Notas para um domingo de quarentena

Sobre o o desenlace político da crise no Brasil.

Israel Dutra 30 mar 2020, 14:43

Enquanto o tempo passou mais lentamente do que o normal, nesse domingo de quarentena, coloquei alguns breves apontamentos por escrito. Para além das múltiplas questões relacionadas ao Coronavírus, me refiro mais à crise política aberta com a linha ofensiva de Bolsonaro sobre o “voltar ao normal”, através da campanha o “Brasil não pode parar”. Tenho seguro que a situação vai se agudizar, que a crise econômica é avassaladora, bem como a tragédia epidêmica. Também acredito que vamos viver mudanças estruturais na forma de fazer e ver as coisas. O mundo já mudou e vai mudar mais, internacionalmente. São muitos os temas em discussão. Aqui quero acompanhar o desenlace político da crise no Brasil, nos próximos dias. O que é certo é que estamos vendo a catástrofe chegar; que isso vai nos levar a uma situação similar a de uma guerra; que o trauma virá. O problema é que a linha Bolsonaro pode nos levar ao pior cenário e que, contraditoriamente, por isso, Bolsonaro pode e deve ser parado. O certo é que é o mundo já não é o mesmo.

A catástrofe

A única previsão possível é a de que a catástrofe se aproxima. Não sabemos como será nem de que forma, mas podemos dizer que será muito forte, vai ceifar muitas vidas e levar a economia nacional à derrocada. Nesse cenário desfavorável, temos que entender como Bolsonaro dobra sua aposta. Como escreveu Safatle, num manifesto intitulado “Bem-vindo ao Estado Suicidário”, só a pulsão de morte, num ato de satisfação sádica, pode explicar as profundas razões para Bolsonaro mover um setor da sociedade(burguesia inculta e lúmpem, pequena burguesia desesperada) para se atirar contra a ciência, a doença e em última instância, centenas de vidas de brasileiros.Parece loucura mas não esqueçam que foi o mesmo capitão que declarou certa vez que deveriam fuzilar sumariamente “FHC e mais 30 mil esquerdistas” no Brasil; ou colocá-los na “Ponta da Praia”, centro de tortura militar, em declaração atualizada, durante a eleição de 2018.

Os números são estarrecedores. Em algumas semanas, parte dos países mais pobres e populosos do mundo chegarão em estatísticas “mediterrâneas”. O desespero de Itália e Espanha, será o cenário de países como a Índia, que começou a quarentena no dia 25; da África do Sul, que registrou as duas primeiras mortes no sábado, dia 28; dos países da América Latina. Temos hoje quase 700 mil casos diagnosticados no mundo, com 31.200 mortos, 22 mil na Europa, mais de 3 mil na China, onde a doença já está em curva de desaceleração. Podemos ter uma noção do que ocorrerá com o salto que o Covid-19 está dando na nação mais importante, militar e politicamente, os Estados Unidos. As projeções são cruéis, realistas e nada animadoras.

No Brasil, os números estão mutilados por subnotficações, onde o governo atua para manipular dados, já chegamos a 136 mortes e 4256 casos(atualizado no final da tarde de domingo). O estudo de sete dos maiores pesquisadores brasileiros , da UFRJ, USP e UNB, indica que na outra semana podemos ter 16 mil casos apenas nas cidades de Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo. Uma pesquisa da London School estima que os casos notificados são apenas 11% do número real.As condições onde a catástrofe se desenvolve são as piores possíveis: o crescimento do trabalho informal, a falta de leitos e aparelhos, a baixa renda em geral, as condições de moradia das grandes cidades, com parte do país tendo sonegado direitos básicos como água e saneamento. Bolsonaro abriu o capital das empresas públicas de saneamento. O mesmo Brasil que no verão viu o sudeste conhecer duas grandes crises sociais: as chuvas que levaram a morte centenas de pessoas e a crise com a distribuição da água no Rio de Janeiro.

As três crises que se entrelaçam no mundo, também se retroalimentam por aqui: a sanitária, a política e a economica.

A primazia da crise sanitária

A valentia de Bolsonaro na sua linha de gestor do “Estado suicidário” flerta com a irracionalidade, porém, não é tão incoerente, com o pensamento de seus pares; recordemos que sempre falou em “desconstrução” do que é o Brasil até aqui, da Nova República, do Estado constituído. A necropolítica que quer criar zonas de exclusão, quase como um processo de limpeza sobre parte da população, vulnerável, com uma suposta salvação dos mais ricos, nos seus bunkers e picapes. Isso não vai acontecer.

