Quem é terrorista?
A imprensa que fecha os olhos à ocupação nunca terá esse mínimo de equanimidade que consistiria em aplicar ao genocídio sionista a designação de “terrorista”.
Na sequência do ataque levado a cabo em 7 de outubro por forças do Hamas contra bases militares e instalações civis em território israelita, impôs-se em grande parte da imprensa um livro de estilo não-escrito, que tacitamente obriga a designar o Hamas como “terrorista”. Os motivos para a designação estariam no ataque sem prévia declaração de guerra, na morte ou sequestro de civis e nos requintes de crueldade descritos por várias testemunhas.
A designação de “terrorista” tem uma história longa e convém lembrar duas ou três coisas a seu respeito. Ela é quase sempre aplicada a quem se insurge contra uma opressão de tal modo esmagadora que dá por suposta a inutilidade de qualquer resistência. Aquilo que faz o ou a “terrorista” não são os métodos mais ou menos violentos, e em qualquer caso sempre menos mortíferos que os da potência opressora. O que faz o “terrorismo” para a opinião publicada é, geralmente, a veleidade de recusar o que devia ser aceite como inevitável.
Como temos visto abundantemente, também na imprensa portuguesa a designação de “terrorista” é usada correntemente sobre o Hamas, até por jornalistas de reputação firmada, a quem, no entanto, nunca passaria pela cabeça designar o Estado de Israel como “terrorista”. Também em Portugal a palavra tem a sua história, que ajuda a entender este seu actual regime de utilização.
Durante a Segunda Guerra Mundial, a maioria da imprensa portuguesa (e não só jornais declaradamente fascistas como a Época ou o Diário da Manhã) fazia-se eco da designação de “terroristas” propalada pelos serviços de Goebbels contra os movimentos de resistência na Europa ocupada. E esses serviços esganiçavam-se com uma particular estridência sempre que os membros da resistência fossem judeus, porque aí se tratava precisamente daquela parte da população que era suposto deixar-se conduzir às câmaras de gás “como carneiros para o matadouro”.
Para a imprensa portuguesa dos anos 1960 e início dos anos 1970, eram “terroristas” as grandes figuras da libertação africana – desde logo Eduardo Mondlane, Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Samora Machel, mas também Ben Bella, Patrice Lumumba, Kwame Nkrumah, Nelson Mandela.
A ligeireza com que a palavra era usada nos tempos do fascismo teve uma natural contrapartida na desenvoltura com que depois foi arquivada na era das independências africanas. Como era preciso fazer negócios com as cleptocracias que iam crescendo nas ex-colónias portuguesas, os mesmos que antes acusavam os dirigentes angolanos de “terroristas” passaram a indignar-se com qualquer denúncia da corrupção angolana. E o mesmo dirigente do ELP que em tempos fora expulso do Exército português por roubar batatas tornou-se grande amigo de Nino Vieira.
Mas até em regime de democracia se continuou a encarar como “terroristas” os dirigentes das lutas de libertação que não tivessem obtido sucesso (ou que ainda não o tivessem obtido, e a curteza de vistas reinante não concebia que viessem alguma vez a obtê-lo). Assim, um primeiro-ministro português deixou claro o seu apoio à prisão perpétua do “terrorista” Nelson Mandela em Robben Island, por pensar que o apartheid seria eterno.
O indiscutível “terrorista” que normalmente não era assim designado na imprensa portuguesa, especialmente depois de ter recebido um inacreditável Prémio Nobel da Paz, foi Menahem Begin. Membro da milícia colonial-fascista Irgun, ele tinha podido escapar a essa classificação enquanto “apenas” se dedicou a massacrar populações de aldeias árabes. Só passou a ser considerado um “terrorista” quando teve a infeliz ideia de fazer explodir o Hotel King David, matando quase uma centena de pessoas, entre elas dezenas de britânicos. Anos mais tarde, ainda e sempre com um mandado de captura britânico em seu nome, chegou a primeiro-ministro israelita e a imprensa portuguesa preferiu alinhar com o livro de estilo da norte-americana e ignorar o da britânica: a biografia terrorista de Begin foi quase sempre obliterada e ele passou a ser um “obreiro da paz”.
