político e teórico para orientar os debates do Seminário Programático Estadual realizado em Ponta Grossa
O presente documento foi elaborado pela Coordenação do MPL Paraná como aporte político e teórico para orientar os debates do Seminário Programático Estadual realizado em Ponta Grossa, entre os dias 5 e 7 de dezembro de 2025, com delegações do Rio Grande do Sul, Paiçandu/PR e São Paulo. A síntese aqui apresentada estrutura a análise necessária para fortalecer as mesas, os grupos de discussão e as resoluções do encontro. Ao término das atividades, o texto será ajustado conforme o acúmulo coletivo.
1. CONJUNTURA INTERNACIONAL
No momento vivemos uma intensificação do “interregno gramsciano”, como aponta Pedro Fuentes (2025), em que o velho mundo imperialista, decadente e violento resiste a desaparecer, enquanto o novo — oriundo das lutas populares — enfrenta obstáculos gigantescos para emergir. A crise estrutural do capitalismo combina recessão global, financeirização extrema, colapso climático e guerras regionais, configurando uma instabilidade permanente. Nesse contexto, a disputa entre Estados Unidos e China é o eixo estruturante da geopolítica mundial. Katz (2021) observa que a China expressa traços embrionários de imperialismo, especialmente ao lucrar com a primarização latino-americana, ainda distante, porém, do padrão militar intervencionista dos EUA.
Sob Donald Trump, o imperialismo estadunidense ingressa em sua fase mais perigosa em décadas. Além do apoio integral ao genocídio palestino e da retórica neofascista aberta, Trump ameaça intervir militarmente na Venezuela. Essa ameaça não pode ser analisada isoladamente: ela está diretamente vinculada às gigantescas reservas de petróleo descobertas na faixa equatorial, que abrange Venezuela, Guiana, Suriname e Brasil, constituindo a maior fronteira energética emergente do século XXI.
As descobertas de petróleo em águas profundas na Guiana e no Suriname, somadas às reservas históricas da Venezuela e aos campos promissores do litoral norte brasileiro, indicam que a região pode se tornar o maior polo produtor de petróleo e gás do mundo. Essa nova fronteira energética redefine os interesses imperialistas. A narrativa de “defesa da democracia” é apenas a fachada ideológica; o objetivo real é garantir controle geopolítico e energético em um mundo em colapso climático e econômico.
Uma intervenção na Venezuela abriria caminho para disputas diretas com a China, reconfigurações forçadas de fronteiras marítimas, ingerência militar sobre Guiana e Suriname e pressões diretas sobre a soberania brasileira. Trata-se de uma ofensiva da extrema direita imperialista sobre a América Latina, travestida de combate ao “narcoterrorismo”. Por isso, o MPL defende a soberania do povo venezuelano contra qualquer intervenção imperialista, sem renunciar à crítica ao déficit democrático do regime Maduro. O internacionalismo consequente exige essa dupla postura.
Defender a soberania latino-americana, especialmente na faixa equatorial, tornou-se condição indispensável para qualquer perspectiva de emancipação dos povos e de enfrentamento ao imperialismo.
2. CONJUNTURA NACIONAL
A vitória de Lula em 2022 só foi possível pela mobilização massiva dos movimentos sociais, das ocupações urbanas e rurais, dos sindicatos combativos, das periferias e da juventude pobre, que enfrentaram e derrotaram o bolsonarismo golpista. O MPL foi parte ativa desse processo. Sem essa mobilização, o Brasil teria mergulhado em um regime de exceção, com censura, perseguição e eliminação de direitos fundamentais.
Entretanto, a necessária derrota da extrema direita não pode servir como justificativa para o imobilismo do governo Lula III nas pautas essenciais à classe trabalhadora. A reforma agrária e a reforma urbana popular praticamente não saíram do papel; o déficit habitacional aumentou; e a especulação imobiliária se intensificou. Houve discursos, anúncios e solenidades — mas o povo pobre continuou sem terra e sem teto.
