O debate sobre Nicarágua na esquerda brasileira: um novo capítulo
Receber os exilados e fazer da esquerda radical brasileira um ponto de apoio à resistência contra a ditadura em declínio: esse é o desafio que se abre com a vinda de Monica Baltodano ao país
Foto: Reprodução
A rebelião juvenil contra a ditadura de Ortega na Nicarágua completa cinco anos. Nascida da luta contra uma reforma neoliberal da Previdência pública, a luta se generalizou como uma demanda democrática contra o regime.
Um verdadeiro levante popular, com a juventude protagonizando, com barricadas e marchas multitudinárias, foi derrotado pela brutal repressão do regime. Afogada em sangue e perseguição, o resultado de 324 assassinados pelas forças orteguistas, segundo relatórios da CIDH e Anistia Internacional, milhares de exilados e desterrados políticos.
No Brasil, nos orgulhamos de ser um dos primeiros setores da esquerda a levantar a solidariedade incondicional à rebelião na Nicarágua. Um grupo de nicaraguenses residentes no Brasil prontamente organizou um comitê nacional de solidariedade, ao qual nos somamos. Recebemos uma caravana de ativistas, travamos debates em universidades, sindicatos e entidades. Levamos a pauta e a denúncia da ditadura de Ortega e Murillo para o conjunto do ativismo e dos setores mais atentos da sociedade civil.
A escalada autoritária de Ortega
A imposição da contrarreforma da Previdência, as sistemáticas violações dos direitos de populações indígenas e ribeirinhas e o massacre de abril de 2018 aumentam o desgaste do regime de Daniel Ortega que para evitar ser derrotado nas eleições presidenciais prendeu
sete dos principais candidatos da oposição. Ortega ganhou as eleições com 75% dos votos válidos e com um tremendo questionamento sobre a legitimidade dos resultados. Uma fração importante de guerrilheiros e guerrilheiras – entre as quais estão Mónica Baltodano, Dora Maria e Hugo Torres (morto nas celas de Ortega) – passou a questionar aberta e sistematicamente Daniel Ortega e seu regime. À medida que Ortega e Murillo perderam legitimidade frente à opinião pública internacional e popularidade frente aos nicaraguenses, aprofundou-se um regime marcado por violações sistemáticas às liberdades democráticas e aos Direitos Humanos. Culminando com a expatriação de 222 presos políticos e de outros 95 nicaraguenses que no exterior denunciavam os abusos de Ortega.
Cinco anos depois, entramos numa nova fase da luta
A recente decisão do governo brasileiro de admitir a hipótese de acolher os nicaraguenses vítimas das perseguições e arbitrariedades da ditadura orteguista, ainda que tardia, é um avanço, colocando o Brasil ao lado das principais democracias latino-americanas.
Dentro do PT, alinhado com os partidos do Foro de São Paulo, houve uma discussão que opôs, nas redes sociais, Alberto Cantalice, dirigente da Fundação Perseu Abramo, e Valter Pomar, do jornal Página 13, da tendência Articulação de Esquerda. Pomar expressa uma posição cada vez mais difícil de sustentar, mas que encontra eco no PT e em alguns setores da centro-esquerda, a fim de “relativizar” os crimes de Ortega.
Toda a retórica daqueles que defendem Ortega e seu regime para justificar tamanhas atrocidades, perpetradas inclusive contra antigos companheiros de luta, repete a própria retórica do ditador, baseada na tese que é uma luta contra uma pretensa agressão imperialista, tese que não pode se aplicar à Nicarágua de hoje.
Há tempos, Ortega vem numa crescente adaptação à agenda neoliberal e de colaboração estreita com o departamento de Estado norte-americano; a própria reforma do sistema previdenciário, que motivou os levantes do ano 2018, foi parte deste processo. Os acordos com setores conservadores das igrejas evangélicas e com a DEA para permitir ingresso das forças armadas dos EUA é a face militar desta estreita relação – além, é claro, do papel da Nicarágua como dique contra a onda migratória latino-americana aos Estados Unidos. A lista é grande.
Fato é que Ortega e Murillo encontram-se em uma situação indefensável, motivo pelo qual Chile, Colômbia, México, Argentina e agora Brasil, para citar apenas os países sul-americanos, ofereceram acolhida aos expatriados e condenaram, ainda que com diferentes matizes, as violações impostas por Ortega aos seus próprios cidadãos, que incluem ex-companheiras de armas como Mónica Baltodano e Dora Maria Téllez. As declarações do embaixador do Brasil junto à Assembleia Geral das Nações Unidas para os Direitos Humanos não foi uma ruptura com Ortega, como esperavam os milhares de exilados, expatriados, despojados de seus bens. Mas são um sinal positivo para quem luta por democracia.
De nossa parte, como corrente internacionalista, encaramos este momento com a sensação de dever cumprido, ainda que em parte. Desde 2018, apoiamos e estivemos juntos com a caravana de jovens nicaraguenses que estiveram no Brasil denunciando as violações cometidas durante a brutal repressão às mobilizações contra a reforma da Previdência. De fato, Yader, um dos que esteve aqui denunciando a morte do irmão, foi preso após o seu retorno à Nicarágua.
Em 2022, quando ainda enfrentávamos, nas ruas, a aventura autoritária de Bolsonaro, fomos em caravana até a fronteira da Costa Rica com a Nicarágua numa tentativa de ingressar ao país e verificar as condições dos presos políticos e depois denunciar ao mundo a evidente negativa de um regime fechado.
Nesta semana, o Brasil vai receber a histórica comandante Monica Baltodano, numa jornada organizada por movimentos e sindicatos, impulsionada pelo Comitê de Solidariedade, junto a setores da esquerda, na qual o MES está na primeira linha. Serão eventos e reuniões com lideranças e personalidades, em Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre.
Há uma abertura maior para ganhar a batalha de opinião, dentro da sociedade civil e do ativismo, e condenar o modelo e os crimes de Ortega. Para abrir o caminho para receber os exilados e fazer da esquerda radical brasileira um ponto forte de apoio à resistência contra a ditadura em declínio: esse é o desafio do novo capítulo que está se abrindo e fortalecendo com a vinda de Monica Baltodano ao país.