Trabalho como rede de proteção
Projeto das deputadas Fernanda Melchionna e Sâmia Bomfim obriga médias e grandes empresas a trabalhar na prevenção da violência doméstica e acolher vítimas
Foto: Wilson Dias/Agência Brasil
Um projeto de lei apresentado na Câmara dos Deputados propõe um avanço estrutural no enfrentamento à violência doméstica no Brasil ao reconhecer que o problema não termina na porta de casa e impacta diretamente a vida profissional, a renda e a autonomia das mulheres. De autoria das deputadas Fernanda Melchionna (PSOL-RS) e Sâmia Bomfim (PSOL-SP), a proposta cria o programa “Antes que Aconteça”, tornando obrigatória a adoção de políticas internas de prevenção, conscientização, acolhimento e apoio a trabalhadoras em situação de violência doméstica e familiar em empresas de médio e grande porte.
Logo no primeiro artigo, o texto estabelece que o objetivo do programa é “promover a conscientização, acolhimento e apoio a trabalhadoras em situação de violência doméstica e familiar”, além de mitigar os impactos dessa violência no ambiente laboral e atuar de forma preventiva. A iniciativa parte do entendimento – já consolidado pela Lei Maria da Penha – de que a violência doméstica é um fenômeno estrutural, com efeitos diretos sobre a saúde física e mental, a integridade e o desempenho no trabalho das vítimas.
“A violência doméstica e familiar é um problema estrutural da sociedade brasileira e a epidemia de feminicídios nos mostra que devemos combatê-la em todas as instâncias”, afirmou a deputada Fernanda Melchionna ao ICL Notícias. “Criamos esse projeto para que o ambiente de trabalho também seja um local seguro, de acolhimento e prevenção da mulher em situação de violência.”
Os dados reforçam a urgência da proposta. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil registrou mais de 1.400 feminicídios em um único ano, além de centenas de milhares de casos de violência doméstica notificados. Estudos da Organização Internacional do Trabalho (OIT) indicam que a violência contra mulheres afeta diretamente a produtividade, aumenta o absenteísmo e contribui para a precarização dos vínculos de trabalho, aprofundando desigualdades de gênero no mercado laboral.
Pelo projeto, empresas públicas e privadas de médio e grande porte terão até 12 meses, após a entrada em vigor da lei, para implementar o programa. Entre as medidas mínimas obrigatórias estão a criação de uma política interna escrita e amplamente divulgada, ações periódicas de capacitação de gestores e trabalhadores, campanhas educativas permanentes e a formação de um comitê interno responsável por acompanhar e avaliar as ações adotadas.
O texto também determina a criação de canais oficiais e confidenciais para o recebimento de relatos de violência, com garantias explícitas de proteção contra retaliações, além da adoção de protocolos de acolhimento que incluam triagem, encaminhamento à rede de proteção e a construção de um plano individual de segurança para cada trabalhadora.
Um dos eixos centrais da proposta é a garantia de direitos trabalhistas específicos para as vítimas. O projeto assegura licença remunerada especial de até dez dias por ano, flexibilização temporária da jornada e do local de trabalho – inclusive com possibilidade de teletrabalho – e proteção contra demissão arbitrária por pelo menos seis meses após a comunicação formal da situação à empresa. Sempre que houver risco à integridade física da trabalhadora no ambiente laboral, o empregador deverá adotar medidas de precaução, como restringir o acesso do agressor ao local de trabalho e reforçar a segurança interna.
Microempresas e empresas de pequeno porte não são obrigadas a aderir, mas poderão implementar o programa de forma voluntária e simplificada, com apoio de materiais padronizados elaborados pelo poder público. A fiscalização caberá ao Executivo, que poderá aplicar sanções administrativas e impedir que empresas inadimplentes contratem com o poder público. Já aquelas que cumprirem integralmente a lei poderão receber o selo “Empresa Amiga da Mulher”.
Na justificativa, as autoras destacam que o projeto dialoga com recomendações internacionais, especialmente da OIT, e com experiências já adotadas em outros países, onde o local de trabalho é reconhecido como um espaço estratégico de prevenção à violência de gênero. Ao deslocar o enfrentamento da violência doméstica para o campo das relações de trabalho, a proposta afirma que proteger as mulheres não é uma questão privada, mas uma responsabilidade coletiva e institucional – condição fundamental para combater o feminicídio, garantir direitos e promover justiça social.