Essa paralisia decorre de uma escolha política: governar em conciliação com o grande capital e ficar refém do Centrão. O Ministério das Cidades foi entregue ao MDB de Jader Barbalho Filho, neutralizando qualquer perspectiva de política séria de moradia popular. O agronegócio não enfrentou contradição real com o governo, mantendo-se intocado. O conjunto dessas opções reduziu a agenda de transformação social à mera retórica.
O MPL reafirma que a extrema direita precisa continuar derrotada e que pode haver apoio crítico a um eventual governo Lula IV — mas esse apoio não será um cheque em branco. Ele dependerá da disposição efetiva do governo de romper com a paralisia dos últimos quatro anos e enfrentar o latifúndio, o mercado imobiliário, o arcabouço fiscal e as estruturas de poder que bloqueiam a reforma agrária e a reforma urbana popular.
Por isso, é imprescindível que o MPL apresente a Lula um conjunto de reivindicações programáticas claras, públicas e inegociáveis, construídas a partir das demandas concretas do povo pobre — terra, moradia, regularização fundiária, investimentos massivos em habitação popular, retomada real da reforma agrária, enfrentamento ao agronegócio predatório e devolução das cidades ao povo trabalhador. O governo deve assumir compromissos objetivos, com metas, prazos e mecanismos de participação e controle popular.
Apoio crítico só existe quando há compromisso concreto com o povo. Sem isso, não haverá apoio político do MPL à busca de Lula por um quarto mandato. O movimento marchará ao lado de Lula contra o bolsonarismo, mas marchará de forma autônoma, exigindo que as pautas históricas dos pobres sejam assumidas sem hesitação.
3. OS RISCOS DA ADAPTAÇÃO E DA CAPITULAÇÃO DE LIDERANÇAS
O crescimento do MPL aumenta também o risco de adaptação institucional e cooptação de lideranças pelo reformismo. Para evitar esse desvio, é indispensável fortalecer a independência de classe, a disciplina organizativa e a formação política permanente.
A distinção entre aliados táticos e aliados estratégicos é fundamental. Aliados táticos — parlamentares, figuras públicas, setores progressistas — podem ser importantes em determinados momentos, mas tendem a empurrar o movimento para dentro dos limites da ordem, buscando moderar sua radicalidade. Aliados estratégicos são as famílias das ocupações, os trabalhadores precarizados, os povos do campo e das periferias: são eles que possuem interesse material na transformação radical da sociedade.
A força do MPL não vem de gabinetes, mas do povo ocupando latifúndios improdutivos — rurais e urbanos — e arrancando direitos pela ação coletiva. O Estado brasileiro protege historicamente a propriedade privada e a especulação imobiliária, razão pela qual terra e moradia nunca avançarão apenas por dentro da institucionalidade.
A cooptação de lideranças do MPL Paraná é um alerta grave. Ela evidencia, de forma concreta, o tipo de pressão, assédio e sedução que o Estado, os governos e as instituições exercem sobre dirigentes de movimentos populares: cargos, estruturas, convites, salários, prestígio social. Uma liderança do MPL, apesar de todos os assédios, não pode sucumbir às benesses das relações com instituições, governos e estruturas burocráticas. Quando isso ocorre, não é apenas uma pessoa que se afasta: é uma fração da nossa força histórica que é desviada para dentro da ordem.
Nesse sentido, os ensinamentos de Florestan Fernandes são fundamentais para o MPL e sua militância, especialmente para aqueles e aquelas que permanecem nas trincheiras de luta do movimento. Quando Florestan sintetiza a linha da classe trabalhadora em:
“Contra a intolerância dos ricos, a intransigência dos pobres. Não se deixar cooptar. Não se deixar esmagar. Lutar sempre!”,
ele aponta exatamente o caminho que o MPL precisa seguir:
- não se deixar cooptar,
- não se deixar esmagar,
- lutar sempre, mantendo a intransigência dos de baixo frente à intolerância dos de cima.
