A Tragédia Húngara – Como a Revolução começou
Exatos 61 anos após a eclosão da Revolução Húngura publicamos texto de escritor marxista sobre os dias iniciais do levante contra a burocracia soviética no país.
23 de outubro de 1956. Eclode uma revolução do povo húngaro (jovens, operários, camponeses e soldados) contra a burocracia dirigente e a ingerência da URSS sobre os destinos do país. O jornal do Partido Comunista inglês (Daily Worker) envia o talentoso escritor Peter Fryer (1927-2006) a Budapeste para cobrir os acontecimentos. Seus informes sobre a repressão empreendida pelas tropas soviéticas com a anuência da direção stalinista do Partido Comunista húngaro logo são censurados pelos seus chefes que tentavam propagar a ideia de que se tratava de um movimento reacionário e fascista contra o socialismo. Fryer romperia, pouco depois, com seu partido e publicaria, uma vez a sufocada a revolução, o livro A Tragédia Húngara em que retrata em dez capítulos como se desdobraram os episódios em Budapeste. Abaixo reproduzimos o capítulo 4, “Como a Revolução começou”, no qual Fryer conta os dias iniciais do levante através dos relatos de seu colega comunista Charles Coutts.
Como a revolução começou
Peter Fryer (Capítulo 4 de A Tragédia Húngara)
Evidentemente, eu não foi uma testemunha ocular do início da revolução em Budapeste, em 23 de outubro. Reuni o relato a seguir dos que lá estavam, tanto de húngaros quanto do comunista britânico, Charles Coutts, editor inglês do World Youth, que tinha morado em Budapeste por três anos.
Começou com uma manifestação de estudantes, em parte para demonstrar a simpatia dos estudantes pelo povo da Polônia, que naquele fim de semana, através de Gomulka e do Comitê Central do Partido dos Trabalhadores Unidos da Polônia, rejeitou resolutamente uma tentativa inédita de endurecimento por parte de uma delegação de líderes soviéticos. Esta firme afirmação de independência capturou a imaginação dos húngaros, e os oradores estudantes que se dirigiram à manifestação da estátua de Josef Bem, um general polonês que ajudou a liderar os húngaros em 1849, recordaram as palavras de Petöfi:
Nossos batalhões combinaram duas nações,
E que nações! Polacos e Magiares!
Existe algum destino que seja mais forte
Do que essas duas quando estão unidas?
Os alunos começaram a marchar e se encontraram em diferentes lugares durante a tarde. Sua manifestação foi proibida pelo Ministério do Interior, mas a proibição foi levantada depois que o Comitê Central do Partido interveio. O próprio Nagy dirigiu-se a uma grande reunião dos estudantes fora do edifício do Parlamento, mas suas palavras foram cautelosas e, obviamente, tinham que ser.
Às 7h30, naquela noite, telefonei para Szabad Nép, fazendo uma revisão dos comentários da imprensa britânica sobre os eventos na Polônia e, ironicamente, um pequena artigo sobre a prisão de doze marinheiros britânicos no porta-aviões Ocean, após reuniões ilegais . Eu também ditei um artigo solicitado pela revista Szovjet Kultúra sobre o Bolshoi Ballet em Londres. Quando eu terminei, o intérprete, Dobzsa ( ele costumava tomar meus artigos em taquigrafia, traduzindo-os para o húngaro vertendo cerca de 120 palavras por minuto), disse: “Não desligue. A camarada Bebrits quer falar com você.” Anna Bebrits, a silenciosa e eficiente editora externa adjunto, parecia excepcionalmente excitada.
“Há grandes manifestações de estudantes”, disse ela. “O Daily Worker quer algo de nós?”
“Espero receber algo de [Charlie] Coutts”, eu disse. “Mas eu vou descobrir e informá-lo. Há alguma dificuldade?”
“Não”, disse ela. “Algumas palavras de ordem nacionalistas, mas é tudo bem-humorado”.
A última conversa que tive com Szaba Nep foi essa. Duas horas e meia mais tarde as comunicações telefônicas entre Budapeste e o mundo exterior haviam sido cortadas. O que havia passado neste intervalo?
