A necessidade da disputa ideológica contra o sionismo de direita e de “esquerda”
Uma reflexão sobre as diferentes vertentes do sionismo
Imagem: Wikimedia Commons
Desde a contraofensiva do Hamas ao Estado de Israel, o exército israelense passou a utilizar de modo voraz todo seu poderoso arsenal militar contra Gaza. Enquanto bombas são lançadas, causando o desespero de milhares de civis, tanto do lado israelense e, sobretudo, no lado palestino (com hospitais e escolas sendo bombardeadas, levando a óbito centena de milhares de civis), uma investida midiática toma corpo requentando de modo torpe velhas narrativas do histórico conflito entre Palestina e Israel.
Nesse contexto, milhões de pessoas são embriagadas de informações absolutamente parciais que são transmitidas nos telejornais, nos canais de assinatura e nos jornais impressos hegemônicos. A pauta é uma só: a defesa do Estado de Israel sob o legitimo direito de o povo palestino existir de modo soberano em seu território. Porém, a coisa não é apresentada dessa forma, o eixo público (na forma de notícia) é a denúncia da natureza do Hamas como “organização terrorista” que massacrou civis israelenses e a verborragia abstrata do caminho da paz para a região sob a pálida bandeira de dois Estados.
Mas, o fato objetivo é que o Hamas é um tipo de partido-exército, filial palestina do grupo egípcio Irmandade Muçulmana, que surgiu em 1987, orientado por ideologias reacionárias e que optou, via seu braço militar: Brigadas Izz al-Din al-Qassam, por métodos classificados como terroristas na luta contra o Estado de Israel. Mas, não só, o Hamas governa a Faixa de Gaza (desde que venceu as eleições em 2006) e, obteve apoio de grande parte dos palestinos nessa região, por se apresentar como oposição ao desgastado Fatah (que controla a Cisjordânia e por meio da Autoridade Palestina, representa oficialmente o povo palestino em fóruns internacionais) e defender uma proposta que não capitulasse a voraz ofensiva que perdura 75 anos do Estado de Israel e dos colonos israelenses em seu território.
Portanto, a ação militar do Hamas se localiza num contexto de uma guerra ininterrupta e na necessidade de defesa do território palestino. O que não justifica, objetivamente, ações terroristas contra civis. Embora, haja informações, pouco divulgadas na imprensa burguesa, que a ação do Hamas tinha alvos militares e estratégicos. Todavia, não é objetivo desse artigo defender o Hamas e destrinchar o que é ou o que não é “terrorismo”. No entanto, quero deixar claro o que vou desenvolver nas linhas a seguir: o maior terrorista no drama da Faixa de Gaza é o Estado sionista de Israel e o marxismo revolucionário é quem possui as melhores respostas na bússola de uma solução real para a tragédia social e política na Palestina.
O marxismo não defende o terrorismo
O editorial do jornal O Globo (11/10/2023), sob o pretexto de denominar o Hamas como grupo “terrorista”, publicou:
“A palavra terrorismo foi acunhada no Século XIX na Rússia czarista para definir um movimento que não se furtava a matar inocentes para amedrontar a população. É ela que melhor descreve os atentados cometidos contra civis em nome de pretextos políticos, ideológicos ou religiosos”.
A verdade é que os atentados terroristas realizados pelos militantes do Narodnaia Volia ou “populistas russos” tinham como finalidade a derrubada do absolutismo czarista via o método de eliminar, ministros após ministros e monarcas após monarcas. Porém, o marxismo russo que se consolidou com o desenvolvimento do Partido Operário Social-Democrata Russo e da fração bolchevique, tinha posição oposta ao método aplicado pelo Narodnaia Volia.
Trotsky no artigo “Por que os marxistas se opõem ao terrorismo individual” e Lênin em “Esquerdismo, doença infantil do comunismo”, serão categóricos ao afirmar que para os marxistas o terror individual é um método inadmissível pelo fato que este apequena o papel das massas em sua própria consciência, colocando-as num lugar de impotência e de espectadora do “grande vingador e libertador que um dia virá cumprir sua missão”. Além disso, alertavam que a consequência do método terrorista – que pode ser aplicado na ação do Hamas – é o terror reverso e justificado do aparelho repressivo do Estado contra a classe trabalhadora e a maioria do povo. Por isso, Lênin e Trotsky são igualmente taxativos ao pontuar que os marxistas se colocam frontalmente contra o terrorismo do Estado capitalista, que, em nome do poder das classes dominantes, rotulam à luta dos explorados e oprimidos como “terrorismo”.
A partir desse preâmbulo é possível colocar “a bola no chão” para a análise e caracterização do desenrolar da crise no território palestino e as alternativas em jogo dentro das especificidades concretas do conflito, afinal, o Hamas não é o Narodnaia Volia e o Estado sionista de Israel está longe de ser qualquer Estado capitalista.
A formação de um Estado terrorista na Palestina
O Globo, no referido editorial de 11/10/2023, afirma que: “O terrorismo costuma ser praticado por seitas escatológicas, como o Estado Islâmico, movimentos políticos ou de libertação nacional – caso do Hamas (…)”. No entanto, não escreve uma linha sobre o terror do Estado de Israel contra o povo palestino e a sua natureza colonial e racista.