Levar a sério Florestan significa recusar qualquer projeto de “integração pacífica” do movimento às estruturas do poder. Significa compreender que, para o MPL, não há carreira individual que valha mais do que a fidelidade à nossa classe. As lideranças são instrumentos da luta coletiva, não proprietárias de mandatos ou trajetórias pessoais. Quando uma liderança cai na armadilha da conciliação, cabe ao movimento reforçar sua própria identidade de classe e valorizar os militantes que seguem firmes ao lado do povo pobre, nas ocupações, nas cozinhas coletivas, nas jornadas de luta e nos enfrentamentos cotidianos.
Para não repetir os erros de organizações que se burocratizaram e perderam força, o MPL precisa reforçar sua autonomia frente ao Estado, aos partidos e ao cretinismo parlamentar. A vitalidade do movimento está na sua independência, na sua capacidade de formar novos quadros e na força organizada dos de baixo.
4. DESAFIOS PARA 2026
O ano de 2026 exigirá ofensiva, coragem e organização. O MPL deve preparar uma grande jornada nacional de lutas em março, com trancamentos de rodovias, ocupações coordenadas, marchas e ações de massa capazes de impor a pauta da reforma agrária e urbana. Nenhuma dessas pautas avançará sem confronto direto com a ordem.
Outro ponto central será a reunião da Coordenação Nacional do MPL em janeiro, no Mato Grosso do Sul, espaço decisivo para organizar a linha política nacional e preparar a jornada de lutas.
Como movimento em expansão, o MPL deve reforçar sua política de formação. A cartilha de estudos é referência, mas é indispensável retornar aos clássicos do marxismo — Marx, Engels, Lenin. Sem teoria revolucionária, não há prática revolucionária; sem formação permanente, o movimento perde sua causa.
Além disso, o MPL deve incorporar definitivamente a justiça climática e o ecossocialismo como eixos centrais. Os pobres são os mais afetados pelas enchentes, pelos deslizamentos, pelas ondas de calor e pela perda de produtividade agrícola causada pelo colapso climático. A classe trabalhadora — que vive em casas frágeis, terrenos irregulares e regiões de risco — é quem paga o preço mais alto pela destruição ambiental causada por um modelo capitalista predatório. A luta por terra, moradia e clima é uma só, e exige um programa ecossocialista que una soberania, território, justiça ambiental e poder popular.
**SÍNTESE POLÍTICA DO ENCONTRO:
1% PARA MORADIA DIGNA E 1% PARA A REFORMA AGRÁRIA**
A Constituição Federal afirma que a moradia é um direito social e atribui a União, Estados, Distrito Federal e Municípios a responsabilidade compartilhada pela política habitacional. Porém, ao não criar fontes de financiamento obrigatórias, a Constituição abriu espaço para um cenário de omissão crônica: nenhum ente federativo assume metas claras, e a população pobre fica refém do improviso, da filantropia e das promessas eleitorais. O resultado é um país onde milhões vivem sem moradia digna, enquanto a especulação imobiliária cresce e avança sobre as cidades.
No campo, a situação não é diferente. A Constituição estabelece que a reforma agrária é competência exclusiva da União, tendo o INCRA como órgão responsável. Entretanto, o desmonte do governo Bolsonaro, seguido da paralisia e procrastinação do governo Lula III, deixou a pauta praticamente estagnada. O INCRA opera com orçamento insuficiente, metas simbólicas e falta de prioridade política. Falta terra para quem nela trabalha e sobra terra para quem a mantém improdutiva.
Diante desse quadro, o MPL Paraná adota como bandeira programática do Seminário:
• 1% do orçamento da União para moradia digna;
• 1% do orçamento do Estado do Paraná para moradia digna;
• 1% do orçamento dos Municípios para moradia digna;
• 1% do orçamento federal para a reforma agrária.
Esses percentuais devem ser vinculados por lei, com fundos específicos e participação popular obrigatória. Sem vinculação orçamentária, a política habitacional e a reforma agrária continuarão reféns da boa vontade de governos.