Duas coisas haviam se sucedido.
Primeiro, [Erno] Gerö havia feito um discurso radiofônico que, segundo me disseram “derramou azeite sobre as chamas”. Chamou os manifestantes, que se uniram aos trabalhadores das fábricas para onde delegações de estudantes foram enviadas, contrarrevolucionários – “elementos hostis que tratavam de perturbar a ordem pública na Hungria”. Em outras palavras havia dito claramente para os ouvintes mais obtusos que nada mudaria. Nem sequer a renúncia de Martin Horvath, editor-chefe de Szaba Nep, e de Berei, principal funcionário de planificação do Comitê Central do Partido, puderam contrarrestar o desastroso efeito deste discurso.
Em segundo lugar, a multidão que havia se reunido em frente à estação de rádio para pedir que se transmitissem as demandas dos estudantes foi alvejada por homens da AVH [Államvédelmi Hatóság, Autoridade de Proteção do Estado], dos quais havia trezentos no edifício. Esta foi, sem dúvida alguma, a faísca que converteu as manifestações pacíficas (o “comportamento tranquilo e ordenado dos manifestantes impressionou”, Coutts disse ao Daily Worker) numa revolução.
O que exigiam os estudantes antes do tiroteio em frente à estação de rádio? Primeiro e mais importante, a substituição de Hegedüs como primeiro-ministro por Imre Nagy. A eleição de novos dirigentes do Partido por um Congresso Nacional. Amizade com a União Soviética, mas sobre a base da igualdade. Retirada das tropas russas da Hungria. Eleições livres. Liberdade de imprensa. Liberdade acadêmica. Uso das reservas de urânio da Hungria pela própria Hungria.
Depois de que os homens da AVH deitaram fogo sobre a multidão, os sentimentos contidos explodiram. As notícias do tiroteio se espraiaram pela cidade como rastro de pólvora e logo o povo estava armado e ocupado em travar batalhas nas ruas contra a AVH. Suas demandas se cristalizaram agora em dois pontos: a abolição da AVH e a retirada das tropas soviéticas.
De onde vinham as armas que encontravam tão rápido as mãos dos estudantes e do operários de Budapeste? De acordo com Kádár (Daily Worker, 20 de novembro) havia armas escondidas “na Szabadsaghegyî” (Colina da Liberdade), e se disse aos jovens, ao meio dia antes das manifestações, que foram a um “certo lugar” onde as encontrariam. Esta versão da forma em que o povo húngaro se armou, deixa de lado o problema da atitude do Exército Popular húngaro. As tropas de Budapeste, e depois as das províncias, estavam divididas na neutras e nas que estavam preparadas para unir-se ao povo e lutar com ele. As neutras (provavelmente a minoria) estavam preparadas para entregar suas armas aos operários e estudantes de modo que puderam lutar com elas contra a AVH. As outras levaram as armas consigo quando se uniram à revolução. Ainda mais, muitos rifles da caça foram tomados pelos operários do arsenal da fábrica da Organização Húngara de Defesa Voluntária. Não é nenhum “mistério” como o povo se armou. Ninguém pode apresentar uma só arma fabricada no Ocidente.
Havendo já cometido dois erros desastrosos, os stalinistas húngaros cometeriam um terceiro – ou melhor, seria caridade dizer isso – se a URSS lhes tivesse exigido. Foi a decisão de invocar uma cláusula inexistente no Pacto de Varsóvia e chamar a tropas soviéticas. A primeira intervenção soviética deu ao movimento popular exatamente o ímpeto necessário para lhe dar unidade, violência e extensão a toda nação. Parece provável, de acordo com as evidências, que as tropas soviéticas já estavam em ação três ou quatro horas antes do chamado feito em nome de Imre Nagy como seu primeiro ato ao tomar posse como primeiro-ministro. Isso é discutível, mas o que não é discutível é que o chamado foi feito na realidade por Gerö e Hegedüs; a primeira evidência disso foi encontrada mais tarde e se fez pública. Nagy foi primeiro-ministro exatamente 24 horas mais tarde, e os que jogaram lama nele por fazer concessões à direita nos dez dias em que ocupou o cargo, deveriam levar em conta a terrível confusão que os stalinistas puseram em sua mão quando, desesperados, saíram oficialmente de cena.
