Algumas reflexões iniciais sobre os resultados do Chile
As eleições presidenciais chilenas confirmaram as previsões: uma polarização que dinamitou os partidos tradicionais que alternavam o poder após a malfadada ditadura de Pinochet. O segundo turno será entre o candidato de extrema-direita, Kast, e Boric, um jovem líder da Frente Amplio que emergiu das mobilizações estudantis de 2011.
1) Primeiro que tudo, um esclarecimento. É correto dizer que as eleições mostraram um panorama de polarização política. Contudo, as mídias exageram, ou melhor, distorcem, a caracterização da verdadeira polarização eleitoral. Se por um lado Kast é um autêntico representante da nova direita autoritária que surgiu no mundo a partir da crise dos regimes democráticos burgueses, um verdadeiro expoente do novo proto-fascismo, Boric é apresentado como candidato da extrema-esquerda porque fazia parte de uma aliança entre a Frente Amplio e o Partido Comunista. Mas não é, Boric não é um candidato anti-capitalista. Fez o seu programa e procurou os seus conselheiros com base num discurso de conciliação de classes social-democrata. Boric já anunciou que está disposto a fazer revisões ao plano de governo, que quer ser “transversal e falar com todos”. Para tal, recorreu a novos economistas. Todos apontam para a necessidade de um programa “mais moderado”. Entre estes nomes estão Hernán Frigolett, ex-presidente do Tesouro Nacional, e Roberto Zahler, ex-presidente do Banco Central e do FMI.
Nesse sentido, a sua política é muito semelhante à dos chamados progressistas, (como Podemos do Estado espanhol), e age como os progressistas vem atuando no grande processo de rebelião chileno de 2019. Ele como deputado e o seu partido (diferente do PC) fizeram parte do acordo do Concertación, que propôs uma reforma constitucional no auge da mobilização contra Piñera, quando a sua queda poderia ser marcada por essa realidade. Este foi o acordo que ajudou o governo Piñera a sobreviver. Esta caracterização não é para negar a polarização objetiva que acontece, mas ajuda a explicar o resultado das urnas presidenciais.
De fato, esta votação presidencial contradiz o que aconteceu quando a reforma constitucional foi posta à votação. Na votação da Reforma Constitucional, em Outubro de 2020, 80% dos eleitores rejeitaram o acordo feito no parlamento e votaram a favor de uma Assembleia Constituinte eleita soberanamente, não uma ditada pelo parlamento. E que na eleição subsequente, em Maio de 2021, dos eleitos a constituintes, a ala direita foi largamente derrotada. Porquê agora este resultado, se a sociedade quer o inverso? Um empate com sabor de derrota.
2) A primeira reflexão que surge é que nas eleições não houve nenhum candidato que representasse uma política verdadeiramente alternativa e que expressasse as aspirações da mobilização de 2019; Boric infelizmente não o foi. O seu programa e o seu discurso estavam cheios de generalidades abstratas e não era uma resposta aos graves problemas sociais que os trabalhadores e os pobres do Chile enfrentam. Daí a elevada taxa de abstenção, que chegou mesmo aos setores radicalizados que participaram da insurreição popular. Boric foi rápido ao avisar o mercado que Daniel Jadue, prefeito de Recoleta, não assumiria qualquer cargo num eventual governo seu. O presidente do PC pediu publicamente uma explicação. A ferida entre Boric e setores da esquerda foi aberta nas primeiras horas do segundo turno.
3) Outra reflexão é que a grande rebelião revolucionária de 2019 não foi até ao fim. Atingiu o regime político com muita força, deixou-o gravemente ferido, mas não o derrotou, não impôs uma nova alternativa. Naquela altura, parecia que a Assembleia Constituinte poderia ter sido essa alternativa de poder, e havia condições para isso, mas desidratou-se gradualmente, perdendo força. Conformou-se às regras do regime, quando era necessário que se tornasse um poder constituinte, ou seja, um poder paralelo que iria até ao povo para se legitimar e ouvir a voz dos trabalhadores e as suas exigências, a fim de elaborar um processo constituinte a partir de baixo.
4) A insurreição popular careceu de direção. E foi assim que, no seu final, como a falta de objetivos e direção claros, levou ao aparecimento de forças anarquistas que, em vez de utilizarem a sua força e coragem para canalizar a mobilização, desempenharam o papel de destruir edifícios. O poder é combatido com um poder paralelo ou uma disputa de poder por espaços de poder e não pela destruição de edifícios. Esta influência das forças anarquistas é, em última análise, explicada pela falta da entrada da classe trabalhadora organizada como uma classe, o que daria coerência, ordem à desordem necessária e não uma desordem por pura desordem.
5) A virada da classe média. Kast ganhou uma votação considerável não só devido ao voto dos ricos, mas também devido a setores da classe média que querem pôr fim à desordem e para isso – na ausência de uma alternativa – apelam a um homem forte anti-establishment que traga ordem. Não é por acaso que na conflituosa fronteira norte, lugar de passagem para os imigrantes, e no sul das terras mapuche, em conflito aberto com a propriedade dos proprietários das terras, são os lugares onde Kast conquistou o maior número de votos. Boric foi incapaz de responder aos conflitos sociais e, como resultado, deu a Kast mais de 40% dos votos na região. Em contraste, perdeu em Santiago e Valparaíso, onde Boric fez a maior diferença.
Os resultados das eleições proporcionais mostram que a sociedade está em disputa. Pode dizer-se que na Câmara viu um empate entre as forças. No Senado, a proporção será mais contestada, com candidatos independentes. A senadora mais votada foi Fabiola Campillai, uma operária que perdeu a visão dos dois olhos depois de ter sido atingida por uma bomba de gás dos Carabineros. O sentimento de justiça para a violência de 2019 ainda está vivo.
6) Derrotar a direita no segundo turno. É possível que no segundo turno o tabuleiro eleitoral seja abalado; que setores que não votaram no primeiro turno votem agora, perante o perigo do autoritarismo nas urnas. É mais provável que seja um segundo turno mobilizador, que as mulheres tomem as ruas como no Brasil, com o “Ele Não” contra Bolsonaro. A vanguarda independente, que emergiu com as grandes mobilizações, não deve excluir-se deste enorme compromisso que o povo chileno e todos os latino-americanos têm: derrotar a ala da direita nas urnas, sem que isso signifique apoiar o programa que Boric está a levantar.
Em qualquer caso, haveria uma diferença importante com o Brasil se Kast vencesse. Teria de enfrentar um povo que praticou recentemente o exercício de grandes mobilizações e, portanto, estaria certamente pronto a repeti-las se os seus interesses fossem tocados.
Nem podemos ignorar o fato de que a Assembleia Constituinte existe e que pode retomar o seu papel como alternativa de poder em novas condições.
7) Construir uma alternativa política anti-capitalista. Por outro lado, as eleições chilenas colocaram mais uma vez perante nós a tarefa estratégica dos socialistas em todos os países da América Latina: construir alternativas anti-capitalistas que disputem o movimento de massas e se tornem, no futuro, alternativas de poder. No Chile, a esquerda anti-capitalista é composta por milhares de grupos militantes, desde sindicatos, feministas, de direitos humanos, territoriais e grupos estudantis, que têm sido fundamentais para o desenvolvimento da mobilização, e que precisam agora de uma organização política comum e democrática, que possa acomodar diferentes correntes e que seja unificada pelo programa anti-imperialista e anti-capitalista. Uma opção política capaz de oferecer essa alternativa, que ainda falta, mas que tem muito espaço para ser construída.