Golpe de Estado no Níger
A movimentação dos militares no país africano acompanha processos similares na África Ocidental
Foto: Wikimedia Commons
Via Viento Sur
No final de agosto de 2022, várias centenas de ativistas se manifestaram em frente à Assembleia Nacional em Niamey, a capital do Níger. Seu objetivo era denunciar a intervenção militar estrangeira no país e expressar sua indignação com o aumento do custo de vida. Bandeiras russas foram penduradas em um monumento e observadores internacionais expressaram preocupação, temendo que a Rússia estivesse apoiando grupos de protesto com o objetivo de desestabilizar o último aliado do Ocidente – juntamente com o Chade – na luta contra o terrorismo no Sahel.
Quando outra manifestação foi proibida, esses mesmos observadores esqueceram rapidamente a anterior. Desde sua eleição no início de 2021, o presidente Mohamed Bazoum tem usado as mesmas ferramentas que seu antecessor, Mahamadou Issoufou, para dar a impressão de que tudo estava bem em seu país. E muitos queriam acreditar nisso.
Mas a população nigerina continuou a expressar sua raiva, embora em voz baixa. Eles expressaram suas frustrações sobre a falta de liberdade democrática, a presença das forças francesas no Níger, a pobreza e as dificuldades extremas em um país rico em urânio, petróleo e ouro, nas mídias sociais e em grupos de mensagens privadas. Para grande parte deles, o golpe de Estado de 26 de julho de 2023, liderado pelo general Abdourahamane Tiani, é a promessa de uma mudança real. Sua fé no sistema democrático há muito se desvaneceu.
Eleições contestadas
Mohamed Bazoum chegou ao poder em abril de 2021 após uma eleição disputada, na qual a oposição e observadores independentes apontaram fraude eleitoral orquestrada por seu movimento político, o Partido Nigerino pela Democracia e o Socialismo (PNDS-Tarayya). A comunidade internacional, inclusive a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) e a União Africana (UA), que enviaram observadores eleitorais, pouco se pronunciaram sobre o assunto. O presidente cessante recebeu até mesmo o prêmio Mo-Ibrahim 2020, no valor de US$ 5 milhões por dez anos.
Há uma crença generalizada no Níger de que um político só pode se tornar presidente se tiver o apoio da França. Longe de lutar contra essa crença, Bazoum multiplicou os sinais nesse sentido. Quando o Mali exigiu o fim da Operação Barkhane [operação militar francesa contra o terrorismo no Sahel] em fevereiro de 2022, o presidente francês Emmanuel Macron declarou que o Níger aceitaria receber parte das tropas francesas, uma decisão que foi altamente controversa entre a população nigerina. Além disso, a primeira entrevista de Bazoum esclarecendo a posição do Níger sobre essa questão foi concedida à imprensa francesa, e não à imprensa nigerina.
Além disso, embora Bazoum estivesse tentando realizar reformas, combater a corrupção e construir estradas, foi sua política de redução da taxa de natalidade (atualmente sete filhos por mulher, uma das mais altas do mundo) que atraiu mais atenção. Popular entre os doadores ocidentais, ela não reflete as preocupações de grande parte da população nigerina e, às vezes, é vista até como um desejo do Ocidente de impor seu modo de vida.
Deterioração da confiança
A falta de confiança na democracia como um sistema de governo era generalizada muito antes de Mohamed Bazoum chegar ao poder. Durante uma pesquisa de 2016 no norte do Níger, os entrevistados expressaram dúvidas sobre a capacidade da democracia de oferecer um sistema de governança capaz de resolver os problemas do país. Eles reclamaram que, em uma democracia liberal, o sistema judicial é muito fácil de ser corrompido e que as sentenças são muito brandas para deter os criminosos.
A disposição dos cidadãos de pagar impostos é frequentemente vista como uma expressão de sua percepção da autoridade. Em 2013, 84% dos nigerinos concordaram com a afirmação de que o Estado tem o direito de forçar as pessoas a pagar impostos. Em 2020, apenas 45% concordaram, de acordo com números compilados a partir de dados do Afrobarômetro. Foi sob o comando de Issoufou, no poder de 2011 a 2021, que essa mudança ocorreu. Bazoum era seu protegido e, embora tenha tentado gradualmente se emancipar de sua influência, ele não incorporou uma mudança na forma como o Níger era governado, uma mudança que muitos nigerinos estavam pedindo.
Embora os vários ramos das forças de segurança critiquem a abordagem usada na guerra contra o terror, o golpe de Estado de 26 de julho abriu um espaço – talvez temporário – para a população se manifestar contra as injustiças. Uma jovem viúva entrevistada por uma estação de televisão local durante as manifestações contou como seu marido, um membro da polícia, foi enviado para combater os terroristas. Ela disse que ele estava mal equipado e caiu no campo de batalha. A multidão ao seu redor expressou solidariedade: “Amin, Amin”.