Teria sido possível evitar a tragédia final com Nagy se as demandas do povo tivesse sido concedidas imediatamente: se as tropas soviéticas tivessem se retirado sem demora e se a Polícia de Segurança tivesse sido dissolvida. Porém, Nagy não foi um agente livre durante os primeiros dias de sua magistratura. Em Budapeste se soube que fez suas primeiras transmissões – pelo menos metaforicamente, se não literalmente – com um fuzil-metralhadora às costas. Havia forças ainda esperavam sacudir o povo e repor a fórmula Rákosi-Gerö no pode; e estas forças prepararam a provocação em frente ao Parlamento na quinta-feira, 25 de outubro.
De acordo com Charlie Coutts, a quem encontrei uma semana mais tarde e que ainda tinha frescos na mente os detalhes de todo o tumulto, uma grande manifestação completamente desarmada havia partido da rua Rakovitch, levando a bandeira nacional e uma bandeira de luto em honra a seus mortos. No caminho até a praça do Parlamento encontrou um tanque soviético. O tanque parou, um soldado colocou a cabeça para fora e os que estavam à frente da multidão começaram a lhe explicar que estavam desarmados e que se tratava de uma manifestação pacífica. O soldado convidou-os a subir no tanque; alguns deles assim o fizeram, e o tanque se incorporou à manifestação – “e tenho uma fotografia disso” – disse Coutts.
Entrando na praça do Parlamento encontraram outro tanque soviético enviado para atirar fogo sobre eles e este tanque, igualmente, mudou de lado e se uniu à manifestação. Na praça havia outros três tanques e dois carros blindados. A multidão se dirigiu até eles e começou a falar com os soldados. O comandante soviético dizia: “Tenho mulher e filhos esperando-me na União Soviética. Não tenho o menor interesse em ficar na Hungria”, quando repentinamente foram descarregadas três rajadas de fuzis de cima dos telhados. Algumas das pessoas correram para os costados da praça em busca de refúgio. Outras ouviram os russos lhes dizerem para se proteger atrás dos tanques. Trinta, mais ou menos, ficaram estendidas na praça, mortas ou feridas, incluindo um oficial soviético. Os tanques e os carros abriram fogo sobre os telhados.
“Ainda não me resta claro quem iniciou o tiroteio – agregou Coutts. É mais provável que fora a Polícia de Segurança.” Mais que provável. E a provocação serviu a seu propósito: evitar a confraternização e originar a versão de que as tropas soviéticas haviam aberto fogo sobre os manifestantes desarmados. Se a retirada soviética tivesse começado em 24 de outubro em lugar de uma semana mais tarde, ou melhor ainda, se o exército soviético não tivesse entrado nunca na luta, e se a AVH tivesse sido desarmada e dissolvida em 24 de outubro, ter-se-ia evitado muita amargura e sofrimento.
Meu segundo informe desde Budapeste, transmitido por telefone em 2 de novembro, referia-se às causas da revolução e a forma como ela eclodiu em Budapeste. O informe consistia inteiramente numa entrevista com Charlie Coutts. Exceto por uma curta introdução minha, todo o resto foi tomado tal como contou Charlie Coutts naquela sexta-feira pela manhã enquanto tomávamos café da manhã no Duna Hotel. Limitei este informe ao que Coutts me contou por duas razões. Primeiro, as chamadas estavam severamente restritas e era preciso cuidado para que meu escrito fosse razoavelmente curto – não mais longo que um taquígrafo podia tomar em vinte minutos. Segundo, e mais importante, proporcionava uma estimação independente das causas da revolta feita por um homem cujo juízo o jornal era obrigado a respeitar, mesmo que o meu não fosse respeitado. Depois de tudo, ele estava há três anos em Budapeste, tempo suficiente para descobrir muitas coisas.
