Algumas reflexões iniciais sobre os resultados do Chile

Algumas reflexões iniciais sobre os resultados do Chile

 As eleições presidenciais chilenas confirmaram as previsões: uma polarização que dinamitou os partidos tradicionais que alternavam o poder após a malfadada ditadura de Pinochet. O segundo turno será entre o candidato de extrema-direita, Kast, e Boric, um jovem líder da Frente Amplio que emergiu das mobilizações estudantis de 2011.

Isabelle Ottoni e Pedro Fuentes 23 nov 2021, 15:20

1) Primeiro que tudo, um esclarecimento. É correto dizer que as eleições mostraram um panorama de polarização política. Contudo, as mídias exageram, ou melhor, distorcem, a caracterização da verdadeira polarização eleitoral. Se por um lado Kast é um autêntico representante da nova direita autoritária que surgiu no mundo a partir da crise dos regimes democráticos burgueses, um verdadeiro expoente do novo proto-fascismo, Boric é apresentado como candidato da extrema-esquerda porque fazia parte de uma aliança entre a Frente Amplio e o Partido Comunista. Mas não é, Boric não é um candidato anti-capitalista. Fez o seu programa e procurou os seus conselheiros com base num discurso de conciliação de classes social-democrata. Boric já anunciou que está disposto a fazer revisões ao plano de governo, que quer ser “transversal e falar com todos”. Para tal, recorreu a novos economistas. Todos apontam para a necessidade de um programa “mais moderado”. Entre estes nomes estão Hernán Frigolett, ex-presidente do Tesouro Nacional, e Roberto Zahler, ex-presidente do Banco Central e do FMI.

Nesse sentido, a sua política é muito semelhante à dos chamados progressistas, (como Podemos do Estado espanhol), e age como os progressistas vem atuando no grande processo de rebelião chileno de 2019. Ele como deputado e o seu partido (diferente do PC) fizeram parte do acordo do Concertación, que propôs uma reforma constitucional no auge da mobilização contra Piñera, quando a sua queda poderia ser marcada por essa realidade. Este foi o acordo que ajudou o governo Piñera a sobreviver. Esta caracterização não é para negar a polarização objetiva que acontece, mas ajuda a explicar o resultado das urnas presidenciais.

De fato, esta votação presidencial contradiz o que aconteceu quando a reforma constitucional foi posta à votação. Na votação da Reforma Constitucional, em Outubro de 2020, 80% dos eleitores rejeitaram o acordo feito no parlamento e votaram a favor de uma Assembleia Constituinte eleita soberanamente, não uma ditada pelo parlamento. E que na eleição subsequente, em Maio de 2021, dos eleitos a constituintes, a ala direita foi largamente derrotada. Porquê agora este resultado, se a sociedade quer o inverso? Um empate com sabor de derrota. 

2) A primeira reflexão que surge é que nas eleições não houve nenhum candidato que representasse uma política verdadeiramente alternativa e que expressasse as aspirações da mobilização de 2019; Boric infelizmente não o foi. O seu programa e o seu discurso estavam cheios de generalidades abstratas e não era uma resposta aos graves problemas sociais que os trabalhadores e os pobres do Chile enfrentam. Daí a elevada taxa de abstenção, que chegou mesmo aos setores radicalizados que participaram da insurreição popular. Boric foi rápido ao avisar o mercado que Daniel Jadue, prefeito de Recoleta, não assumiria qualquer cargo num eventual governo seu. O presidente do PC pediu publicamente uma explicação. A ferida entre Boric e setores da esquerda foi aberta nas primeiras horas do segundo turno. 

3) Outra reflexão é que a grande rebelião revolucionária de 2019 não foi até ao fim. Atingiu o regime político com muita força, deixou-o gravemente ferido, mas não o derrotou, não impôs uma nova alternativa. Naquela altura, parecia que a Assembleia Constituinte poderia ter sido essa alternativa de poder, e havia condições para isso, mas desidratou-se gradualmente, perdendo força. Conformou-se às regras do regime, quando era necessário que se tornasse um poder constituinte, ou seja, um poder paralelo que iria até ao povo para se legitimar e ouvir a voz dos trabalhadores e as suas exigências, a fim de elaborar um processo constituinte a partir de baixo.

4) A insurreição popular careceu de direção. E foi assim que, no seu final, como a falta de objetivos e direção claros, levou ao aparecimento de forças anarquistas que, em vez de utilizarem a sua força e coragem para canalizar a mobilização, desempenharam o papel de destruir edifícios. O poder é combatido com um poder paralelo ou uma disputa de poder por espaços de poder e não pela destruição de edifícios. Esta influência das forças anarquistas é, em última análise, explicada pela falta da entrada da classe trabalhadora organizada como uma classe, o que daria coerência, ordem à desordem necessária e não uma desordem por pura desordem.

