A pergunta da morte: “E, daí?”

Questionado por jornalistas sobre a nova “posição” do Brasil no ranking mundial da morte, Bolsonaro, perguntou “E, daí?”.

Israel Dutra 29 abr 2020, 21:16

Questionado por jornalistas sobre a nova “posição” do Brasil no ranking mundial da morte, da forma grosseira e tosca como sempre, Bolsonaro respondeu com um desdém às mortes e ao conjunto da situação do país. Insultando jornalistas, afirmou “E, daí?”. Uma versão mais direta e cruel da “banana” que mandou à imprensa e ao país há cerca de 40 dias, quando começávamos a entrar no ciclo da pandemia.

A verdade é que, alheio ao sofrimento de milhões, numa espécie de mundo paralelo, após a demissão de Moro, Bolsonaro aposta na morte. E, como uma espécie de ato-falho no formato de recado, afirma sua impotência ou, melhor, a pouca importância que dá para a salvação de vidas.

A catástrofe já anunciada chega de forma veloz. Com o esforço da sociedade, com as orientações da OMS seguidas pelo anterior ministro da saúde e por parte dos governadores, tivemos uma primeira etapa da quarentena com relativo controle do contágio, apesar da brutal omissão de dados, seja na subnotificação, seja pela distorção da falta de testes. O relaxamento do isolamento social atrapalha e desorganiza a luta contra o espalhamento do vírus. Antes da chegada do inverno, a situação já é caótica nas capitais do norte do Brasil e começa a ficar temerária em várias cidades como São Paulo, Fortaleza e Rio de Janeiro. Os leitos são poucos e faltam respiradores, sem contar os escassos testes. Tudo isto reforça que Bolsonaro não está nem um pouco preocupado. Sua pergunta revela que não se importa com a morte de milhares, ainda longe do “pico de contágio”.

Seu governo é uma fonte de crises. Ainda conservando apoio em faixa do eleitorado, que varia de 23 a 30%, em média das pesquisas, cada dia amplia seu desgaste e os choques com aliados de primeira hora. Além de desdenhar os efeitos da pandemia, Bolsonaro desdenha as crises que vão abreviando sua capacidade de governar. O revés da nomeação de Ramagem e a indignação com sua postura apontam seu isolamento crescente.

De números, nomes e rostos

O Brasil é o país do chamado “Sul Global” com maior número de casos e mortes de Covid-19. A última estatística chega a 5466 óbitos, quase 80 mil casos formais, com a projeção de mortes que deve superar os 500 óbitos diários antes do final da semana.

Para além dos números e das estatísticas, são nomes, rostos e trajetórias que estão entre as vítimas. Famílias inteiras despedaçadas, muitos profissionais da saúde perdendo suas vidas, superlotação de leitos nas grandes metrópoles. O caso de Manaus é estarrecedor. Na cidade, a crise sanitária já se transformou numa crise funerária: corpos empilhados, enterros noturnos e coletivos, gerando indignação de familiares.

A crise também assola ramos da economia, com a pugna entre isolamento e relaxamento, gerando pânico e incerteza entre os trabalhadores. Em Campina Grande, na Paraíba, o sindicato dos comerciários recebeu denúncias de pressão patronal para que funcionários fizessem um “jejum”, ajoelhados nas portas das lojas, para pressionar pela reabertura do comércio. 

Explodem protestos entre os trabalhadores da saúde pelas péssimas condições de trabalho, por todo o país. As filas nos bancos e lotéricas, junto com as dificuldades de acesso ao auxílio emergencial fazem com que as aglomerações voltem à rotina de muitas cidades.

As previsões mais caóticas começam a se aproximar da realidade.

O affair Ramagem

O governo arcou com as perdas das duas figuras mais populares de seu governo: Mandetta e Moro. No caso da demissão do ex-ministro da justiça, Sergio Moro, a “interferência política” foi admitida como causa para a ruptura. Foi a baixa mais expressiva do governo até aqui, ainda com pouca condição de mensurar o tamanho do estrago, por óbvio, grande. O ato seguinte foi a queda de braço para a nomeação dos novos chefes da PF, uma vez que a demissão de Mauricio Valeixo do posto foi o elemento detonador da saída de Moro. Numa tentativa de controlar mais a PF, sonhando em fazer dela uma “polícia política”, Bolsonaro novamente recorreu ao seu próprio clã, nomeando seu chefe de segurança de campanha e amigo íntimo dos filhos, Alexandre Ramagem, atual chefe da Abin, para chefiar a Polícia Federal.

As investigações recaem contra o clã: Flávio no caso da “rachadinha”, Carlos em relação à máquina de fake news e Eduardo com ameaças de morte veladas contra sua ex-companheira de partido Joice Hasselmann. A obstrução é parte da disputa pelo controle do aparelho da PF, na qual as tensões entre a ala pró-Bolsonaro e os setores ligados a Moro vão seguir ao longo da semana. A ação do STF, na figura de Alexandre de Moraes, evitou validar a nomeação de Ramagem, o que fez Bolsonaro assinar, por agora, a desistência da nomeação.

O desgaste escala em paralelo à irracionalidade. Os choques tendem a seguir paralisando o governo. Na lista de possíveis saídas do governo estão Regina Duarte, Teresa Cristina e até o “Posto Ipiranga” Paulo Guedes. 

Isolar Bolsonaro

Bolsonaro foi derrotado no dia de hoje. Perde apoios no andar de cima. No entanto, conserva uma base organizada, com um ponto de apoio importante nas chamadas “milícias digitais”. Não irá se entregar sem lutar. E luta para impor uma contrarrevolução. Por isso, a pergunta “E, daí?” é a pergunta da morte.

Os próximos dias serão decisivos. Parece lugar comum afirmar isso, contudo, o tempo corre contra Bolsonaro. Se o pulso da luta de Moro desbaratar de fato a indústria de fake news, veremos qual é o real tamanho da força social do núcleo duro do bolsonarismo. Mais do que especular ou analisar, precisamos seguir coordenando e defendendo os interesses da maioria – com a insígnia de que há tempo para salvar vidas e, ao contrário da prédica do presidente, sabemos que cada vida importa. O apoio aos protestos, como os dos trabalhadores do GHC em Porto Alegre, a cada luta que os setores sociais enfrentam, mesmo com as limitações do isolamento social, é estratégica. Como também é estratégica a solidariedade ativa aos bairros e periferias, articulando redes. Para tanto, o impedimento do presidente é uma luta para congregar amplos setores, ordenando a luta política ao redor das tarefas e do isolamento, pleno e geral, do genocida que governa.


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