Levante em Jujuy – cinco notas breves sobre uma enorme rebelião popular
A rebelião jujeña, a disputa pelo lítio, a questão indígena e a política na Argentina: caracterizações e política de uma conturbada conjuntura político-econômica
Foto: Correo del Orinoco
Há uma rebelião popular em curso na província de Jujuy, no norte argentino. Motivada pela aprovação de uma reforma constitucional com dispositivos antipovo, imposta pelo governador Gerardo Morales, da coalizão opositora e direitista Juntos por el Cambio. Morales foi anunciado como candidato a vice-presidente na chapa interna de sua coalizão nacional, acompanhando Horácio Larreta, atual governador da cidade de Buenos Aires.
O levante popular de Jujuy ocorre no momento em que a Argentina debate os nomes para as primárias eleitorais, conhecidas como PASO, que indicam em agosto quem concorrerá à fase final do pleito presidencial, previsto para outubro.
O pano de fundo envolve uma múltipla teia de contradições, num país onde o nível de pobreza escala, assim como a inflação; há uma ofensiva extrativista que une as principais frentes eleitorais do regime- Juntos por el Cambio e Unión por la Patria (ex Frente de Todos, atual governo nacional) – que entra forte no interior argentino; a disputa pela exploração do lítio em terras indígenas, somada às pautas sindicais emergem como chave explicativa fundamental para a luta em curso em Jujuy. Vejamos as questões principais desta grande batalha.
Nota 1: Uma rebelião que não teme em dizer seu nome
A rebelião de Jujuy é uma rebelião que marca o caminho, por seu alcance, seus métodos e sua repercussão. Traça uma linha divisória entre um “antes” e um “depois”, tal como outros movimentos de massa de caráter provincial na história da Argentina. A unidade entre setores como professores, juventude e povos originários foi a base social alargada protagonista da revolta. A combinação entre greve de massas e piquetes (que cortaram as principais rodovias da província) mostrou a força do movimento, se espalhando por diferentes regiões, com epicentro em Purmamarca, no norte da província.
Jujuy é uma província do extremo noroeste argentino, fazendo fronteira com Salta, Bolívia e o norte do Chile. Tem quase 700 mil habitantes, uma abundante quantidade de recursos minerais, e, ainda assim, é uma das províncias mais pobres da Argentina.
A luta principal é de caráter político. As reivindicações salariais de professores e funcionários públicos deram o pontapé inicial nesta jornada de mobilizações. Dos baixos salários recebidos por essas categorias, a rebeldia popular passou a uma luta protagonizada pelos povos originários da região contra a nova constituição do governador Morales, que prevê, entre outras coisas, limitar o direito ao protesto, legitimando, assim, o modelo predatório, baseado no extrativismo, que só gera miséria e destruição ambiental em território indígena.
Nota 2: O levante em Jujuy matiza o “giro à direita”
2023 é ano de eleições presidenciais na Argentina e é nítido um giro à direita no terreno eleitoral, como indica a localização da oposição de direita à frente nas pesquisas, no derretimento do apoio ao governo e no impulso ao candidato neofacista Milei. Além disso, tanto o Kirchnerismo como o restante do Partido Justicialista optaram por levantar o nome de Sergio Massa como principal candidato da frente eleitoral Unión por la Patria. Massa é uma figura bastante conhecida no país hermano, neoliberal e muito próximo da embaixada americana, é, atualmente, ministro de economia escolhido a dedo pelo presidente Alberto Fernandez depois de assinar um acordo com o Fundo Monetário Internacional.
Entretanto, a esquerda cresce e conserva seu espaço no noroeste argentino – sobretudo em Jujuy, onde conseguiu eleger um deputado nacional nas eleições legislativas de 2021 (Alejandro Vilca) e neste ano, nas eleições provinciais, Vilca ficou em terceiro lugar na disputa pelo governo. A esquerda obteve um crescimento em relação ao pleito de 2019 e um crescimento expressivo no número de parlamentares. Mesmo em Salta, as diferentes chapas da esquerda chegaram a fazer quase 8% do total de votos, com uma média superior nos centros urbanos maiores.
