Guerra às drogas: por que a justiça de transição é urgente
Processo é crucial para investigar e divulgar informações sobre os responsáveis, seus beneficiários e os impactos sociais e de direitos humanos decorrentes
Foto: Vladimir Platonow/Agência Brasil
Via: Nexo Jornal
A guerra às drogas no Brasil é uma política cara, ineficiente e com muitos efeitos colaterais, especialmente contra populações específicas: negras e periféricas. Mudanças nessa política já são percebidas ao redor do mundo. Mesmo no Brasil, onde as mudanças parecem lentas, já existe um mercado legal de cannabis medicinal sobre o qual já devem ser aplicadas políticas de justiça de transição, com reparação às comunidades especialmente afetadas. Por isso, foi apresentado à Câmara Legislativa do Distrito Federal o primeiro projeto do Brasil que estabelece políticas de reparação, seguindo princípios de justiça de transição para pôr fim à guerra às drogas da maneira mais efetiva para a busca da paz duradoura.
Em 1971, o presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, declarou a guerra às drogas, colocando o uso de drogas como o inimigo público número um do país. Os efeitos dessa política tiveram impacto em todo o mundo. A política de guerra às drogas provou ser incapaz de proteger a população dos riscos relacionados ao uso de drogas. De fato, hoje lidamos com problemas relacionados ao uso de drogas ainda mais graves que aqueles que se buscava combater quando essa política começou. Apesar disso, os efeitos colaterais mostram que o termo guerra às drogas não era mera metáfora: aumentou a violência estatal em comunidades periféricas e fez explodir o encarceramento em massa, principalmente de pessoas negras.
O Brasil tem cerca de 800 mil pessoas presas. Dessas, 28% respondem por crimes da lei de drogas. Isso representa 193.001 pessoas, segundo a Secretaria Nacional de Políticas Penais. Do total de pessoas presas, 68,2% são pessoas negras, uma porcentagem consideravelmente superior aos 56% de negros da população em geral do nosso país. Quando olhamos os dados sobre violência, outra faceta dessa política de guerra às drogas, uma pessoa negra tem mais que o dobro de chance de ser assassinada do que uma pessoa branca. 75% das vítimas de homicídio no Brasil são negros. Não é apenas na dimensão racial que os alvos da guerra às drogas ficam evidentes. No Rio de Janeiro, 75% das acusações por associação para o tráfico tinham como fundamento o local da apreensão. Ou seja, pessoas que moram em periferias e favelas têm mais chance de ser presas por tráfico.
É notável a mudança gradual em direção a políticas alternativas em alguns países, como Uruguai, Canadá, Portugal, Espanha e várias regiões dos Estados Unidos. Aqui no Brasil, apesar de muito lenta, essa mudança também é percebida, especialmente no que tange à regulamentação do uso terapêutico da cannabis. Os efeitos nocivos da guerra às drogas, especialmente contra a população negra e periférica do Brasil, nos obriga a considerar a justiça de transição como um instrumento para reparar o dano causado e, ao mesmo tempo, explorar o potencial do mercado legal de cannabis para promover uma sociedade mais justa e reconciliada. Para acabar com a guerra às drogas, não basta legalizar a produção e comércio dessas substâncias. É preciso construir os caminhos para a paz. Por isso, apresentamos na Câmara Legislativa do Distrito Federal o primeiro projeto de lei com o objetivo de instituir políticas de reparação pela guerra às drogas no Brasil.
A justiça de transição, conforme definida por Kofi Annan, refere-se ao conjunto de processos para lidar com o legado de abusos em larga escala do passado, buscando responsabilização, justiça e reconciliação. Quatro processos-chave – justiça, reparação, verdade e reforma institucional – fornecem uma estrutura sólida para abordar os impactos da guerra às drogas.
No processo de justiça, é fundamental investigar e responsabilizar os agentes do Estado envolvidos em violações de direitos humanos durante a guerra às drogas, como execuções extrajudiciais e abusos policiais. Medidas de controle sobre a atuação da polícia e procedimentos do sistema de justiça devem ser instituídas para prevenir abusos futuros.
O processo de reforma institucional visa evitar que atrocidades semelhantes ocorram novamente. É imperativo revisar e reformar as políticas de drogas, adotando abordagens baseadas em evidências, centradas na saúde pública, na redução de danos, na descriminalização e na regulação do mercado das drogas, começando pela cannabis.
O processo de verdade é crucial para investigar completamente as políticas e práticas da guerra às drogas, divulgando informações sobre os responsáveis, seus beneficiários e os impactos sociais e de direitos humanos decorrentes. A transparência e a prestação de contas são passos cruciais em direção à reconciliação.
A reparação é essencial para compensar as vítimas da guerra às drogas, fornecendo apoio psicossocial, assistência jurídica, compensação financeira e programas de integração econômica ao mercado regulado de drogas. Através dessas medidas, busca-se mitigar os danos causados pela criminalização e reintegrar as comunidades afetadas.
O mercado legal de cannabis no Brasil já é uma realidade. É importante notar que a regulamentação da cannabis para fins medicinais e recreativos já avançou consideravelmente em outros países, e o Brasil não pode ficar para trás.
O projeto propõe direcionar os tributos de produtos ou serviços à base de cannabis para programas e iniciativas que busquem reparar as comunidades historicamente afetadas pela política de guerra às drogas. Essa abordagem inovadora busca compensar as injustiças causadas por décadas de uma política proibicionista injusta e desigual.
Além disso, empresas e associações que tenham egressos do sistema prisional em posições-chave seriam isentos de tributação. Essa medida incentiva a ressocialização e a inclusão dessas pessoas no novo mercado regulado, afastando-as das práticas criminosas.
É hora de repensar a política de drogas no Brasil. A guerra às drogas causou danos profundos à sociedade, e a justiça de transição oferece uma estrutura sólida para reparar esses danos. Entendemos que não é possível esperar o fim da guerra às drogas para iniciar a política de justiça de transição. Se hoje já há um mercado para drogas antes consideradas ilegais, como é o caso da cannabis medicinal, já é necessário colocar em prática políticas de reparação para comunidades afetadas.
O projeto de lei que elaboramos e foi apresentado na Câmara Legislativa do Distrito Federal propõe fazer isso de duas maneiras: dDe um lado, estabelece isenção tributária para empresas e organizações que tenham entre seus sócios ou metade de seus empregados egressos do sistema prisional. De outro lado, empresas e organizações que não cumpram esses requisitos, terão seus impostos e taxas direcionados para políticas de reparação promovidas pelo estado que serão coordenadas por uma Comissão de Políticas de Reparação, com participação de representantes das comunidades e populações historicamente afetadas por essa política.
É responsabilidade de nossos legisladores considerar essas propostas e adotar medidas que possam levar a uma sociedade mais justa e reconciliada. Precisamos superar décadas de uma política injusta e desigual, e isso deve começar já, a partir das poucas, mas significativas mudanças que o Brasil já fez na política proibicionista de drogas.