Pelé é eterno
Cada jogo era uma festa. Só depois fui tomar consciência que a imagem daquela Seleção e a de Pelé eram usadas pelos gorilas da Forças Armadas
Hoje, 2 de janeiro de 2023, no final de um cortejo que mobilizou milhares de pessoas vindas de todos os lugares do Brasil e de fora do país, foi sepultado Edson Arantes do Nascimento. Mas o Rei Pelé, esse ficará em nossos corações e mentes para sempre. Tornou-se imortal.
Tive a oportunidade de ver Pelé jogar, quando ainda tinha 10 anos, na Copa do Mundo de 1970. Meu pai adquiriu um televisor a cores. Um dos poucos aparelhos coloridos em minha cidade. E nossa casa ficou repleta de pessoas, de amigos das minhas irmãs mais velhas, a molecada do bairro. Era uma festa.
Cada partida da Seleção era uma festa. Um evento. A partida que mais me marcou foi a semifinal entre Brasil e Uruguai. O ataque da esquadra brasileira era caçado em campo. O Uruguai abriu o placar. Gol de Cubilla. Um frango de Félix. O time uruguaio o tempo todo descendo a lenha na seleção brasileira.
Pelé era quem mais apanhava da zaga uruguaia. Já tinha sido pisoteado no chão pelo marcador oponente. Até que, num dado momento do segundo tempo, a nossa seleção tinha virado o jogo. Pelé levou a bola para a ponta esquerda do campo e, quando o zagueiro uruguaio tentou uma entrada desleal por trás, Pelé acertou uma cotovelada no beque da esquadra celeste, Dagoberto Fontes. Ele não sabia só apanhar, ele aprendeu a bater também. Na Copa de 1966, Pelé foi caçado em campo até sair quebrado no jogo contra Portugal, e o Brasil foi eliminado.
Mas aquela cena da semifinal contra o Uruguai foi marcante para mim. Pelé fez dois lances geniais naquela partida. O chute de bate-pronto na reposição de bola do goleiro Mazurkiewicz e o drible de corpo sem tocar na bola, deixando o goleiro do Uruguai entortado vendo a redonda passando rente à trave esquerda. O jogo terminou 3 a 1 para o Brasil, com gols de Clodoaldo, Jairzinho e Rivelino. O Brasil estava na final contra a Itália.
Assim, eu cresci em um campo de futebol em casa. Nunca mais perdi uma partida do Santos, quando era transmitida pela TV. Assisti a todos os filmes sobre o craque: “Isto é Pelé” (1974) , “Pelé Eterno” (2004), e até mesmo “Os Trapalhões e o Rei do Futebol” (1986).
Ainda não tinha a dimensão do que estava acontecendo naquele período. Os anos de chumbo da ditadura militar. Só depois fui tomar consciência que ao mesmo tempo em que vibrávamos com a Seleção, pessoas eram torturadas, mortas e assassinadas; e que a imagem daquela Seleção que tanto nos encantou, e a de Pelé em particular, era utilizada pelos gorilas da Forças Armadas.
Pelé na minha infância foi um herói. Na verdade havia três heróis: Pelé, Muhammad Ali e Martin Luther King Jr. (ainda não conhecia Malcolm X). Esses homens negros mudaram a minha história e a de tantas outras pessoas.
Pelé, o maior de todos! O homem que fez parar guerras para que o povo pudesse vê-lo em campo. O deus de ébano que encantou multidões em todo o planeta. Adeus, Edson Arantes do Nascimento. Descanse em paz. Pelé é eterno.