O Estado de Israel, assim como os estados da África do Sul, a população nativa que vivia há séculos naquele território, foi desapropriada à força de suas terras, perderam suas casas, seus bens, sua cidadania, para dar lugar a um outro povo, os judeus da Europa. Esse é o cerne do problema. Mas, segundo os sionistas, os judeus apenas estavam regressando para uma terra que lhes pertencia há dois mil anos e que estes regressaram para trabalhar na “terra sem povo” que convergia com “um povo sem terra”.
Acontece que “a terra sem povo” estava habitada por árabes e não há comprovação digna de nota que a Palestina fosse dos judeus antes dos palestinos e, mesmo que fosse, os judeus passaram a viver dois mil anos depois em outros territórios, especialmente na Europa oriental e central. Além disso, não são poucos os casos de conversão de povos ao judaísmo em outros territórios, alguns de forma massiva. Por isso, é possível identificar judeus na Etiópia, judeus eslavos e judeus árabes. Portanto, a narrativa de “pureza” ao redor da ideologia fundadora do Estado judeu não passa de um mito.
De todo modo, enquanto uma raça e uma etnia com costumes, religião, idioma e valores próprios, os judeus foram, no período pré-capitalista, um tipo de povo-classe que se dedicou ao comércio. Porém, com o desenvolvimento do modo de produção capitalista, no marco da revolução industrial e com a emergência dos Estados nacionais e, consequentemente, com o crescimento do antissemitismo, os judeus deixaram de ser assimilados pelas classes capitalistas e, por conseguinte, uma parte do povo judeu perdeu espaço como classe comerciante, sendo que alguns se arruinaram e outros se vieram a se proletarizar, estes, por sinal, foram atraídos pelas ideias socialistas. Os judeus que conseguiram enriquecer via o canal da assimilação de frações da classe dominante, tampouco foram entusiastas de primeira hora da ideia do Estado judeu fora da Europa. Porém, não demorou muito, para que os judeus ricos passassem a financiar a corrente sionista na compra de terras na Palestina.
O sionismo, por sua vez, fundado em 1892 por Theodor Herzl, nasceu como um movimento político para a construção do Estado judeu. Acontece que as aspirações desse movimento foram baseadas em uma plataforma colonialista sob a estrutura de um Estado racial, num território ocupado por outro povo há mais de mil anos. A conclusão prática foi a guerra, com características de limpeza étnica, contra o povo nativo do território que simplesmente não aceitou a partilha arbitrária daquilo que sempre lhe pertenceu.
Não era para menos, os palestinos, que lutavam contra a dominação do colonialismo britânico, após o desmantelamento do Império Otomano, a partir de 1947, tiveram que girar sua energia para impedir a construção de um Estado de apartheid em seu próprio solo. Todavia, com voto direto dos EUA e da União Soviética, sob a liderança de Stalin em vida, a ONU aprovou a partilha da Palestina, dando 53% aos judeus (uma minoria de aproximadamente 1/3 da população), justamente a parte mais rica em recursos naturais. Portanto, a divisão de cima para baixo do território palestino deu as condições objetivas para que o Estado de Israel acumulasse a força beligerante e expansionista que sempre lhe foi característica.
De tal forma, a guerra era inevitável como ainda é no tempo presente. Os árabes não aceitaram a partilha e contavam a seu favor com um número muito superior de combatentes para derrotar os paramilitares israelenses. No entanto, a traição de Stalin não se resumiu no voto formal nas Nações Unidas. Pelo contrário, a União Soviética e seus satélites (com objetivo de colocar um pé no Oriente Médio), forneceram armamento para a defesa do Estado de Israel contra os palestinos. Sob essa condição, com cobertura dos EUA e da URSS, as superpotências da guerra fria, o Estado de Israel conseguiu triunfar em seu projeto colonial e expansionista.
No curso de todo imbróglio político, não é pouca coisa registrar que, na direção oposta do stalinismo, a IV Internacional foi a única corrente da esquerda que combateu consequentemente o sionismo. De modo claro, os trotskistas afirmaram: “abaixo a partilha da Palestina! Por uma Palestina árabe, unida e independente, com plenos direitos de minoria nacional para a comunidade judaica!”. Essas, entre outras bandeiras, como a revolução agrária e como a assembleia constituinte com sufrágio e secreto, foram levantadas pelo Grupo Trotskista Palestino no calor da luta contra o Estado de Israel, os EUA e a traição stalinista, que não só contribuiu politicamente e com armamento aos israelenses. Mas, sobretudo, deu legitimidade e um certo verniz momentâneo de “esquerda” (diante do “atraso” dos regimes árabes) ao novo país – com regime de apartheid – comandado pelo polaco e sionista trabalhista, Ben-Gurion.
