Literatura antifascista?
É possível identificar a existência da luta antifascista no campo da Literatura?
“…cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas”[1]
Acompanhamos, com preocupação e indignação, o crescimento de ações de grupos cada vez mais radicalizados no discurso e na prática de um ideário antidemocrático, autoritário e fascista.
As manifestações semanais em apoio ao presidente, que insistem em reivindicar intervenção militar, AI-5 e fechamento do STF- as quais o presidente frequenta, em sua sanha egocêntrica e de desrespeito às instituições e às vidas perdidas com a pandemia de Covid-19- choca qualquer cidadão minimamente democrata. No entanto, o ato organizado pela criminosa organização autodenominada “300 de Brasília”, liderada por Sara Winter, é ainda mais infame, uma vez que assume, sem constrangimentos, símbolos de grupos neonazistas e supremacistas como Ku-Klux-Klan.
Em reação quase imediata, e inspirados pelo levante da juventude contra o genocídio do povo negro nos EUA, que tem incendiado as ruas do país governado por Donald Trump, brasileiros e brasileiras de várias capitais brasileiras se somaram às manifestações organizadas principalmente pelas torcidas de futebol, numa grande demonstração de força e enfrentamento antifascista.
Muitas vezes impossibilitados, pelo contexto de pandemia, de tomar parte nas manifestações de rua, as redes também foram inundadas pelo compartilhamento da bandeira antifascista, além de ações de destaque e solidariedade à luta antirracista, mostrando todo o potencial de uma luta que se dá em todas as trincheiras da atividade humana, na diversidade do povo e sua dinâmica.
Refletindo sobre essa movimentação, seria possível identificar a existência da luta antifascista também no campo da Literatura, da cultura e das artes, de modo geral? Existiria uma Literatura antifascista?
Muitos pesquisadores e críticos literários recusam e condenam a literatura “de atributos” ou “adjetivada”, alegando que tal classificação acabou por se tornar uma categorização estética, implicando em limitação do próprio potencial literário e perda de liberdade artística. Distante de tais embates e de qualquer esboço de utilitarismo no entanto, o que aqui se busca refletir é o que a Literatura tem a contribuir para a luta antifascista, na defesa da democracia e no enfrentamento ao autoritarismo.
Não faltam exemplos, em especial nos títulos classificados como “distópicos”, de obras ambientadas em regimes autoritários, em sua maioria guardando muitas semelhanças com regimes fascistas do século XX. É o caso de 1984, de George Orwell, ambientado numa cultura de culto à imagem de um autoritário “Big Brother”, além de um nacionalismo exaltado e baseado sobretudo na política de guerras contra outros povos. Representações desses regimes também se estendem às histórias em quadrinhos e à indústria do cinema- muitas produções hollywoodianas e blockbusters têm como vilões alguma ameaça autoritária. É o caso, por exemplo, do aclamado V de Vingança, filme de 2005, baseado em quadrinhos publicados na década de 1980.
Nem sempre restritos ao campo da ficção, no entanto, os regimes autoritários e fascistas por vários momentos constituíram perseguição real a obras literárias e também aos seus autores e apreciadores. Tais perseguições não ocorreram apenas no regime nazista alemão, com seus emblemáticos Bücherverbrennung, mas alcançaram também o Brasil, com a investida integralista e, principalmente, através governo Vargas, que se aproximou, em diversos sentidos, do modelo e ideologia fascistas, no que se inclui o antissemitismo e a resistência ao acolhimento de estrangeiros exilados. Ainda assim, grandes intelectuais, como Otto Maria-Carpeaux e Anatol Rosenfeld, encontram refúgio no Brasil.[2]
É notório que, em princípio e essência, o fascismo se opõe ao livre exercício de pensamento, da inteligência e da produção cultural, além da ameaça constante que representa à imprensa e às universidades, enxergando nesse conjunto seus inimigos e ameaças ao seu domínio. Por tudo isso, a “defesa da cultura” teve altíssima relevância e centralidade na luta antifascista ao longo do século XX. Nesse período, as atividades culturais assumiram sobretudo a tática de contrapropaganda às ideologias autoritárias.
Como forma de enfrentamento à ascensão dos governos nazifascistas, intelectuais passaram a se organizar em iniciativas importantes como o Comitê de Vigilância de Intelectuais Antifascistas (CVIA), criado em 1934 em Paris e o Congresso Internacional de Escritores Antifascistas pela Defesa da Cultura, ocorrido também em Paris e que nesse mês completa 85 anos.
No Brasil, o congresso foi comentado no suplemento cultural do jornal A Manhã– porta-voz da Aliança Nacional Libertadora-, que constituiu-se como espaço para elaborações de expoentes dos movimentos de escritores antifascistas[3].
Assim como no Brasil, intelectuais de outros países sul-americanos, como Argentina e Uruguai[4], também se dedicaram à criação de associações antifascistas. No entanto, embora fosse este um movimento internacional, tais iniciativas tiveram características específicas em cada um desses países e também se constituíam internamente de maneira heterogênea, dada a diversidade de seus participantes.
De toda forma, tais associações tiveram o importante papel de aproximar a luta política do debate cultural, colocando em discussão o papel social de escritores e intelectuais e a necessidade de compreensão de sua atuação enquanto sujeitos coletivos.
O que constatamos, portanto, é que a Literatura (e a Arte e a Cultura, de modo geral), certamente se constitui como mais um campo de enfrentamento antifascista: não apenas na medida em que, tal como defende Ernest Fischer, ela dá ao ser as ferramentas necessárias para tornar a realidade “mais humana e mais hospitaleira para a humanidade” ou, como nas distopias, por servir, tal como propõe Michael Lowy, como um “aviso de incêndio”, mas também por historicamente possuir, na maioria de seus agentes criadores (escritores, artistas e intelectuais) naturais defensores da cultura e da liberdade.
É, mais uma vez, o momento de recuperar esse histórico de resistência e enfrentamento para o combate às atuais ameaças à liberdade, às artes e à própria humanidade. Assim como escreveu Drummond, quem se entrega à paralisia dos medos, condena a si próprio e acaba por se resignar também a ser “poeta de um mundo caduco”!
[1] “Congresso internacional do Medo”, Carlos Drummond de Andrade, Antologia Poética (1978)
[2] Tema aprofundado pela professora Izabela Maria Furtado Kestler em Exílio e Literatura- escritores de fala alemã durante a época do nazismo (EDUSP, 2003).
[3] “Repercussões do Congresso de Escritores pela Defesa da Cultura de Paris (1935) no Cone Sul: luta antifascista e debates culturais”, de Ângela Meirelles de Oliveira
[4] “Intelectuais antifascistas no Cone Sul: experiências associativas no cruzamento entre a cultura e a política (1933-1939), de Ângela Meirelles de Oliveira. Projeto História, São Paulo, n. 47, pp. 53-83, ago. 2013