O potencial dessa pauta é imenso. Em 2026, 1% do orçamento federal equivale a cerca de R$ 65 bilhões — suficientes para iniciar um amplo programa nacional de habitação e retomar a reforma agrária em escala. No Paraná, 1% representa cerca de R$ 816 milhões, que poderiam financiar milhares de moradias populares e infraestrutura em assentamentos. Em Ponta Grossa, 1% significa R$ 20,5 milhões anuais, capazes de viabilizar centenas de casas por ano, além de urbanização e regularização fundiária.
A adoção dessa política transforma a moradia e a terra em direitos efetivos, e não apenas retórica constitucional. É uma bandeira concreta, objetiva, mensurável e profundamente popular.
Justiça Climática como Eixo Programático
A crise climática aprofunda todas as desigualdades. Os pobres são os que mais morrem nas enchentes, que mais perdem nas queimadas, que mais sofrem com deslizamentos, ondas de calor e destruição de suas casas. As políticas habitacionais e agrárias fracassadas condenam milhões à vulnerabilidade permanente.
Por isso, o Seminário incorpora como síntese programática a luta por justiça climática:
- Nenhuma política de habitação pode ignorar enchentes, calor extremo e desastres ambientais.
- Nenhuma reforma agrária é completa sem preservar biomas, recuperar áreas degradadas e fortalecer a agricultura familiar agroecológica.
- Nenhum modelo de desenvolvimento pode continuar sacrificando vidas pobres enquanto protege lucros de grandes empresas e latifúndios.
Justiça climática significa reconhecer que o povo trabalhador não pode continuar carregando nas costas o peso de uma crise que não criou.
5. CONCLUSÃO: LUTA DE CLASSE, AÇÃO DIRETA E UNIDADE PARA AVANÇAR!
O MPL aposta na luta da nossa classe como via para conquistar os direitos que nos são sistematicamente negados: moradia digna, terra, trabalho e liberdade. A experiência histórica do Brasil mostra que não é pela via da conciliação de classes que a reforma urbana popular e a reforma agrária vão avançar. Décadas e décadas passaram, séculos se acumularam, governos se sucederam, e a estrutura fundiária e urbana manteve sua essência de opressão e exclusão.
Nós, do MPL, avançamos sobre o latifúndio urbano e rural improdutivo sob o governo Bolsonaro e seguimos ocupando sob os governos seguintes. Essa é a nossa escola: a ação direta, alicerçada na luta independente do nosso povo. Ocupamos terras e prédios abandonados porque é ali que a Constituição ganha carne e osso; é ali que as palavras “função social da propriedade” deixam de ser letra morta e se tornam casa, horta, creche comunitária, cozinha solidária, biblioteca popular.
É fundamental que a unidade seja uma marca do nosso caminho. O MPL defende que a máxima unidade seja construída com setores dos movimentos sociais, das ocupações urbanas e rurais, das organizações de base que tenham como centralidade essa agenda e essa disposição de lutar. Unidade não é apagar diferenças, mas construir um campo comum de ação que coloque terra, moradia, justiça climática e soberania popular no centro da disputa.
Reforçamos o convite aos lutadores e lutadoras, aos movimentos sociais do campo e da cidade:
na segunda quinzena de janeiro, entre 23 e 25 de janeiro, o MPL se reunirá em Campo Grande (MS) com sua Coordenação Nacional, aliados e aliadas, para organizar e reforçar a agenda de lutas para 2026. A reforma agrária e a reforma urbana popular só avançam na marra, pela pressão organizada, pelas ocupações, pela desobediência à ordem injusta. Nosso povo precisa ter claro: é avançando as ocupações e a nossa luta que vamos alcançar nossos objetivos.
Seguiremos, portanto, o caminho que a própria história nos ensinou:
- independência de classe,
- ação direta,
- unidade na luta,
- e fidelidade aos de baixo.
Porque, não é dos palácios que virá a libertação da nossa classe, mas das ocupações, das periferias, das periferias rurais e urbanas em movimento.
Coordenação MPL Paraná
Ponta Grossa, dezembro de 2025