O sionismo de “esquerda” e a disputa ideológica
Sob o verniz dado por Stalin e outras narrativas construídas para o mesmo fim da direita sionista, a ala sionista de “esquerda” ou “progressista” tenta justificar o injustificável. De tal forma, para os sionistas de “esquerda”, a base da formação do Estado de Israel se deu a partir de um tipo peculiar de “movimento de libertação nacional”, onde o povo judeu, dispersado pela ocupação romana da Palestina, desejava regressar a sua terra natal segundo textos bíblicos. Assim sendo, com a emigração dos primeiros colonos judeus (agricultores e operários) para a Palestina, ainda no início do século XX, os judeus, segundo os sionistas de “esquerda”, adotaram uma posição anti-britânica que culminou na formação do Haganá, uma milícia popular que, a rigor, era o braço armado do “movimento de libertação nacional” do sionismo. Ainda, segundo a “esquerda” sionista, a população árabe estava sob influência direta de senhores feudais e governos reacionários que compactuavam com a ocupação britânica. Portanto, em linhas gerais, a guerra civil foi “responsabilidade dos palestinos e dos países árabes, que não aceitaram a partilha territorial da ONU e a existência de um Estado judeu, soberano e democrático na Palestina”.
O sionismo de “esquerda” pode escrever e recitar o que quiser. No entanto, há uma contradição insolúvel em sua posição: como dar justificar a existência de um Estado colonial com um regime de apartheid e que realiza uma limpeza étnica contra outro povo? Essa, talvez, seria uma pergunta intrigante para Nelson Mandela responder. Quer dizer, as particularidades laterais não podem substituir a natureza do Estado de Israel. Por isso, no frigir dos ovos, o sionismo de “esquerda” acaba colocando água no moinho do sionismo de direita ou, em casos específicos, cumpre o papel do “esterilizador” da brutalidade do Estado sionista.
O exemplo mais recente dessa ala sionista na disputa de consciência, é o papel de Michel Gherman (professor e pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos e assessor do Instituto Brasil-Israel), porta-voz do sionismo de “esquerda” no Brasil e que momentaneamente ocupa um lugar de fala privilegiado nos veículos de comunicação de massas da imprensa corporativa, apresentando uma narrativa que tenta humanizar, em última instância, o Estado terrorista de Israel, mas, apresentando críticas ao governo de extrema-direita do primeiro-ministro Benjamin Netanyanu, assim como 55% da população israelense.
Segundo Gherman, em entrevista para Miriam Leitão: “Israel tem sua sobrevivência garantida na existência de um estado Palestino livre, justo e vivendo em paz com Israel, com lideranças moderadas e no qual o Hamas deixe de ser relevante. Sem isso, a democracia de Israel está em risco, não por causa da invasão, mas por causa da ocupação” (O Globo, 12/10/2023).
O problema é que a proposta de dois estados endossada pelo sionismo de “esquerda” é apresentada no abstrato, sem qualquer qualificação de reparação territorial e econômica aos palestinos que perderam tudo e só possuem a vida para oferecer como instrumento de resistência para não serem exterminados como povo nativo. De tal forma, diante do brutal avanço expansionista e militarista do Estado de Israel, fica difícil crer que os israelenses irão aceitar voltar nas bases da partilha territorial votada na ONU em 1947 ou, até mesmo, que uma nova proposta de mediação, com reparações dignas ao povo palestino seja crível. Há muitas razões para ser cético desse caminho, talvez a primeira seja que não há vontade política com força substancial em Israel para que uma posição de mediação honesta aos palestinos avance.
Portanto, a solução, que nenhum sionista defende, seria a construção de um único Estado, laico, com igualdade para árabes e judeus, balizado pelo sufrágio universal. Isso significaria que o Estado colonialista e de supremacia racial de Israel teria que ser desmantelado. O que não significa, de modo algum, a expulsão dos judeus que vivem nesse território há 75 anos. Essa é a única paz viável para os árabes e judeus da Palestina. O problema é que essa posição, defendida por marxistas, não tem holofotes da mídia corporativa. De tal forma, nessa desigualdade de informações, não é menor o papel dos partidos e dos porta-vozes das esquerdas.
Por isso, deve ser registrado com louvor o papel de referências da vanguarda marxista – oriundas de famílias judias – como Milton Temer, Breno Altman e Luciana Genro, que estão sofrendo as consequências por defenderem uma posição principista em defesa do oprimido povo palestino. Assim sendo, enquanto o sionismo de “esquerda” desfila suas posições na grande mídia burguesa, a deputada do PSOL/RS, Luciana Genro, foi demitida da TV Pampa por fazer um discurso brilhante de denúncia do Estado terrorista de Israel e em defesa do povo palestino na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. De tal forma, é papel de todo defensor da Causa Palestina e da paz no Oriente Médio ecoar as posições vocalizadas pelo marxismo, que, em sua tradição, abrigou judeus do gabarito de Marx, Trotsky, Rosa Luxemburgo, Abraham Léon, entre tantos outros que, diferente do sionismo, contribuíram de modo fecundo para um mundo fraterno e igualitário.
Referências:
LENIN. V.; Esquerdismo, doença infantil do comunismo. São Paulo: Editora Escriba, 1960.p. 24/26.
Por que os Marxistas se Opõem ao Terrorismo Individual (marxists.org).
Revista América, nº 12, dezembro de 1973.