Liderança quilombola do Maranhão leva à Justiça autor de ameaça de morte
Antonia Cariongo lutou três anos por audiência com fazendeiro que prometeu assassiná-la em 2020
Fotos: Arquivo Pessoal
No início da tarde desta quarta-feira, no Fórum de Santa Rita – município localizado a 70 quilômetros de São Luiz (MA) – a lavradora Antonia Cariongo verá frente a frente, mais uma vez, o homem que prometeu matá-la em 2020. Trata-se de um fazendeiro local, que há décadas aterroriza a comunidade de Quilombo do Cedro, tentando expulsar os moradores pelo medo com o objetivo de tomar suas terras.
Nascida e criada no Quilombo do Cariongo, e uma das fundadoras do Comitê de Defesa dos Direitos dos Povos Quilombolas de Santa Rita e Itapecuru-Mirim, Antonia foi chamada pelo povo do Cedro a defendê-los, ante a ineficiência do poder público em cumprir sua obrigação. Acabou tornando-se alvo da ira do fazendeiro. Com medo, mas com força, a liderança quilombola acionou a Justiça e há três anos espera por esse encontro no Fórum, na esperança que alguma punição seja endereçada ao seu algoz.
Seria a única reparação possível para uma mãe de três filhas que se viu obrigada a afastar-se para proteger suas vidas, e a mudar a rotina para não colocar em risco a vida dos demais familiares e companheiros de luta.
“Muitas vezes, meus irmãos me pediram para deixar o movimento. Houve situação em que minha irmã se ajoelhou, chorando, pedindo para eu deixá-lo, porque sonhou que chegava um carro aqui na porta de casa e me enchia de bala. Não é fácil isso, porque não é só você que vivencia essa agonia. A comunidade toda sabe, essa coisa de não saber que hora você vai morrer. Sua família também acaba vivendo esse suplício. Todo mundo acaba sofrendo”, comenta.
Mortes sem solução
Na última década, pelo menos 30 lideranças quilombolas foram assassinadas no país, segundo levantamento da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). O Maranhão é o segundo estado em número desse tipo de homicídio (9), superado apenas pela Bahia (11). Os casos de ameaças são conhecidos. Raras são as punições aplicadas antes que as vítimas se tornem estatísticas. E Antonia esclarece que o medo não é a única dificuldade trazida pela ameaça.
“Quando você decide ser um defensor de direitos humanos e sofre ameaça, as portas de emprego se fecham. Você ganha todos os tipos de apelido pejorativo, é chamada de louca, de ‘fazedeira de motim’. ‘Você não pode contratar ela, não’. A gente fica numa situação de abandono no nosso país. Falta estrutura para os programas de proteção, que não te dão uma cesta básica. E você precisa de alguma forma sobreviver, entende? É preciso ter um olhar para esses defensores para além da segurança”, observa.
Ainda que com condições desfavoráveis, Antonia teima em não esmorecer, e segue realizando seu trabalho em quilombos de todo o território maranhense, onde ouve e encaminha às autoridades casos de violações de direitos, na educação, na saúde na infraestrutura, e no meio ambiente – especialmente em questões relacionadas a desmatamento e retirada ilegal de madeira.
“Se eu não fizer quem que vai fazer?”, pergunta. “Meus irmãos já imploraram para que eu saia do movimento. Mas e sair, não vou mais existir”, completa,
Na entrevista a seguir, Antonia repassa sua história, sua luta, seus medos e esperanças de um futuro mais seguro para ela, suas filhas e todas as lideranças quilombolas do país.
Revista Movimento – Quando você começou a atuar nos movimentos sociais?
Antonia Cariongo – Eu comecei a atuar como liderança quilombola muito jovem. Tinha, acho, 15 ou 16 anos quando eu comecei a entrar para os movimentos. Naquela época, não com tanta frequência. Mas, em 2015, decidi que a única coisa que eu ia fazer de fato na minha vida era militar, fazer movimento social. E, aí, eu realmente comecei a fazer essa luta. Em 2018, fundei, junto com várias outras lideranças de quilombos, o Comitê de Defesa dos Direitos dos Povos Quilombolas, de Santa Rita e Itapecuru-Mirim, para lutar contra a obra de duplicação da BR-135, que é uma obra que afeta mais de 100 quilombos.
Revista Movimento – E foi na sua atuação pelo comitê que você conheceu a problemática do Quilombo do Cedro?