A rebelião de Jujuy tem efeito sobre toda a Argentina. Se por um lado a repressão de Morales chocou todo um país, por outro a aguerrida resistência dos povos indígenas e dos trabalhadores encheram os corações argentinos de solidariedade para com o povo jujeño e contra as reformas ecocidas e genocidas do, agora, pré-candidato a vice-presidente. Na cidade de Buenos Aires, as ruas foram palco de mobilizações de ativistas e militantes que denunciavam a repressão e o tom ditatorial da reforma constitucional. Além disso, muitas categorias se somaram ao apoio à Jujuy. Houve uma série de paralisações tanto na cidade como na província de Buenos Aires de médicos residentes, motoristas de ônibus e professores.
Nota 3: A disputa do Lítio
O lítio é fundamental na indústria de tecnologia, um metal fundamental para a produção de baterias de celulares, notebooks, baterias de carro. Esse elemento também é de suma importância na saúde, já que muitos medicamentos psiquiátricos possuem lítio na composição, especialmente antidepressivos e antipsicóticos. Além disso, na pseudopreocupação do Norte global e de um setor do capital em buscar fontes de energia alternativas ao petróleo, o lítio assume um papel de protagonista como fonte de energia limpa, muito utilizado na produção de carros elétricos, por exemplo.
O fato é que a exploração do lítio aumentou nos últimos anos e a partir disso aprofunda a relação de desenvolvimento desigual e combinado entre os países do Norte e do Sul global. Na geopolítica capitalista, a exploração desmedida e violenta prejudica povos e ecossistemas do Sul. Na América Latina está presente o chamado triângulo do lítio: norte argentino, norte chileno e Bolívia concentram mais da metade das reservas mundiais desse metal. A imperialista divisão internacional do trabalho nos impõe a lógica de extração e venda barata do lítio, sem a possibilidade de avançarmos na produção de bens de consumo.
Nesta perspectiva, a disputa por este metal alcalino aprofunda as desigualdades entre os países e provoca instabilidade política a partir de interferências diretas de bilionários da indústria de tecnologia em nosso continente. Isso se comprova principalmente quando se analisa os fatores econômicos e a interferência de Elon Musk – dono da Tesla – no golpe de Estado boliviano em 2019, que destituiu o presidente democraticamente eleito Evo Morales.
Na Argentina, o governo de Maurício Macri privatizou a exploração do lítio, concentrado no noroeste do país. As empresas estrangeiras extraem o metal de maneira irresponsável afetando os povos originários desta região e desequilibrando ecossistemas.
A reforma constitucional proposta pelo governador de Jujuy Gerardo Morales – e aprovada tanto pela direita tradicional como pelo oficialismo – limita as mobilizações na província na tentativa de pactuar uma paz com as empresas estrangeiras que exploram o território. Um dado fundamental para a compreensão deste processo é o fato de que duas das três maiores empresas exploradoras de lítio no mundo serem de origem estadunidense e atuarem nos territórios latino- americanos.
Neste contexto, há uma tensão crescente no cenário argentino, expressa, principalmente, nas jornadas de luta dos últimos dias em Jujuy e protagonizada por povos indígenas que ocupam as terras onde as mineradoras se instalam. A reforma constitucional em Jujuy é autoritária e coloca em risco tanto a democracia como a soberania nacional.
Nota 4: Os povos originários. Jujuy é Argentina
A rebelião jujeña tem como protagonistas os povos originários. Isso se mostra em praticamente todas as fotos tiradas dos protestos, onde um dos elementos principais no cenário de guerra provocado pela polícia a mando do governador Morales é a Whiphala, bandeira característica dos povos indígenas que insiste em ficar de pé e resiste às bombas e tiros da violenta repressão. O nome da bandeira é de origem aimará, seu significado é uma mistura de alegria e sonho de conduzir uma bandeira, e, assim, fazendo jus às suas raízes, a bandeira sempre está erguida e simboliza a luta de um povo que não se ajoelha frente a covardia do Estado, e, que com paus e pedras, lutam pelo fim da exploração de suas terras.
