Em memória de Sigmund Freud
No aniversário do fundador da psicanálise, publicamos o poema de W.H. Auden em sua homenagem
Foto: Christie’s/Wikimedia Commons
Quando há tantas pessoas a quem devemos lamentar,
quando se tornou assim tão publica a aflição e expôs
à critica de toda uma época
nossa frágil consciência, nossa angustia,
de quem iremos falar? Se todos os dias morrem
entre nós os que nos faziam algum bem, embora
nunca o bastante, sabiam, mas
contavam, vivendo, aumentá-lo um pouco.
Assim era este médico: aos oitenta desejava
refletir sobre a nossa vida, cuja indisciplina
tanto porvir plausível, jovem,
quer domar com ameaças ou lisonjas,
mas seu desejo foi negado: ele fechou os olhos
sobre o último quadro, a todos nós comum, de problemas
como parentes congregados
perplexos e ciumentos de morrermos.
À volta dele, até o último alento, se postaram
aqueles, fauna da noite, a quem havia estudado,
e sombras inda à espera de entrar
no claro âmbito do seu entendimento,
foram-se alhures com seu desaponto quando ele,
afastado do interesse de toda sua vida
voltou de novo à terra, em Londres,
importante judeu morto no exilio.
Só o Ódio é que ficou feliz, na esperança de aumentar
sua clinica então e sua sórdida clientela
que pensa curar-se com matar
e cobrir depois de cinzas os jardins.
Eles estão vivos ainda, mas num mundo que ele
mudou com olhar para trás sem falsos pesares;
tudo quanto fez foi, como os velhos,
lembrar e, como as crianças, ser honesto.
Nunca jamais foi esperto: limitava-se a dizer
ao Presente infeliz que recitasse o Passado qual
uma lição de poesia até
mais cedo ou mais tarde hesitar no verso onde,
havia muito, as acusações tinham começado,
e repentinamente descobrir quem o julgara,
como a vida, fora rica e tola,
e, com a vida perdoada e mais humilde,
poder aproximar-se do Futuro como amigo
sem um guarda-roupa inteiro de desculpas, sem uma
máscara de retidão ou gesto
de embaraçosa e excessiva intimidade.
Não admira que as antigas culturas presunçosas
na técnica de deslocamento dele antevissem
quedas de reis, colapsos dos
seus lucrativos padrões de frustação;
se ele tivesse êxito, a Vida Generalizada
tornar-se-ia impossível o monolito do Estado
seria quebrado e impedida
a colaboração dos vingadores.
Claro que invocavam a Deus, mas ele prosseguia em seu
caminho para baixo, até a perdida gente, como Dante,
até a vasa onde os ofensos
levam a vida vil dos rejeitados,
e nos mostrava que eram o mal, não, como pensávamos,
atos a serem punidos, mas nossa falta de fé,
nosso modo desonesto de
negar a concupiscência do opressor.
Se traços da atitude autocrática, do paternal
rigor por que tinha suspicácia, ainda se apegavam
às suas palavras e feições,
eram só um colorido protetor
de quem viveu tempo demais entre gente inimiga;
se estava a miúde errado e eram algumas vezes absurdo,
já não é mais uma pessoa
para nós, mas um clima de opinião
dentro do qual vivemos nossas diferentes vidas:
como o tempo ele só pode ajudar ou atrapalhar;
o soberbo continua a sê-lo,
acha porém mais difícil, o tirano,
tenta enganá-lo, mas não se importa muito com ele:
sem alarde ele afeta o nosso desenvolvimento
até os exaustos, mesmo no
ducado mais remoto e miserável,
sentirem em seus ossos a mudança e animarem-se,
até a criança inditosa, no seu pequeno Estado,
algum lar sem liberdade,
colméia cujo o mel é medo e angustia,
sentir-se mais calma agora e certa de uma saída
qualquer, enquanto, na grama da nossa negligência,
tantos objetos esquecidos
pelo seu brilho não encorajado,
nos são devolvidos e de novo tornam-se preciosos;
brinquedos que achávamos ter de deixar quando grandes,
barulhinho de que não ousávamos
rir, caretas que fazíamos a furtos.
Mas ele não deseja mais do que isso. Ser livre
é com frequência estar sozinho. Ele cuidava de unir
metades desiguais, rompidas
por nossa boa intenção de sermos justos;
de devolver aos maiores a agudeza e vontade
que os menores possuem e costumam somente usar
em tolas disputas, dar de volta
ao filho a opulência do sentir materno:
ele cuidava acima de tudo era de lembrarmos
que nos deixássemos arrebatar pela noite, não
apenas pelo senso de pasmo
que por si só nos dá, mas também
por que precisa o nosso amor. Os grandes olhos tristes
de suas doces criaturas rogam mudamente
que a convidemos a seguir-nos;
são banidos que aspiram ao futuro
que está em nossas mãos, eles também se alegrariam
se lhes permitissem servir, como ele, à iluminação,
e suportar nosso grito: “Judas!”
como ele suportou e os que o servirem.
Uma voz racional calou-se. Sobre a sua tumba,
a família do Impulso pranteia um ente querido.
Eros está triste, o construtor
de cidades; chora a anárquica Afrodite.
Tradução de José Paulo Paz, do Livro “W.H. AUDEN – Poemas”, Companhia das Letras.