Nostalgia por Seyni Kountché
Muitas pessoas no Níger acham difícil entender por que seu exército nacional não consegue derrotar os grupos jihadistas que operam ao longo das fronteiras com Mali e Burkina Faso. Eles se lembram de que o exército nacional reprimiu um levante tuaregue na década de 1990, e o fez sem a intervenção do Ocidente. No exterior, eles se perguntam como a população nigerina pode considerar um líder golpista mais aceitável do que um líder eleito democraticamente. Mas se perguntarem a qualquer pessoa no Níger quem eles consideram o melhor líder que já tiveram, eles geralmente responderão com nostalgia sobre Kountché.
O Coronel Seyni Kountché liderou um golpe de Estado em 1974[1] e permaneceu no poder até sua morte em 1987. Sob sua presidência, o país experimentou um forte crescimento econômico no final da década de 1970, mas também uma crise na década de 1980. No entanto, a população nigerina não se lembra de Kountché por sua gestão econômica, mas sim por sua forte abordagem militar, sua luta contra a corrupção e sua repressão às vozes dissidentes.
O exército nigerino continua a tranquilizar a população e goza de grande simpatia entre eles. É verdade que, nos últimos anos, diante da crise de segurança, o exército nem sempre foi capaz de proteger a população da violência jihadista – às vezes, ele próprio cometeu massacres – e isso o afastou um pouco da população, que começou a perder a confiança nele. Mas o exército também perdeu várias centenas de soldados, uma perda sem precedentes na história do conflito no Níger.
Interpretações errôneas
A oposição e alguns membros da sociedade civil acusaram a liderança política de ser responsável pelo enfraquecimento do exército, principalmente por terceirizar a segurança nacional para forças estrangeiras. Em uma entrevista ao Jeune Afrique em maio de 2023, quando o presidente Bazoum tentou justificar que a distribuição de armas para grupos de autodefesa foi um erro, ele argumentou que “se os terroristas são mais fortes e mais preparados para a batalha do que o exército, como os civis podem resistir a eles?” Embora a intenção do presidente ao dizer isso não fosse questionar o espírito de luta dos militares, muitos oficiais ficaram magoados com esses comentários e não os digeriram.
A situação não é nada parecida com a das juntas de Burkina Faso e Mali. E qualquer interpretação de que a Rússia estava por trás do golpe seria errônea. Ao contrário dos jovens soldados que tomaram o poder em Ouagadougou e Bamako, os oficiais que anunciaram o golpe em 26 de julho são generais e oficiais superiores com experiência no governo.
A maioria da população se opõe à intervenção militar da CEDEAO
Não houve o mesmo nível de radicalização que houve no exército do Mali antes do golpe de 2020. Os líderes das várias forças armadas do Níger se uniram rapidamente para declarar um golpe, mas ainda não está claro se eles querem ou não se agarrar ao poder como fez Kountché. Parece que o General Tiani está determinado a estabelecer um regime militar, mas, ao mesmo tempo, muitos membros das forças armadas são a favor de um retorno à democracia. Há um precedente: o golpe de Salou Djibo em 2010.
Na noite de quarta-feira, 2 de agosto, uma semana após o anúncio do golpe, o general Abdourahmane Tiani, nomeado chefe de estado pelo Conselho Nacional de Salvaguarda da Pátria (CNSP), declarou que seu objetivo era criar as condições para uma transição pacífica que levaria “em um tempo relativamente curto” à realização de eleições gerais.
Promessa de mudança
São necessárias negociações para resolver essa crise, mas o ultimato da CEDEAO, que em 30 de julho deu aos golpistas uma semana para entregar o poder, está aumentando as tensões. A negociação de uma transição civil ou civil-militar pode levar tempo, algo que a organização regional parece recusar. A reintegração de Bazoum é a solução? Certamente, a imposição de um líder aprovado pela CEDEAO não seria: os oponentes de um retorno civil ao poder já estão denunciando o domínio das elites francesas e da África Ocidental. Em sua opinião, essas elites não se importam com a vida das pessoas comuns, com as dificuldades que elas têm de suportar e com os riscos assumidos pelas forças armadas na luta contra o terrorismo.
Após a independência, os militares exerceram o poder político por décadas sob regimes autoritários ou semi-autoritários. Embora a semeadura de sementes democráticas no continente possa ter posto um fim a essa situação, os militares nunca ficaram à margem dos interesses políticos. Esse é um fato social que não deve ser ignorado se quisermos entender a relação entre o poder e o Estado na África. Os recentes golpes de Estado em Burkina Faso, Guiné, Mali e Níger ilustram a natureza de mosaico da gestão civil e militar do poder político.
Para uma grande parte da população, as posições ainda não foram radicalizadas. Por outro lado, a maioria dos nigerinos se opõe a uma intervenção militar da CEDEAO. Se essa intervenção ocorresse, facções muito mais radicais se formariam, e elas já estão se expressando de forma pouco disfarçada. As estruturas que sustentam as instituições democráticas eram falíveis antes do golpe. Elas não podem ser restabelecidas sem a promessa de uma mudança fundamental.
[1] Sobre este golpe e a suposta implicação da França, veja Klaas van Walraven, “Opération Somme: La French Connection et le coup d’état de Seyni Kountché au Niger en avril 1974”, Politique africaine 2014/2, 134, pp. 133 a 154.