Destruição com preço de sangue: cientista do Inpe alerta para o custo humano da devastação ambiental
Crise climática

Destruição com preço de sangue: cientista do Inpe alerta para o custo humano da devastação ambiental

Para a pesquisadora Luciana Gatti, o pacote aprovado no Congresso acelera o desmonte ecológico e reforça a urgência da ação ecossocialista contra o colapso climático – antes que mais vidas sejam perdidas

Tatiana Py Dutra 5 dez 2025, 08:00

Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

Vivemos um instante decisivo – e quem fala com coragem para o grande público é a cientista Luciana Gatti. À frente do Laboratório de Gases de Efeito Estufa do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), ela prepara uma nota técnica a ser entregue ao Supremo Tribunal Federal (STF), em apoio à ação do Observatório do Clima e da bancada do PSOL contra o PL da Devastação. A urgência não é abstrata: é real – já há mortos, sofrimento crescente e um futuro climático de risco alto.

Mas quem realmente está por trás da pressa para aprovar esse retrocesso? A defesa do PL tem como protagonistas grandes atores do agronegócio, da mineração, da energia, da infraestrutura e da construção civil – setores que viram no novo marco regulatório a chance de baratear custos e acelerar aprovações de empreendimentos públicos e privados. 

Esses setores argumentam que o regime atual é “excessivamente burocrático, lento e inseguro para o investidor”, e dizem que o PL traria uma “racionalização” e padronização nacional do licenciamento, reduzindo entraves e criando um ambiente competitivo para exportações e expansão econômica. 

Para Gatti – e para toda a comunidade científica que acompanha a crise climática -, essas justificativas escondem o óbvio: liberar hidrelétricas, estradas, mineração, desmatamento e agronegócio com licenciamento simplificado significa apostar na devastação, no colapso ecológico e no retrocesso social. Ela alerta que as mudanças impostas pelo PL não são tecnicamente neutras, mas profundamente ideológicas: priorizam o lucro imediato e o ganho de corporações sobre a vida, os biomas e as futuras gerações.

Nesta entrevista, Gatti expõe dados que o Congresso parece ignorar – os da degradação, da crise climática e do sofrimento humano – e explica por que não basta resistir à devastação: é preciso lutar por justiça climática, soberania ambiental e um projeto de sociedade verdadeiramente sustentável.

Fale um pouco dessa iniciativa de ir ao Supremo contra o PL da Devastação. 

Luciana Gatti – Acho que a comunidade científica não pode ficar calada quando está vendo que as mudanças climáticas já chegaram. Já tem muita gente morrendo e nós estamos vendo – primeiro, o governo anterior, o governo Bolsonaro, acelerando as mudanças climáticas com essa quantidade enorme de desmatamento e isso, evidentemente, acelerou os eventos extremos e o número de mortes no Brasil. E aí, Bolsonaro saiu, mas o Congresso assumiu a tarefa de seguir acelerando as mudanças climáticas. A gente não pode, sabendo tudo o que a gente sabe – que desmatamento leva a aumento da temperatura, a redução de chuva, que acelera as mudanças climáticas, os eventos extremos, que vão causar muito mais mortes – ficar calado. Pelo menos, eu acho assim: cientista é cidadão do mundo, cientista faz parte da sociedade. Esse é o quinhão com o qual a gente pode contribuir com a sociedade. Então, é assim que eu encaro a minha atuação como cidadã. É nisso que eu posso contribuir. Eu posso compartilhar dizendo tudo que eu sei. A sociedade me paga para eu viver estudando e o mínimo que eu posso fazer é voltar para a sociedade e dizer o que eu aprendi. 

Que tipo de dados científicos o Congresso ignora quando acelera propostas que estimulam o desmatamento e flexibilizam o ensino ambiental? 

Luciana Gatti – O Congresso ignora que o desmatamento causa um efeito. Um efeito na perda de chuva, no aumento de temperatura e na aceleração dos eventos extremos. E aí, a gente hoje tem um problema na ciência que são ou cientistas de outras áreas ou pessoas que trabalham em ambientes científicos, mas que são na verdade negacionistas da ciência que atingem uma determinada vantagem pessoal indo contra tudo que a grandíssima maioria dos pares concordam, com o que é consenso. Nós temos mais de 95% da comunidade científica assumindo todas as evidências, mas você vê um ou outro resolvendo falar contra. O agronegócio, que quer autorização para desmatar, obviamente que vai adorar o discurso desse falso cientista. E ele ganha muito dinheiro com palestras e tal, né? É complicado eu afirmar isso que eu posso até ser processada. Mas a gente poderia dizer, que eles encontram vantagens em fazer o discurso que esses caras querem ouvir.

