Kast: a “via democrática” ao pinochetismo
O significado da vitória de Kast e os desafios da esquerda chilena
No domingo, 14 de dezembro, o ultradireitista José Antonio Kast se impôs com ampla vantagem (58,2%) no segundo turno presidencial frente à sua adversária, a governista e militante do Partido Comunista, Jeannette Jara (41,8%).
O resultado se insere no que já vinha sendo antecipado pelas principais pesquisas — em especial a CADEM, cuja medição de 29 de novembro projetou com notável precisão o desfecho final —, mas também confirma uma tendência política mais ampla, visível desde a eleição primária governista de junho. Como se assinalou então: “O desafio para a candidatura de Jeannette Jara é enorme em vários níveis. O primeiro e mais relevante é transformar os 825.835 votos da primária nos 7 milhões que serão necessários para vencer no segundo turno presidencial, que, pela primeira vez desde 2012, será realizado com voto obrigatório, uma modalidade que, segundo todas as tendências, tem favorecido a direita”.
Por sua vez, após o primeiro turno presidencial, assinalávamos que “os resultados eleitorais do domingo, 16 de novembro, mostram com nitidez a magnitude da vitória da direita. Na eleição presidencial, esse bloco alcançou 50,3% dos votos, distribuídos entre José Antonio Kast (23,9%, Partido Republicano), Johannes Kaiser (13,9%, Partido Nacional Libertário) e Evelyn Matthei (12,5%, Chile Vamos)”.
Com uma participação de 85% do eleitorado, Jeannette Jara ampliou seu contingente eleitoral entre o primeiro e o segundo turno em cerca de um milhão e setecentos mil votos. No entanto, esse crescimento mostrou-se claramente insuficiente diante do avanço de Kast, que somou mais de quatro milhões de novos eleitores e venceu em todas as regiões do país, sem exceção.
A análise da distribuição do voto por gênero e idade permite detalhar ainda mais essa dinâmica. Kast obteve seus melhores resultados no eleitorado masculino em todas as faixas etárias, mas também registrou um desempenho particularmente alto entre mulheres de 35 a 54 anos. Jara, por outro lado, venceu no voto feminino abaixo de 35 anos e entre as maiores de 54, configurando um apoio mais fragmentado e socialmente localizado.
Quem é José Antonio Kast?
José Antonio Kast não é um outsider. Militante por mais de duas décadas no partido histórico do pinochetismo, a União Democrata Independente (UDI), foi deputado por dezesseis anos consecutivos (2002–2018) e se apresentou em três ocasiões como candidato presidencial.
Em 2016, Kast deixou a UDI argumentando que o partido havia abandonado seu projeto fundador — ultraconservador nos costumes, católico na cultura e neoliberal na economia — em favor de uma estratégia de massificação e moderação discursiva. Pouco depois, em 2017, lançou sua própria plataforma presidencial, a Ação Republicana, que em 2019 se constituiu formalmente como partido político sob o nome de Partido Republicano, sua atual força de referência.
Em coerência com essa trajetória, em 2020 Kast foi um dos signatários da chamada Carta de Madri, uma iniciativa impulsionada pela extrema direita internacional com o objetivo explícito de frear “o avanço do comunismo” na América Latina.
Kast é o caçula de dez filhos do casamento de imigrantes alemães Kast-Rist. Seu pai, Michael Kast, foi soldado das forças armadas da Alemanha nazista (Wehrmacht) e esteve filiado ao Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães.
Tanto seus pais quanto vários de seus irmãos desenvolveram atividades empresariais no setor agrícola da zona central do país. Existem, além disso, investigações jornalísticas e judiciais documentadas que vinculam membros da família Kast a atividades criminosas da Central Nacional de Informações (CNI) durante a ditadura de Pinochet, incluindo participação em patrulhamentos civis junto às forças repressivas do regime e em operações associadas a graves violações de direitos humanos, entre elas desaparecimentos forçados.
O irmão mais velho de José Antonio, Miguel Kast — economista formado na Universidade de Chicago — ocupou cargos-chave durante a ditadura: foi ministro do Trabalho e posteriormente presidente do Banco Central. Em seu papel como ministro do Escritório de Planejamento Nacional (ODEPLAN), entre 1978 e 1980, Miguel Kast Rist foi um dos principais impulsionadores da categoria estatística de “extrema pobreza”, que orientou a focalização do gasto social nos setores mais empobrecidos. Essa definição institucionalizou uma política de gasto social mínima, voltada à mera sobrevivência, plenamente coerente com o programa de ajuste estrutural e desmonte do Estado social promovido pela ditadura.