Mesmo assim, não deixa de ser chocante que grande parte da imprensa portuguesa falada e escrita siga agora o guião das imprensas dos EUA e de Israel. Quando o soldado israelita Elor Azaria abateu friamente o prisioneiro palestiniano agonizante Abed al-Fattah Yusri al-Sharif não foi considerado um “terrorista”. Em Israel foi condenado a 18 meses de prisão, mas grande parte da opinião pública celebrou-o como um “herói”. Já um adolescente palestiniano que pendure uma bandeira do seu país num sinal de trânsito é abatido sem contemplações como “terrorista”.
Tal como na guerra colonial portuguesa, é relativamente fácil calcular o número de militares portugueses mortos pela guerrilha, mas muito mais difícil calcular o número, incomparavelmente superior, de civis africanos mortos pela tropa colonial. O número de vítimas israelitas do ataque do Hamas parece estar agora nos 1.300. O número de vítimas palestinianas ao longo dos últimos anos tem subido constantemente. Quantas serão por cada vítima israelita – 5, 10, 20? Quantas serão agora, que ministros genocidas de Israel se referem às pessoas da Faixa de Gaza como “animais” e que recebem luz verde das democracias ocidentais para matarem quantas quiserem?
O ataque levado a cabo pelo Hamas foi uma acção que, apesar do efeito de surpresa e de um planeamento surpreendentemente eficaz, não fazia qualquer sentido de um ponto de vista militar. De um ponto de vista político, só o futuro dirá se daqui pode resultar um sinal de alarme para o mundo que tinha esquecido a existência do povo palestiniano, e também um sobressalto para as políticas árabes de normalização de relações com uma potência colonizadora e genocida.
Admitindo que também o balanço político venha a ser negativo, e que portanto toda a acção venha a revelar-se como completamente estúpida, não devemos confundir estupidez com ilegitimidade. A resistência à colonização é legítima.
Uma superpotência regional que todos os dias leva a cabo acções de guerra não declarada contra o Líbano ou contra a Síria, e frequentemente também contra o Irão, que regularmente bombardeia alvos em Gaza, assassina ou prende suspeitos pela calada da noite, essa superpotência não pode nunca queixar-se do que noutro contexto as Convenções de Genebra considerariam efectivamente um crime de guerra. Atacar Israel foi uma decisão talvez estúpida mas certamente legítima por parte do Hamas.
Outra prática tipificada como crime de guerra na lei internacional é a de capturar, deportar ou matar civis. É aquilo que Israel toda a vida tem feito, em números incomparavelmente superiores, e que agora se prepara para fazer no quadro de uma segunda Nakba – uma limpeza étnica de milhões.
Mas não podemos refugiar-nos numa discussão whataboutista perante a pergunta: E não cometeu o Hamas crimes desses, nas bases militares e nas povoações que atacou? Sim, certamente. Alguns deles estão documentados, como a captura de pessoas de idade ou de crianças. A captura e sequestro de pessoas com estas características é altamente condenável e por isso faz todo o sentido a proposta do Qatar de que sejam imediatamente trocadas por anciãos ou crianças palestinianas nas cadeias israelitas. Mesmo que, previsivelmente, os carcereiros israelitas não aceitem a proposta qatari, o Hamas deveria libertar os velhos e crianças, nesse caso unilateralmente.
Outras pessoas capturadas seriam também civis inocentes e surpreendidos no sítio errado à hora errada. Convém entretanto lembrar que os colonos israelitas não são civis e sim milicianos da ocupação, sempre com treino militar, com armas próprias mesmo que não as tivessem consigo no momento da captura. Qualquer homem ou mulher em idade de empunhar uma arma devia ser presumido pelas tropas do Hamas como combatente inimigo e tratado como prisioneiro de guerra (não segundo as normas de Elor Azaria).
Numa guerra justa também se cometem crimes de guerra. A diferença é que esses crimes prejudicam a causa da libertação e devem portanto ser combatidos por nós, que a apoiamos. Numa guerra colonial e genocida, como a do Exército israelita, os crimes de guerra são um instrumento imprescindível do terror que se quer exercer sobre as populações civis. Por isso, a imprensa que fecha os olhos à ocupação nunca terá esse mínimo de equanimidade que consistiria em aplicar ao genocídio sionista a designação de “terrorista”.