A dinâmica da evolução da crise política pode ser definida como duas linhas: a que alertou e colocou no centro das preocupações o problema do contágio, do provável colapso do sistema hospitalar e que deu voz aos cientistas e a OMS; a segunda linha, para gozo dos terraplanistas, negou a doença, diminiu seus efeitos, e consequente com a leitura, afirma que o Brasil “não pode parar” diante da “gripezinha”. A luta entre a quarentena e a irresponsabilidade(seja na fórmula de Isolamento vertical, seja na forma de agitação da normalidade) é a luta mais importante do atual período. Há todo um setor, político e social, que oscila, entre uma posição e outra. Bolsonaro se colocou à proa, como capitão do barco dos terraplanistas, e entrou em campo para comandar a “restauração da normalidade”. Os governadores, por outra parte, emitiram nota em defesa do isolamento social, ainda que também mantenham a perspectiva hesitante e descoordenada de combate ao vírus. Destacam se Witzel e Dória, não por um humanitarismo tardio, mas pressionados pelas verdadeiras bombas relógios que tornariam-se seus estados, se o contágio disparar, assim como o número de mortos, em progressão geométrica.

Bolsonaro então decidiu lutar. Após perder parte de sua base social, no dia 18, quando suas ações desastradas, detonaram uma ruptura de setores das classes médias com o governo, simbolizados no panelaço, empurrando parte dos críticos para uma oposição aberta ao governo, abrindo a hipótese real, ainda que muito minoritária, de se discutir sua destituição.

O contragolpe do planalto, alicerçado numa santa aliança de morte, entre burgueses lumpens psicóticos como Hang e dono do Madero, por lojistas desesperados que abraçaram o auto-engano oferecidos pela banda fascista e tendo como lastro real os setores mais desinformados dos pequenos empresáriose comerciantes (que no Brasil são uma fatia de 17 milhões de pessoas), foi a luz da campanha de que não se pode parar. Depois organizaram se carreatas elitizadas, hostilizadas pela população, pequenas, mas que marcaram a tropa dos terraplanistas. Tudo isso levou a uma maior ofensiva das fakenews e uma estratégia de “remontada” e “guerra relâmpago”; debilitado, Bolsonaro caminhou pelo comércio de Brasília, e articula a pressão dos patrões e pequenos e médios lojistas para ir rompendo a quarentena, posição que tem eco em setores importantes da burguesia como o presidente da CNI, Robson Braga de Andrade, que embargou na fórmula do “Isolamento vertical”.

Esta posição é insustentável. Os próximos dias trarão um rastro de morte e de caos, com a explosão dos casos subnotificados e as primeiras mortes nos estados mais distantes do epicentro localizado em SP, Rio e Brasília. As cidades de médio porte começam a acolher os primeiros casos e suspeita, numa sórdida curva que não para de crescer e enolver mais e mais territórios. No final de semana, as mortes deixam de ser de anônimos, chegando a nomes conhecidos, artistas, políticos, esportistas, como o caso de Daniel Azulay e do prefeito de uma cidade do interior do Piauí.

A entrada do vírus na periferia, pois boa parte dos casos até aqui tinham sido registrados ainda em setores médios, vai causar um estrago inestimável.

A crise sanitária vai detonar todos os outros elementos, levando a uma nova situação. Disso decorre a importância estratégica de parar Bolsonaro.

Botão de emergência

A crise econômica já entrou com toda força. A economia encontrou seu pouso forçado nas últimas duas semanas, desde que constatado o primeiro caso de transmissão comunitária. Caiu a demanda em todas as áreas. Fecharam milhares de postos de trabalho, se reduziram pagamentos. A chegada do dia 05 de Abril, quando parte dos boletos de milhões vão ter que ser pagos, será um novo capítulo na crise. No caso da economia real, não se pode apelar para o “circuit-braker”, expediente usado e abusado nas últimas semanas de baixa da bolsa de valores. O custo dos alimentos está começando a subir e a capa da Folha de hoje traz a seguinte manchete “Nas favelas, morador passa fome e começa a sair às ruas”.

Essa é a questão gritante da quarentena. Os milhões que ficarão sem renda, do dia para noite, farão o que? As moradias superhabitadas, em condições irregulares, serão verdadeiros barris de pólvora. O endividamento das famílias, altíssimo por natureza, como ficará em semanas?

A burguesia buscou atuar rápido para garantir seus interesses. Tal como o alto de um prédio da Faria Lima, a burguesia e seus representantes políticos apertaram o “botão de emergência”, como forma de evitar o caos imediato, que romperia o chamado “tecido social”. Vale registrar que ainda na primeira semana da pandemia no Brasil tivemos a notícia de uma grande rebelião nos presídios paulistas e alguns rumores de saques em supermercados.

O cardápio emergencial envolveu três medidas de impacto: a suspensão das dívidas dos estados (por 12 meses), levado adiante por Alexandre Moraes; a aprovação de uma renda básica(Guedes queria irrisórios 200 reais, parte da batalha no parlamento foi para elevar esse valor);e a destinação de mais 40 Bi para médias e pequena empresas.

A gestão dessas medidas emergenciais foi feita pelo Legislativo e pelo Judiciário, que junto com os governadores, estão com a iniciativa no caso da linha econômica. Tais medidas são ainda insuficientes. O próprio Alexandre Moraes está defendendo emergência fiscal, com fins de “relaxar” o teto de gastos aprovado com a EC95.