De extração familiar e formação política ultracatólica, Kast se reconhece como discípulo fiel do principal ideólogo civil da ditadura chilena e fundador da UDI, o falecido ex-senador Jaime Guzmán. Em coerência com essa matriz doutrinária, Guzmán sustentava, frente ao aborto, uma posição extrema: “A mãe deve ter o filho mesmo que ele nasça com anomalias, não tenha sido desejado, seja fruto de um estupro ou mesmo que, ao tê-lo, isso resulte em sua morte”.
Como deputado, Kast se opôs sistematicamente à ampliação de direitos civis e sexuais. Votou contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo e contra a lei antidiscriminação, militou ativamente contra a educação sexual integral, rejeitou a distribuição gratuita da pílula do dia seguinte e defendeu a revogação da legislação vigente sobre aborto em três casos.
Essa orientação também se traduziu em suas propostas programáticas. Durante sua segunda candidatura presidencial, Kast propôs a eliminação do Ministério da Mulher e da Equidade de Gênero, sua substituição por um Ministério da Família e a restrição de determinadas ajudas sociais — particularmente relevantes para mulheres empobrecidas — exclusivamente a mulheres casadas.
Em 2017, no marco de sua primeira incursão presidencial, sua esposa, Pía Adriasola, relatou em uma entrevista que, ao manifestar o desejo de adiar uma gravidez antes de ter o terceiro filho — o casal tem nove —, consultou um médico que lhe receitou anticoncepcionais orais. Ao comunicar essa decisão a Kast, segundo seu próprio testemunho, ele reagiu com a frase “Você está louca? Não pode” e depois a levou a um sacerdote, que lhe indicou que o uso dessas pílulas era proibido.
Em agosto daquele mesmo ano, José Antonio Kast foi proclamado candidato por agrupações de militares da reserva e por organizações de familiares de condenados por crimes contra a humanidade. Em um ato realizado no Teatro Caupolicán, declarou: “Meu nome é José Antonio Kast, e eu sim defendo com orgulho a obra do governo militar, sim acredito que muitos militares e membros das Forças Armadas estão sendo perseguidos e eu sim me comprometo, se for Presidente, a proteger as Forças Armadas”, comprometendo-se a conceder indulto “a todos aqueles que injusta ou desumanamente estão presos”.
Entre esses condenados está Miguel Krassnoff Martchenko, brigadeiro do Exército no momento do golpe de Estado de 1973, posteriormente agente da Direção de Inteligência Nacional (DINA) — a polícia secreta da ditadura — e condenado a mais de 1.060 anos de prisão em vinte e sete processos por sequestro, tortura e desaparecimento forçado. Kast, que visitou Krassnoff na prisão, foi consultado reiteradamente durante esta última campanha presidencial sobre se mantinha sua intenção de indultá-lo. Invariavelmente, recusou-se a responder.
Tudo isso permite caracterizar José Antonio Kast como um defensor explícito e coerente da obra da ditadura de Pinochet, não apenas em termos de uma reivindicação simbólica da gesta anticomunista do passado, mas como uma tentativa consciente de recuperar o enquadramento programático pinochetista para enfrentar as múltiplas crises que atravessam hoje a sociedade chilena. Sua proposta combina mão dura para restabelecer “o império da lei”, desregulamentação e mercantilização dos serviços sociais para “melhorar as condições para o investimento e a criação de empregos”, e uma concepção de sociedade fundada na centralidade da família, no direito preferencial à propriedade privada, no empreendedorismo individual e no controle patriarcal sobre mulheres e infâncias.
O que esperar do próximo governo?
Em 2023 — após a derrota do processo constituinte surgido no calor do estallido social — ocorreu uma segunda tentativa de reforma constitucional. Esse novo processo foi, em praticamente todos os sentidos, a antípoda do anterior. O órgão denominado Conselho Constitucional foi integrado por cinquenta conselheiros, dos quais vinte e dois pertenciam ao Partido Republicano, força que também presidiu a instância.
A proposta constitucional emanada desse órgão, elaborada à imagem e semelhança do ideário republicano, consistia em uma espécie de retorno ao texto original da Constituição pinochetista de 1980, despojado das reformas introduzidas durante o período democrático. O projeto foi rejeitado no plebiscito de dezembro de 2023, com 55,7% dos votos. Com esse resultado, encerrou-se o ciclo constitucional aberto em 2019. No entanto, o processo permitiu testar o grau de dogmatismo do projeto republicano e tornar visíveis várias das figuras políticas que, com alta probabilidade, desempenharão um papel relevante nos próximos quatro anos de governo.