Então assim fica difícil. Porque, veja, a gente teve pessoas da área da ciência, que não são cientistas climáticos, que não estão lá estudando os efeitos de desmatamento, falando contrário [de nós], Como é conveniente para seu público acreditar nesse um, eles estão acreditando. Isso é um problema muito sério. Talvez nós,.enquanto comunidade científica, devamos tentar alguma coisa contra essas pessoas que usam do fato de trabalhar numa instituição científica para ficar propagandeando mentiras sobre tudo que já se sabe e já tem comprovação. Porque essas pessoas falam sem evidência científica nenhuma, mas repetem exatamente o que esse setor que quer continuar a destruir na natureza quer ouvir. 

Quais são as lacunas ambientais e climáticas que o PL cria para os próximos anos e quanto tempo levaríamos para reparar esses danos? 

Luciana Gatti – Eu acredito que não conseguiríamos. A mudança climática é como uma bola de neve descendo uma montanha nevada. Como é que se para essa bola?.E um desequilíbrio provoca outro, que provoca outro, que provoca outro. É isso que causa tamanho desespero e angústia nos cientistas climáticos. Estamos caminhando para um cenário catástrofe, cada vez mais gente morrendo, cada vez eventos mais devastadores causando caos, destruição, uma quantidade cada vez maior de mortes. Esse é o cenário. É um cenário exponencial e que está aumentando. Então, tudo que a gente puder fazer para não piorar a situação, temos que fazer. A gente tem que fazer mais do que isso na verdade. Porque o governo Lula só fala em acabar com o desmatamento lá em 2030. Para mim, isso é ridículo. Se o Desmatamento Zero fosse hoje, já não resolveria. Porque a floresta que a gente perdeu, né? 

Vamos fazer outro raciocínio. Antes de Bolsonaro, até 2018, o número de mortes por eventos extremos no Brasil significava entre 60 e 70. Em 2019, entra Bolsonaro com Ricardo Salles desmatando geral. Acabou a “fábrica de multas do Ibama”, desmatamento generalizado no Brasil inteiro: o número de mortes salta para 300 por evento extremo de chuva. Veja a resposta imediata. Porque cada árvore participa do equilíbrio climático. Como? A árvore pega a água do solo e joga na atmosfera na forma de vapor – então a água passa do estado líquido para vapor, o que é uma mudança de estado físico. Para acontecer isso com a água, você precisa dar energia do calor para ela. A colocamos no fogo para ela ferver, você tem que dar calor para ela. E a árvore, quando está fazendo isso, está roubando do ambiente a energia do calor, que é a energia infravermelha, que é a energia das mudanças climáticas, do aquecimento global, que é a energia que o gás de efeito estufa segura aqui. 

Na contramão desse processo, você vê um desmatamento que acelerou tremendamente. Segundo o Instituto Plena Mata, em 2019, durante o governo Bolsonaro, foram cortadas 24 árvores por segundo no Brasil. Por segundo! Isso significa dizer que foi acelerada a mudança climática, entendeu? E o que a gente vê no Brasil? Um aumento intenso de eventos extremos de chuva e ondas de calor que estão vitimando cada vez mais pessoas. Então não tem como recuperar isso. 

Vamos supor que a gente consiga convencer o governo Lula e o Congresso de que é necessário recuperar toda a floresta derrubada durante o governo Bolsonaro. Só na Amazônia, dá 51 mil km² de floresta primária, acrescido de mais 11 km² do governo Lula – que reduziu o desmatamento, mas continua destruindo, só que numa velocidade menor. Vamos supor que a gente gaste um monte de dinheiro e replante: quantas décadas serão necessárias para voltarmos a ter a floresta que a gente tinha? E a mudança climática cada vez pior. Então, não tem recuperação. A gente tem que pensar na sobrevivência da raça humana, das outras espécies. A situação é muito pior, muito pior, a situação é gravíssima. 