5) A virada da classe média. Kast ganhou uma votação considerável não só devido ao voto dos ricos, mas também devido a setores da classe média que querem pôr fim à desordem e para isso – na ausência de uma alternativa – apelam a um homem forte anti-establishment que traga ordem. Não é por acaso que na conflituosa fronteira norte, lugar de passagem para os imigrantes, e no sul das terras mapuche, em conflito aberto com a propriedade dos proprietários das terras, são os lugares onde Kast conquistou o maior número de votos. Boric foi incapaz de responder aos conflitos sociais e, como resultado, deu a Kast mais de 40% dos votos na região. Em contraste, perdeu em Santiago e Valparaíso, onde Boric fez a maior diferença.

Os resultados das eleições proporcionais mostram que a sociedade está em disputa. Pode dizer-se que na Câmara viu um empate entre as forças. No Senado, a proporção será mais contestada, com candidatos independentes. A senadora mais votada foi Fabiola Campillai, uma operária que perdeu a visão dos dois olhos depois de ter sido atingida por uma bomba de gás dos Carabineros. O sentimento de justiça para a violência de 2019 ainda está vivo.

6) Derrotar a direita no segundo turno. É possível que no segundo turno o tabuleiro eleitoral seja abalado; que setores que não votaram no primeiro turno votem agora, perante o perigo do autoritarismo nas urnas. É mais provável que seja um segundo turno mobilizador, que as mulheres tomem as ruas como no Brasil, com o “Ele Não” contra Bolsonaro. A vanguarda independente, que emergiu com as grandes mobilizações, não deve excluir-se deste enorme compromisso que o povo chileno e todos os latino-americanos têm: derrotar a ala da direita nas urnas, sem que isso signifique apoiar o programa que Boric está a levantar. 

Em qualquer caso, haveria uma diferença importante com o Brasil se Kast vencesse. Teria de enfrentar um povo que praticou recentemente o exercício de grandes mobilizações e, portanto, estaria certamente pronto a repeti-las se os seus interesses fossem tocados. 

Nem podemos ignorar o fato de que a Assembleia Constituinte existe e que pode retomar o seu papel como alternativa de poder em novas condições. 

7) Construir uma alternativa política anti-capitalista. Por outro lado, as eleições chilenas colocaram mais uma vez perante nós a tarefa estratégica dos socialistas em todos os países da América Latina: construir alternativas anti-capitalistas que disputem o movimento de massas e se tornem, no futuro, alternativas de poder. No Chile, a esquerda anti-capitalista é composta por milhares de grupos militantes, desde sindicatos, feministas, de direitos humanos, territoriais e grupos estudantis, que têm sido fundamentais para o desenvolvimento da mobilização, e que precisam agora de uma organização política comum e democrática, que possa acomodar diferentes correntes e que seja unificada pelo programa anti-imperialista e anti-capitalista. Uma opção política capaz de oferecer essa alternativa, que ainda falta, mas que tem muito espaço para ser construída.   


TV Movimento

PL do UBER: regulamenta ou destrói os direitos trabalhistas?

DEBATE | O governo Lula apresentou uma proposta de regulamentação do trabalho de motorista de aplicativo que apresenta grandes retrocessos trabalhistas. Para aprofundar o debate, convidamos o Profº Ricardo Antunes, o Profº Souto Maior e as vereadoras do PSOL, Luana Alves e Mariana Conti

O PL da Uber é um ataque contra os trabalhadores!

O projeto de lei (PL) da Uber proposto pelo governo foi feito pelas empresas e não atende aos interesses dos trabalhadores de aplicativos. Contra os interesses das grandes plataformas, defendemos mais direitos e melhores salários!

Greve nas Universidades Federais

Confira o informe de Sandro Pimentel, coordenador nacional de educação da FASUBRA, sobre a deflagração da greve dos servidores das universidades e institutos federais.
Editorial
Israel Dutra e Roberto Robaina | 28 abr 2024

Educação: fazer um, dois, três tsunamis

As lutas da educação nos Estados Unidos e na Argentina são exemplares para o enfrentamento internacional contra a extrema direita no Brasil e no mundo
Educação: fazer um, dois, três tsunamis
Edição Mensal
Capa da última edição da Revista Movimento
Revista Movimento nº 48
Edição de março traz conteúdo inédito para marcar a memória da luta contra a repressão
Ler mais

Podcast Em Movimento

Colunistas

Ver todos

Parlamentares do Movimento Esquerda Socialista (PSOL)

Ver todos

Podcast Em Movimento

Capa da última edição da Revista Movimento
Edição de março traz conteúdo inédito para marcar a memória da luta contra a repressão