Antonia – Em 2018, eles me convidaram para prestar socorro. Eu já tinha ouvido falar que havia um conflito que a comunidade enfrentava, há mais de 12 anos, com um fazendeiro de nome Ezequiel Xenofonte. Mas eu ainda não tinha ido para dentro da comunidade, né? E aí eles me convidam para ir lá e eu comecei a fazer reuniões com eles, a orientá-los. Eles contaram que durante esse conflito, esse fazendeiro derrubou a casa das pessoas, derrubou a associação, fez desmatamento, matou os animais das pessoas, enfim, tudo o que você imaginar ele praticava lá, né? Eles já tinham registrado vários boletins de ocorrência, mas nenhuma providência tinha sido tomada por parte da polícia ou Justiça em nosso município. Quando eu comecei a atuar lá, decidimos começar a registrar os boletins de ocorrência em São Luís. E sempre que tinha uma ação dele contra a comunidade, a gente ia registrar o boletim na capital. Começamos a encaminhar algumas coisas pela Delegacia Agrária lá na capital São Luís.
Revista Movimento – Esse fazendeiro reclama a propriedade da área?
Antonia – Sim, mas lá é um território quilombola, né? Certificado pela Fundação Cultural Palmares. E até hoje ele não conseguiu comprovar que é o proprietário legítimo de esta fazenda, porque não tem nenhum documento no nome dele. Ele diz que herdou dos avós. Essa propriedade, inclusive, tem um histórico de escravidão até a década de 1930 ou 1940. Dizem que havia um, tinha um engenho dentro dessa fazenda, com trabalho escravo. Esse engenho se desfaz quando explode. Ainda hoje existem peças do maquinário espalhado dentro do nosso território, a quilômetros de distância de onde estava o engenho. Morreram muitos escravos nesse episódio, e o povo que vive lá ainda é descendência deles…
Revista Movimento – E quando ele ameaçou você?
Antonia – Um belo dia, ele colocou uma máquina no Quilombo do Cedro para fazer um desmatamento. Essa máquina passou três dias desmatando lá, né? Isso foi em 2020. Eu não estava no quilombo, estava em outro município, em Rosário, fazendo um trabalho. E eles me ligaram pedindo para que eu acionasse a polícia. A polícia do nosso município nunca atuou a favor das comunidades mas, sim, de pessoas como ele, que é fazendeiro, que tem um poder aquisitivo, político. Mas eles pediram ajuda, porque quando ele finalizou o desmatamento na área, ele mandou que o maquinista fosse desmatar o quintal das casas das famílias. E elas não aceitaram aquela situação, fizeram uma corrente humana e pararam a máquina. Então me ligaram e eu liguei pra São Luís pedindo ajuda lá pra o pessoal de São Luís, da Comissão Estadual de Prevenção de Violência no Campo e na Cidade (Coecv) que faz parte de uma secretaria do governo e tem atuação nos conflitos no campo. Pedi que encaminhassem uma viatura para lá. [O fazendeiro] já sabia da minha atuação com esse quilombo, já havia dito várias vezes coisas ameaçadoras sobre a minha pessoa, mas nunca diretamente para mim. Mas nesse conflito, ele fez a ameaça de morte diretamente à minha pessoa. A fala dele foi filmada. Ele dizia que sabia quem eu era, que sabia meu nome, onde eu morava, quantas filhas eu tinha, os nomes delas e até o nome da parteira que havia me colocado no mundo. Disse que o que era meu “estava guardado” e que eu ia aprender a respeitá-lo, e ele ia dar um fim naquilo.
Revista Movimento – Que medidas você tomou?
Antonia – Até então, eu não dei muita bola, né. Achei que fosse uma fala aleatória de alguém que estava no meio de um conflito, numa confusão e tal. Mas menos de uma semana depois da ameaça, eu estava aqui, na porta da casa que moro no meu quilombo, tentando falar no telefone. E eu vi uma movimentação diferente na BR-135, que é a principal rodovia que liga o estado do Maranhão a todos os outros estados, e é bem pertinho daqui. Era por volta das 18h40min, quando eu observei dois homens em uma moto. É muito fácil você identificar, apesar de ser uma rodovia, quem está passando e quem está procurando um endereço, uma pessoa, tentando localizar uma casa. E a mais ou menos uns 500 metros da minha casa, eles desceram da pista e vieram procurar. Quando eles foram se aproximando da minha casa, eu corri, fechei as portas e fiquei observando a ação deles. Eles vieram até a entrada da minha casa, olharam, apontaram e retomaram, foram embora. Naquele momento foi que a minha ficha caiu. Essa foi uma noite das quais eu não dormi em casa, nem dormi essa noite. Mas eu não contei nada para meus irmãos nem para as filhas. Pensei primeiro em investigar se eles poderiam estar procurando outra pessoa. No dia seguinte, fui fazer essa minha investigação, mas a única pessoa que eles procuravam era eu. Naquele momento ali ficou evidente para mim que eu era um alvo.
Revista Movimento – Sem confiar na polícia local, a que você recorreu?