Estamos caminhando para a sexta extinção da humanidade. Não dá pra admitir que isso aconteça. E também não dá para prever. Se alguém te falar “no ano tal vai acontecer não sei o que, não sei o que é lá”, esquece. Isso é uma previsão de modelagem. O que a gente tem certeza absoluta vai ser cada vez pior, muito pior e cada vez mais difícil da gente encontrar uma situação que a gente enquanto ser humano não sobreviva, porque o ser humano não sobrevive acima de uma temperatura “x”, uma condição de temperatura e umidade, a gente morre. A ONS calcula que 500 mil pessoas morrem por ano no planeta por ondas de calor. [O médico patologista] Paulo Saldiva acha que o número é em torno dos 14 mil no Brasil. Então nós estamos falando de 600 pessoas mortas em eventos extremos de chuva, mas tem umas 14 mil morrendo de calor que não estão nos jornais, que não são vistos, porque não tem laudo sobre morte por onda de calor. Mas na onda de calor você tem um AVC. Aí na causa mortis vai outra coisa. 

Então isso literalmente significa um decreto de morte para uma parcela grande da população. E quem mais morre são crianças e idosos – especialmente, mulheres idosas – pobres. Por quê? Porque numa onda de calor, o rico tem ar-condicionado. Ele mora numa casa que tem telhado e tem forro. O pobre não tem forro, muitos usam telhas de material que absorve muito calor; a casa é baixa e nem ventilador tem. Então, isso é uma sentença de morte para muita gente. 

A situação é muito grave e a mídia não dá a devida importância. Eu estava lendo a manifestação da Academia Brasileira de Ciências, ela é super light, sabe? Ela fala em “garantir as condições dos ecossistemas”. Não! É muito pior do que isso. É muito pior do que isso. Então, esse é o motivo do meu engajamento, né? Na hora que você entende isso, você fala o que? Eu vou comprar um pedaço de terra no meio do mato, numa parte alta, vou plantar árvores, vou me preservar ali, ou você,  cata a bandeira e luta para que outras pessoas tenham acesso a essa informação, para que a gente iniba esse tipo de coisa que está acontecendo no Congresso.

O que o PL da Devastação significa em relação à segurança hídrica e climática do Brasil, especialmente no Centro Sul, que depende de rios voadores?

Luciana Gatti – O PL vai liberar desmatamento, vai liberar qualquer tipo de ação que esses caras julgam que não vai impactar. Ah, eu vou desmatar só esse pouquinho, ah, eu vou represar o rio… É tão pequeno e eu acho que não tem mal nenhum. Uma vez, eu escutei uma frase do produtor de soja, que disse o seguinte: “Floresta é desperdício de terra”. É isso que eles pensam e esse é o problema, eles não entendem que a floresta é uma fábrica de chuva. A floresta amazônica é responsável por uns 50% dos rios voadores que trazem umidade para todo o resto da América do Sul. O pessoal não está só desmatando a Amazônia, está destruindo todos os ecossistemas. 

Os rios, já tem tempo, estão mostrando redução de nível da água. Quando a gente vê um rio secando, significa que até o lençol freático se reduziu, porque o rio retorna para o lençol freático. Aí vemos o agronegócio tirando água direto do lençol freático para fazer irrigação artificial, produzindo alimento em áreas áridas ou semiáridas, como é o Matopiba [zona de expansão agrícola localizada que abrange áreas dos estados do Maranhão, tocantis, Piauí e Bahia]. E toda aquela parte dos rios do Amazonas para baixo está lotada de irrigação artificial. Isso impacta o nosso fornecimento à água, isso impacta a chuva, que vai afetar a produção do alimento. Se o rio baixa de volume, você tem a energia elétrica mais cara, porque aí os caras vão usar a termoelétrica. E foi por isso que privatizaram a Eletrobras. O Bolsonaro botou lá um jabuti de 30% de produção por termoelétrica para deixar a água para o agronegócio. E eles já estão afetando tremendamente o nosso acesso à água. Nós já estamos vendo regiões desertificando, já estamos vendo regiões desertificand, já estamos tendo menos chuva. 

Tudo está conectado, não tem nada desvinculado na natureza, nada. Tudo faz parte desse ecossistema. Você mexe numa coisa, você afeta o resto. 

Como é que fica a credibilidade internacional do Brasil com os acordos climáticos, com a aprovação deste pacote? Como é que isso afeta a agenda global? 

Luciana Gatti – Isso vai pra zero. É a mesma coisa que o Trump tá fazendo lá nos Estados Unidos. Perfura, gente, perfura. Quer dizer, os caras estão na prática dando chapéu para o combate à mudança climática, eles querem fazer dinheiro. E essa é a decisão do Congresso Nacional. Na hora em que se prioriza o lucro, destruindo a vida – não só a humana, como a de todas as outras espécies – é a barbárie, é a lei do mais forte, de passar em cima de por quem tiver que passar por poder. É a sociedade cada vez mais incivilizada. 


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