Na noite de domingo, em seu primeiro discurso como presidente eleito, Kast adotou um tom moderado. Declarou respeito pela democracia, pelos adversários políticos e pela pluralidade, manifestou uma suposta vocação para acordos e reconheceu o aporte dos mandatários que o precederam. Em alguns momentos, parecia apropriar-se da chamada “política dos acordos” que caracterizou a governança pós-ditadura: um esquema sustentado por uma centro-esquerda que havia assumido a economia social de mercado e por uma direita que, progressivamente, havia tentado se distanciar do legado explícito do pinochetismo para administrar a transição democrática.
No entanto, essa retórica conciliadora contrasta de maneira marcante com as primeiras definições programáticas de sua equipe. O plano anunciado para os primeiros três meses de governo se alinha com o Kast conhecido durante a campanha e se estrutura em torno de quatro eixos centrais: contrarreforma tributária, desregulamentação, ofensiva contra o trabalho e ajuste fiscal.
- Na área tributária, Kast propõe reverter a reforma impulsionada durante o segundo governo de Michelle Bachelet, por meio da redução de impostos para médias e grandes empresas e da eliminação do imposto sobre os lucros individuais dos empresários. Trata-se de uma orientação que reforça a regressividade do sistema tributário e consolida uma transferência de renda para os setores de maior poder econômico.
- Na área regulatória, o programa de Kast busca desmontar os limites existentes ao poder do capital, com ênfase particular na desregulamentação dos marcos de proteção ambiental e na flexibilização das restrições ao negócio imobiliário. Trata-se de uma agenda há muito impulsionada pelo grande empresariado, que nos últimos anos popularizou o neologismo “permisologia” para deslegitimar os processos de avaliação de impacto ambiental aplicados a projetos com potenciais efeitos negativos sobre bens protegidos pela legislação vigente.
- No eixo do ataque ao trabalho, o objetivo central é reduzir as capacidades de fiscalização e sanção frente a práticas antissindicais e antioperárias, por meio do enfraquecimento da Direção do Trabalho. A isso se soma a intenção explícita de limitar a aplicação da Lei das 40 horas, aprovada durante o atual governo, revertendo inclusive o avanço limitado que essa norma representou ao colocar a questão do tempo de vida no centro da luta do movimento operário.
- Por fim, no que diz respeito à redução do gasto fiscal, a proposta foi deliberadamente altissonante: um corte de 6 bilhões de dólares. A magnitude do número gerou rapidamente suspeitas e demandas por maior precisão. Diante disso, um dos porta-vozes da campanha foi explícito ao justificar a negativa em detalhar os ajustes: “Evidentemente, não vamos dar porque nos paralisam no dia seguinte. Se você diz ‘acabo com o programa X’, vamos ter a rua incendiada”.
Para além dessa franqueza cínica, as primeiras medidas anunciadas se reduzem a formulações vagas: promessas de limitar os chamados “gastos políticos”, aumentar a eficiência do gasto público, reforçar as atribuições da Controladoria-Geral da República para fiscalizar o gasto municipal e demitir funcionários classificados como “operadores políticos”. Em conjunto, trata-se de uma agenda de ajuste cujo conteúdo concreto permanece deliberadamente opaco, mas cujos efeitos previsíveis recaem sobre o emprego público, as políticas sociais e as capacidades regulatórias do Estado.
O primeiro dia: Kast protocolar e internacional
Na segunda-feira, 15 de dezembro, em seu primeiro dia como presidente eleito, Kast visitou o Palácio de La Moneda e manteve reuniões com as equipes dos partidos que apoiaram sua candidatura. Nada fora do habitual em termos institucionais.
Os sinais políticos mais relevantes da jornada vieram, no entanto, do plano internacional. Kast recebeu felicitações explícitas de figuras centrais da chamada “internacional fascista”: Javier Milei, Donald Trump e Benjamin Netanyahu celebraram abertamente sua vitória eleitoral e o apresentaram como um aliado na ofensiva contra o socialismo latino-americano. No mesmo registro se expressou o Wall Street Journal, que interpretou o triunfo de Kast como parte de uma “má temporada democrática para o socialismo na América Latina”, sugerindo que a onda de “violência esquerdista” e de estagnação econômica estaria entrando em retrocesso.