O povo jujeño e a Whiphala são o retrato de uma Argentina que foi varrida para debaixo do tapete, que foge do estereótipo branco, europeu, imigrante que chegou ao país. A Argentina é um país também indígena, ainda que seu mito de fundação colonial o tente negar. Os povos originários dessa terra e os que depois chegaram por lá são marginalizados, inviabilizados e os principais alvos das polícias. Ainda assim, num país onde o debate étnico-racial segue verde, os indígenas são a ponta mais avançada no acúmulo do movimento de massas nos últimos tempos, seja agora na rebelião jujeña, seja no movimento territorial/piquetero que sacode o país de Norte a Sul.
É importante chamar a atenção para o caráter étnico-racial dos últimos levantes populares na América Latina. A rebelião de Jujuy é parte do ascenso protagonizado pelos povos originários nos últimos movimentos de massas do continente. Na Bolívia, a participação indígena foi crucial para reverter o golpe de Estado sofrido pelo presidente Evo Morales. Na rebelião chilena em 2019 se destacaram nas multidões as bandeiras mapuche. No Equador, os povos indígenas travaram as principais rodovias do país na luta contra as reformas de Lenin Moreno. Na Colômbia, a questão étnico-racial foi chave para a vitória da dupla Petro-Marquez.
Nota 5: elementos de antecipação nacional
Jujuy sempre foi uma peça chave para entender a política nacional argentina. Em maio de 1997 houve um levante popular dos trabalhadores estatais e dos desempregados contra as políticas neoliberais de ajuste econômico do então presidente Menem. A luta por trabalho genuíno consagra o método piquetero na Argentina, hoje o movimento social que mais tem capacidade mobilizar no país e que carrega a mesma consigna do fim dos anos 90. O líder popular Perro Santillan foi a figura de proa desse processo.
Se há 26 anos atrás as lutas jujeñas foram a primeira expressão de uma jornada que teria seu ápice em 2001, hoje temos que olhar atentamente à resistência como possível prelúdio de algo que está por vir. A situação financeira da Argentina se agrava, indicadores de pobreza crescem, a indigência cresce e a resposta da direita tradicional é a repressão e criminalização da luta. Já a centro-esquerda sofre um processo de degeneração e aposta em candidatos com vínculos estreitos com a embaixada americana.
A situação da Argentina será determinante para todo o continente. A direita moderada na figura do atual governador da cidade de Buenos Aires e atual pré-candidato a presidente Horácio Larreta deu um giro ao autoritarismo e fechou sua fórmula convidando Morales para a composição. O movimento de massas na Argentina está em vias de ser criminalizado pelos partidos políticos da ordem.
O combate ao agronegócio e à exploração de minerais precisa ser um tema central para todas as forças que têm um compromisso democrático no país, em especial para a esquerda socialista. É tarefa da esquerda revolucionária denunciar e esmagar este modelo que põe em risco ecossistemas e povos indígenas, responsável não somente pela destruição destes, mas também pela evasão das riquezas nacionais.
Trocando em Miúdos
Há dois elementos conclusivos, para nossa reflexão e ação. A primeira é que o crescimento da direita e da extrema-direita na Argentina, que é real e vai encontrar um movimento popular e social com muitas reservas, levando a um grande choque. Num país onde os próximos dois anos vão levar a uma deterioração das condições de vida. Jujuy é parte dessa maior polarização.
E o segundo elemento é que o tema ambiental somado é central e decidirá o rumo do debate da sociedade no período que se acerca. No Brasil, isso se expressa na cruzada política e social do agrobolsonarismo contra os movimentos sociais e na batalha sobre o Marco Temporal. Estamos ao lado dos que lutam.