Guedes viu a linha de mais reformas e mais austeridade derreter como gelo. Debilitado, se recolheu para o Rio de Janeiro, sem peso nem prestígio, reaparecendo numa live do sistema finaceiro, ao lado de Guilherme Beinchimol da XP investimento, atual aruato da necessidade de um “plano marshall” para o Brasil.

O cenário caótico da economia trará grandes perdas para os milhões que vivem do trabalho no Brasil.

Bolsonaro, a conversão final

O gesto de Bolsonaro representa a conversão final do “bolsonarismo lato sensu para o bolsonarismo strictu sensu”. Depois de um período controverso, decidiu atacar com toda força na convocatória do ato do dia 15, contra o congresso e o STF. Na intensa velocidade, em que a política se move, a “conversão final” à política do sadismo neofascista foi durante a crise aguda motivada pelos primeiros sintomas do Covid-19. Depois de perder apoios na jornada dos panelaços do dia 18, com o núcleo do governo isolado pelo Corona, Bolsonaro deu um passo a frente: apostou suas fichas para contemplar os setores que clamam pela reabertura do comércio nas grandes cidades.A morte está no comando. Porém, a tragédia irá se impor. Os dados vão crescer de forma exponencial, e não vai ter como fazer valer o arsenal de fakenews utilizado no final de semana, quando disparou notícias falsas relativizando as mortes pelo Covid-19. Essa realidade vai se impor em alguns dias. O efeito que teve a ofensiva do governo, somado à necessidade real de um setor pauperizado de ir “buscar recursos” a todo custo, fez com que o movimento de circulação nas cidades tivesse um incremento, ainda que pequeno. Essa falta de coordenação vai cobrar um preço alto.

Contudo, o ódio, afeto que Bolsonaro soube mobilizar nos últimos dois anos, pode se voltar contra sua gestão. A vitória de “pirro” que significou o recuo de alguns governadores, da cepa bolsonarista que estavam em rota de colisão, como Moisés de Santa Catarina, vai levar a uma aguda polarização durante essa semana. O isolamento social versus a necropolítica.

Se Bolsonaro está recolhendo e organizando o seu bando e suas mílicias, precisamos organizar o polo inverso. A debilitade da oposição, com seus cálculos políticos e projeções ao centro, é uma das fortalezas de Bolsonaro. Contudo, a iniciativa do pedido de impeachment, organizado por Fernanda, Samia, David, Luciana e diversos intelectuais chegou a 1 milhão de assinaturas. É um importante patrimonio para enfrentar a radicalização do lado de lá.

Nos Estados Unidos, a linha Trump começa a se fragilizar, fruto da tragédia social. Bolsonaro e seu fiel aliado tem seus dias contados. No caso do Brasil, nfelizmente, se mantém na condução da gestão da morte e do caos .

O humor do movimento de massas está em constante mudança. A viragem brusca das próximas semanas vai levar a responsabilizar o governo brasileiro pelos cadáveres que vão lotar ruas e hospitais de campanha.

Parar o Brasil e Bolsonaro

A única saída é seguir na linha de que devemos paralisar o conjunto das atividades, salvo essenciais. Para garantir isso, é preciso implementar a renda básica imediatamente, defender medidas extremas como o cancelamento das dívidas no serasa e SPC, a isenção das contas de luz, água e aluguel e o colocar a economia a serviço da campanha em defesa da saúde.

A organização para tanto passar como o exemplo que o sindicato gaúcho deu para o Brasil inteiro: com mobilização para lograr EPIs, ampliação de vagas e leitos para o SUS, colocando sob gestão pública os maiores hospitais do país; a garantia de testes para todos.

A única chance de ter dinheiro é insistir no combate ao rentismo: parar de pagar as dívidas e taxar as grandes fortunas.

Estamos numas situação de guerra. E nesse caso, defender no parlamento os interesses do funcionalismo público, contra os cortes que a casta pode buscar impor ao salário. E aproveitar as brechas entre os economistas de plantão para levantar a única bandeira potente para enfrentar com força a pandemia: a defesa do SUS!

Defender os que estão nas trincheiras : redes de solidariedade e auto-organização

Na situação de guerra, vamos defender e dar muita força à defesa dos trabalhadores da saúde, os voluntários, os estudantes, todos envolvidos com essa grande campanha. São eles os heróis de nosso país. Devemos girar nossas forças para defender e apoiar o movimento de saúde, apoiando sua organização, a montagem de comitês de emergência para tratar do tema, apoiados nas organizações do movimento, nos pesquisadores e na produção científica.

A Petrobrás e demais empresas nacionais deveriam dar o exemplo e produzir em caráter extraordinário alcool gel e equipamentos para a proteção dos trabalhadores em geral.

Nossa condição é colocar em relevo o único sentimento passível de enfrentar a catástrofe: a solidariedade. E criar redes de apoio mútuo, tanto para os trabalhadores como nos territórios.


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