Tudo indica que Kast se tornará uma das peças do rearranjo da direita latino-americana no poder, com pelo menos duas consequências que funcionam como sinais de alerta. Em primeiro lugar, uma adesão sem matizes à nova orientação da política externa dos Estados Unidos, o chamado “corolário Trump à Doutrina Monroe”, cujo objetivo imediato é a mudança de regime na Venezuela e a apropriação de seus recursos energéticos. Em segundo lugar, o início de um processo de renormalização das relações com Israel, inclusive ao custo de colocar em risco o compromisso histórico do Chile com o direito do povo palestino à autodeterminação. Esse compromisso se expressou recentemente na participação chilena na ação apresentada pela África do Sul contra Israel na Corte Internacional de Justiça por genocídio, bem como na suspensão de determinadas instâncias de cooperação diplomática e militar com o Estado ocupante.
No dissonante concerto da extrema direita global, cada país aporta sua própria tradição e sua forma específica de legitimação. No Chile, tudo indica que essa forma é o pinochetismo. É ali que a extrema direita encontra seu passado glorificado, suas experiências de governo mais bem-sucedidas do ponto de vista das classes dominantes e a memória estratégica — econômica, militar e cultural — que lhe permite criar raízes no novo cenário global.
O que significa a vitória de Kast na trajetória histórica do Chile?
O governo de José Antonio Kast será o primeiro governo democrático do pinochetismo. Com sua vitória, concretiza-se, pela primeira vez, a aspiração longamente sustentada pelos fundadores da União Democrata Independente, o partido criado por Jaime Guzmán junto a Miguel Kast e outros quadros centrais do catolicismo autoritário da ditadura. Kast encarna o retorno desse projeto, agora atualizado pela experiência da onda reacionária internacional e pelas novas sensibilidades de uma ultradireita mais jovem, ideologicamente coesa e politicamente desinibida.
Convém prestar atenção ao papel que desempenharão os quadros históricos da UDI na conformação do gabinete e das equipes ministeriais. Da mesma forma que uma Frente Ampla ainda inexperiente recorreu, em seu momento, aos quadros da Concertación para sustentar o funcionamento do aparelho estatal, é provável que um Partido Republicano relativamente jovem tenha de se apoiar em seus antigos camaradas: ex-ministros da ditadura e do piñerismo, portadores de uma experiência-chave para governar em condições de conflito social e restauração conservadora.
Mas a vitória de Kast não expressa apenas o triunfo eleitoral do pinochetismo. Nesta eleição também se impôs o anticomunismo como eixo articulador do senso comum político. Não há dúvidas de que o centro da campanha girou em torno do medo da violência, do desemprego e do encarecimento da vida, fenômenos atribuídos de maneira sistemática à delinquência, ao narcotráfico, à corrupção e à migração. A questão decisiva é por que essas angústias conseguiram se organizar politicamente em torno de Kast e contra Jeannette Jara.
Sustentamos que a espinha dorsal que unificou esses temores foi uma ideia simples e persistente: que, apesar de qualquer aspecto inquietante de Kast, “o comunismo é pior” e que um governo comunista conduziria inevitavelmente a mais miséria. O cimento ideológico dos medos induzidos foi a ameaça — inexistente em termos reais — de um governo encabeçado por uma comunista, mecanicamente associado à Venezuela, Cuba, à Unidade Popular ou à União Soviética. Desse modo, críticas em muitos casos razoáveis à gestão governamental e às dificuldades cotidianas de amplos setores sociais foram subsumidas sob um argumento profundamente irracional: o anticomunismo como herança viva da ditadura, forjado no contexto da Guerra Fria e ainda eficaz no imaginário popular chileno.
Nas semanas posteriores à derrota, abundarão as análises retrospectivas e a distribuição de culpas. Uma vez decantada essa primeira etapa, a esquerda chilena será obrigada a recomeçar. Já não bastarão os ajustes táticos ensaiados nos últimos anos. O cenário é de alta complexidade e pode se tornar ainda mais contraditório se se confirmar um aumento do investimento na indústria do cobre, impulsionado por uma maior demanda global, que abra um eventual superciclo favorável ao governo entrante. Ao mesmo tempo, a ausência de eleições por pelo menos três anos concede a Kast uma margem significativa para impor sua agenda como eixo central da política nacional.
Nesse contexto, os desafios imediatos para a classe trabalhadora no Chile se concentrarão em dois fronts estreitamente vinculados: a resistência às reformas regressivas do novo governo e a capacidade de articular uma oposição social que não fique subordinada à mesma direção progressista que protagonizou o que hoje aparecem como quatro anos perdidos na luta contra o avanço da extrema direita. O ciclo que se abre exige algo mais do que defesas parciais: exige uma recomposição estratégica da esquerda chilena à altura do novo momento histórico.