No momento em que se recebeu o informe houve uma tíbia tentativa de deixar de lado a Coutts por ser um “ingênuo político”. George Matthews, secretário-geral assistente do Partido Comunista, que estava no Daily Worker no lugar do editor, J. R. Campbell, que na ocasião visitava a União Soviética, censurou o informe reduzindo-o a fragmentos. Creio que esta medida deve ter sido desaprovada pelo pessoal. Ademais, Fryer podia ter se embriagado, ou tido um colapso nervoso, ou ainda perdido temporariamente o equilíbrio ou o sentido político. Mas aqui estava o velho Charlie Coutts, a quem todos conheciam como homem de confiança, bem-equilibrado, que contava com o respaldo de todos.
Como resultado desta pressão, parece ser que alguns cortes foram reincorporados a tempo da primeira edição. Outros para a segunda, mas muitas coisas importantes, fundamentais, havia pensado, para que os leitores compreendessem corretamente o problema húngaro, ficaram suprimidas. O Daily Worker fez a surpreendente afirmação de que este informe foi preparado de acordo com o tratamento normal de toda a publicação. Em vista de que, de um total de 455 das palavras de Coutts foram omitidas (sem contar minha introdução) e de que algumas outras foram trocadas sutilmente (“levantes” por “revolução”, “Mr. Coutts afirmou” e “Mr. Coutts acredita” por “Mr. Coutts disse”), a publicação de tão importante entrevista me parece completamente irregular. O efeito dessas omissões foi suavizar o escrito e ocultar ao leitor fatos de vital importância.
Coutts citou um membro do Partido Comunista Húngaro que lhe disse durante a luta: “A sensação aqui é como daquela do 1 de maio de 1947, quando dançamos nas ruas”. Por exemplo, isso foi omitido. E mesmo uma passagem sobre a “revolta dos intelectuais”. E mesmo uma declaração de que “o Partido Comunista havia deixado de ser um Partido Comunista, havia se tornado num órgão do Estado e nada mais”, sustentada pelo que haviam dito comunistas honestos: “O nosso não é um partido comunista. Não se pode mudar nada”.
Foi particularmente significativa a supressão da declaração de Coutts de que a Polícia de Segurança foi criada deliberadamente por uma camarilha dominante dentro do Partido Comunista, o pessoal que havia retornado da URSS: Rákosi, Farkas e Gerö, e que esta camarilha dominante, “incapaz de um pensamento independente, baseava-se no pensamento do Partido Comunista Soviético, bem ou mal. Eles sentiam que se o Partido Comunista desse uma pirueta, eles também tinham que dar uma pirueta”.
O Daily Worker censurou também a opinião meditada de Coutts de que não havia mais razão para chamar as tropas soviéticas em 24 de outubro, exceto a preocupação de Gerö e outros líderes por salvar suas posições e suas peles. “Não foram chamados para restabelecer a ordem nem para defender o socialismo”, me disse. Sua descrição de como 40 homens da AVH postados no quartel-general do Partido Comunista foram capturados e linchados e de como jovens de treze e catorze anos lutavam com metralhadoras e revólveres, também foi suprimida. Coutts me contou o que os Combatentes pela Liberdade lhe haviam dito: “É melhor morrer do que viver como eles nos fizeram viver”. O Daily Worker pensou que isso também era melhor ocultar a seus leitores. Finalmente, a previsão de Coutts do surgimento, pela primeira vez em oito anos, de um “verdadeiro Partido Comunista na Hungria, não um partido dirigido por políticos profissionais e burocratas, mas por aqueles comunistas que permaneceram fiéis a sua ideia e sofreram por ela” também caiu vítima da “normal preparação para sua publicação”. Os leitores podem julgar por si mesmos até que ponto isso era em realidade “preparação normal” e até onde o resultado de uma decisão deliberada feita por líderes do Partido temerosos de que se conhecesse toda a verdade angustiante, chocante e – para eles – perigosa.
Fonte: http://www.marxistsfr.org/archive/fryer/1956/dec/index.htm