Antonia – Foi o momento em que eu abri a conversa. Eu não tinha mais como segurar, fiquei com meu psicológico muito, muito, muito, muito, muito abalado. E foi quando eu me abri, não para a família, mas para alguns amigos, né? E na época eu tinha uma relação que a gente tinha que fazer um trabalho junto com umas mulheres da ONU. As primeiras pessoas que eu contei foram elas. E elas disseram: Antônia, tu precisa urgentemente ir na polícia. Mas eu não podia ir na polícia do município. Então falei com um amigo meu, o advogado Nonnato Masson, que me acompanhou no registro em São Luís. Entregamos o vídeo como prova na Delegacia Agrária. Aí, eu fui pro programa de proteção e entrei com uma ação na Justiça contra . De 2020 para cá, a gente veio pelejando, pelejando, lutando para conseguir uma audiência. E nada. Mas como o processo prescreve agora em outubro, continuamos nessa corrida para tentar marcá-lo. E aí a gente conseguiu. Será na próxima quarta-feira, no dia 13 de setembro, às 13h30min.
Revista Movimento – A gente não ouve falar muito sobre processos e condenações por ameaças quando envolvem quilombolas e indígenas…
Antonia – Até onde eu tenho conhecimento, é a primeira vez no estado do Maranhão que um ameaçador vai para uma sala de audiência com um ameaçado. Ou seja, a gente tem um histórico no Maranhão horrível de lideranças quilombolas que foram assassinadas. Um número absurdo de pessoas que estão sobre a ameaça de morte e que a gente não vê nenhum tipo de solução, sabe? Você não vê um crime que foi praticado sendo investigado, você não vê nenhum crime apurado até hoje. Não se sabe quem mandou matar, não se sabe quem matou, e por isso fica. Eu tenho lutado muito contra isso, mas hoje, eu não tenho mais vida social. Tipo assim, o cara te ameaça de morte e tu não consegue mais ter vida. Ele consegue ter, mas tu não. Eu ainda faço meu trabalho nas comunidades, mas não como fazia antes. Antes eu podia pegar qualquer transporte, ir para dentro de uma comunidade, fazer uma reunião, anunciar que eu ia e tudo. Hoje eu não posso fazer mais nada disso, né? A casa onde moro tem câmeras de monitoramento para saber quem se aproxima. Nem considero que isso seja uma segurança, mas de alguma forma isso inibe a presença de alguém, porque quem se aproxima sabe que será visto. Então, de 2020 para cá, não foi fácil. A gente se sente muito vulnerável porque o nosso país ainda não tem uma estrutura para resguardar a vida dessas pessoas. Os nossos programas de proteção não têm estrutura para isso. É preciso que a sociedade civil foque mais nisso.
Revista Movimento – Mas com tudo isso, você ainda foi candidata ao Senado pelo Maranhão. Como foi fazer uma campanha sob ameaça de morte?
Antonia – Eu expus para o Estado do Maranhão inteiro que eu vivia sobre a ameaça de morte, e expus o nome. Esse fazendeiro é um procurador federal, e persegue pessoas. Depois de mim, ele ameaçou mais duas lideranças dessa mesma comunidade de morte. Hoje há várias ações contra ele, um inquérito com mais de 2 mil páginas sobre o crime de ameaça de morte a três pessoas, derrubada de moradias, do prédio da associação, matança de animais e desmatamento. Todos esses crimes e até hoje ele não foi punido por nada.
Revista Movimento – Recentemente, Maria Bernadete Pacífico, que lutava a mesma guerra que você, mas na Bahia, foi assassinada, ainda que fosse público que ela corria risco de vida. Como você encarou essa notícia?
Antonia – Isso é muito preocupante. Toda vez que uma liderança, tanto faz se é indígena ou de quilombo, é morta, a gente morre um pouquinho também. Eu levo uma vida hoje que, se eu saio de casa, não sei se eu vou voltar. Você não tem vida social, você não pode ir para uma festa com seus amigos, se divertir, porque você imagina que a pessoa vai brigar com você, te matar e usar aquilo como uma desculpa, entendeu? Sendo que na verdade alguém está te observando porque precisa praticar isso com você e a gente fica numa situação difícil porque a gente tem um trabalho para fazer. As pessoas precisam da gente dentro das comunidades porque nosso povo não tem orientação, não tem política pública, nosso povo não tem saúde, não tem educação, não tem estradas de acesso para os seus quilombos, não tem nada. E quando a gente decide fazer um trabalho desse, que nada mais é do que reivindicar o próprio direito, você encontra com pessoas que querem te matar para poder te tirar do caminho, porque tu tá atrapalhando os negócios deles, entendeu? Alguém precisa parar essas pessoas. Que essa seja a primeira audiência de muitas, e eu tenho certeza que Deus ainda vai me manter aqui viva por muitos e muitos anos, e que eu vou conseguir terminar meus objetivos aqui na Terra, que foi o que Ele determinou.