Zizek: O nascimento de um novo comunismo
Filósofo concedeu entrevista ao portal Unisinos.
O filósofo esloveno não acredita que a emergência traga novos totalitarismos. Aliás, os laços da comunidade serão fortalecidos. Porém, apenas se formos capazes de reconstruir a confiança nas instituições: “o que acontece mostra que cabe a nós, aos cidadãos, sujeitar a maior controle aqueles que governam, certamente não o contrário”.
“Um novo senso de comunidade: é isso que está emergindo dessa crise. Uma espécie de novo pensamento comunista, distante do comunismo histórico. A banal descoberta de que coordenação e cooperação globais são necessárias para combater o vírus tem um viés revolucionário. Estamos redescobrindo o quanto precisamos uns dos outros. No entanto, a Organização Mundial da Saúde sempre o repetiu: e, em vez disso, não existia nada similar nem mesmo dentro da União Europeia”.
Pelo telefone de sua casa em Liubliana, o filósofo e sociólogo esloveno de 71 anos Slavoj Žižek, autor de ensaios famosos como Em defesa das causas perdidas e L’incontinenza del vuoto, tem repetidos acessos de tosse: “Tenho todos os sintomas da Covid-19, mas não sou positivo. Sinto-me mal há anos.” Talvez também por esse motivo ele tenha decidido se questionar como a pandemia está mudando nossas vidas, com uma série de ensaios reunidos na Itália, pela Ponte alle Grazie, em um ebook intitulado, precisamente, Virus. Uma coleção constantemente atualizada com novos acréscimos, para download.
A entrevista é de Anna Lombardi, publicada por La Repubblica, 06-04-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis a entrevista.
Você escreve: “Receio dormir porque os pesadelos me assaltam sobre a realidade que nos espera”. Todos nós sentimos esse medo: o que você prevê?
A realidade já mudou. Vemos governos conservadores adotando medidas que chamaríamos de socialistas em outros tempos: Donald Trump ordena às indústrias privadas o que produzir. Boris Johnson nacionaliza temporariamente as ferrovias. Todos vivemos de uma maneira que seria impensável há poucos meses. Há aqueles que pensam em um mundo em que se aproveitará do vírus para controlar todos nós, e, é claro, é uma possibilidade. Mas não acredito em novos totalitarismos: são precisamente os governos que estão em pânico hoje, incapazes de controlar a situação, e muito menos construir uma sociedade no estilo Big Brother.
No máximo, há mais desconfiança em relação às instituições. Mesmo na China, testemunhamos protestos, ainda que modestos. Bem, deveríamos encontrar uma maneira de reconstruir essa confiança. Talvez com novos Assange capazes de desmascarar os abusos. Certamente, o vírus mostra que cabe a nós, aos cidadãos, sujeitar a maior controle aqueles que governam, certamente não o contrário.
Você está dizendo que as pessoas deveriam se envolver mais com a política?
Alguém disse que, no meio dessa crise, deveríamos nos preocupar apenas com a nossa salvação. Penso o contrário: não há momento mais político do que o atual. Apesar das advertências dos cientistas, os governos se descobriram despreparados. Mas agora somos forçados para enfrentar o pior, é claro: não há mais espaço para o “America First” e slogans do tipo. Para sobreviver, os Estados a partir de agora terão que lidar continuamente com o futuro. Precisamos de um novo sistema de saúde pública global e agências internacionais aptas a agir com ações acordadas.
Precisamos de salários mínimos garantidos, pagos agora inclusive por Trump. Minha ideia de comunismo não é o sonho de um intelectual: estamos descobrindo na nossa própria pele por que certas medidas devem ser tomadas no interesse geral. Não subestimemos o impulso que o vírus está dando a novos sistemas de solidariedade em nível local e global. Construir um novo modo de viver será o nosso teste. Mas as pessoas precisam retomar as coisas em suas mãos agora: não esperar o fim da crise.
E como fazer isso? Estamos todos trancados em casa.
Nem todo mundo que está em casa passa seu tempo apenas assistindo filmes estúpidos. Todos estão se fazendo perguntas básicas sobre nossa vida cotidiana, questões que em outros momentos definiríamos de metafísicas. Muitos estão usando esse tempo para refletir. E para escolher. É verdade, somos mais isolados, mas também mais dependentes uns dos outros. Vivemos um imperativo paradoxal: demonstramos solidariedade por não nos aproximarmos. Nunca fui um otimista, mas esse respeito pressupõe uma mudança profunda de comportamento que sobreviverá à crise.
Vamos realmente aprender alguma coisa com tudo isso?
O custo psicológico é tremendo. E, é claro, o isolamento também cria novas formas de paranoia: demonstram isso as inúmeras teorias da conspiração na rede, e países como Estados Unidos e China jogando um para o outro a origem do vírus. Mas, repito, estaremos mais conscientes do que significa estar perto dos outros, para o melhor ou para o pior. Reencontrar-se, por exemplo, será uma alegria. Mas teremos mais cuidado. Depois, esta situação tornou bem visíveis as diferenças sociais. Penso no egoísmo dos super ricos fechados em seus bunkers ou em iates. Madonna postou um vídeo na banheira dizendo que estamos todos no mesmo barco. Não é assim e as pessoas veem a situação. Os novos heróis são as pessoas comuns.
Para impedir a propagação do vírus, as fronteiras foram fechadas. Em certo sentido, estamos diante de uma nova forma de nacionalismo. Você não teme uma regurgitação de populismo?
Se algo está sucumbido, é justamente a mensagem populista. Pessoas como Donald Trump e Jair Bolsonaro mostraram sua mesquinharia, dando a ideia de estar pronto para sacrificar os mais fracos. E na Europa não funcionou jogar a culpa nos chineses ou refugiados: quem transportou o vírus foram turistas e empresários. Até a corrida armamentista dos EUA é ingênua.
Eles pensam em proteger a casa e ficam doentes porque não lavam as mãos o suficiente. Estamos todos aprendendo que esforços nacionais isolados não são suficientes: os limites do populismo nacionalista que insiste na soberania do Estado estão diante dos olhos de todos. Repito, a solidariedade global e a cooperação são o único caminho racional e até egoísta a seguir. No entanto, teremos de enfrentar o futuro da União Europeia: foi ridiculamente passiva. Poderia ter determinado ações e distribuído ajuda. Não o fez. Falhou.
Ainda não estamos fora da emergência. Como podemos resistir até então?
Vivemos uma experiência excepcional, pode tirar o nosso melhor ou o pior. Não nos tornaremos todos monges budistas ou santos católicos. Para enfrentar com a solidão, talvez o melhor seja continuar estabelecendo rotinas básicas. Uma repetitividade que nos impede de ceder ao caos. Temos que manter uma ordem para estar prontos amanhã.
Do que você mais sente falta, estando fechado em casa?
De ir às livrarias. Os últimos lugares onde você ainda tem possibilidades de escolha cultural. Não suporto os algoritmos da Amazon, da Netflix: eles oferecem o que pensam que você gosta, sem dar a oportunidade de descobrir coisas novas e, portanto, surpreender-te. Na livraria, você vai para procurar algo e muitas vezes volta com outra coisa. As livrarias são insubstituíveis e é muito grave que a crise as esteja colocando em risco.
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/