Sete meses depois, segue a luta para reabrir o Espaço Memória Carandiru
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Sete meses depois, segue a luta para reabrir o Espaço Memória Carandiru

Movimento Pretas e militantes de movimentos sociais pleiteiam transformação do acervo em museu, sob tutela do Ministério da Cultura

Tatiana Py Dutra 12 maio 2024, 09:00

Fotos: João Wainer/Espaço Memória Carandiru

O modus operandi dos poderosos para executar o apagamento de indivíduos e fatos se desenvolve e consolida desde a colonização do Brasil. Mas ainda é espantoso acompanhar a sequência de expedientes escusos contra a preservação da história. Vide o caso do Espaço Memória Carandiru, inacessível ao grande público desde 6 de outubro do ano passado, em São Paulo. Em tese, visitas agendadas por e-mail são possíveis, mas esse obstáculo já faz com que representantes de movimentos sociais considerem o espaço como fechado. No espectro político, destaca-se a luta do Movimento Pretas do PSOL para a liberação do local para ampla visitação, com o compromisso de ajudar na conscientização sobre a precariedade do sistema prisional e inclusão de egressos, além de  preservar a história do massacre que resultou em 111 detentos assassinados pelas forças do Estado em 1992. 

Codeputada estadual pelo Movimento Pretas, Karina Correia conta que a ideia do memorial surgiu anos após a demolição do Complexo do Carandiru e da construção do Parque da Juventude, em 2007. A área de lazer deu espaço a uma pequena placa em referência ao presídio, onde se lê a frase: “para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça”. Pobre demais para rememorar evento tão relevante.

“Começava aí essa percepção de apagamento da história, porque, veja, quando uma pessoa chegava no parque, se ela não conhecesse a localidade, se não soubesse da história, se tivesse nascido nos anos 2000, edificilmente saberia que ali era a Penitenciária do Carandiru e o que aconteceu”, pontua.

O centro de memória acabou sendo criado no mesmo 2007, usando algumas salas do pavilhão remanescente da antiga Casa de Detenção de São Paulo, que foi o maior presídio da América Latina – compartilhando um espaço ocupado majoritariamente pela Escola Técnica Estadual (Etec) Parque da Juventude -, como parte do Centro Paula Souza (CPS). A visitação aberta ao grande público, porém, só começou em março de 2018.

Operação

Espaço Memória Carandiru/Divulgação

O Espaço Memória Carandiru foi instalado no piso térreo, onde funcionava a enfermaria da penitenciária e algumas celas, com arquitetura original preservada. Lá era possível conferir centenas de fotos, objetos pessoais e variados utelsílios criados pelos presos, como portas com pintura artística, utensílios de cozinha, máquina de tatuagem, destilaria para produzir a aguardente “Maria Louca” e artigos religiosos, por exemplo. 

Em funcionamento, o local tornou-se um equipamento institucional de memória, servindo também de fonte para alunos do curso Técnico em Museologia oferecido pela própria Etec. A historiadora Nádia Lima, técnica em museologia formada no local, chegou até a questionar para qual finalidade o governo criara aquele espaço.

“Eu me questionei se aquele espaço era para o curso ou se era para o público. Para mim, ele só faz sentido se estiver aberto à população. Outra coisa: desde o início, o Espaço Memória Carandiru se isentava de apresentar ou debater o massacre. Dizia-se que era para ‘falar das vivências das pessoas que viveram lá’. Para se ter ideia, na exposição havia uma cronologia, uma linha do tempo sobre a construção dos presídios. Mas essa linha pulava 1992. Isso acabava por gerar efeitos de apagamento e romantização das vivências do Carandirú. Enfim, houve uma série de problematicas”, comenta.

Participação de ex-detentos

Para a historiadora, o memorial passou a fazer mais sentido quando a visitação diária ao local – de terça a sábado, das 10h às 17h – foi permitida, graças a recursos captados via edital. Isso ocorreu entre 2022 e 223. Em período semelhante, ex-detentos, sobreviventes do massacre, passaram a apresentar os roteiros de visitação, dentro do projeto Memórias Carandiru, uma ação educativa que vinculava com antigos encarcerados e técnicos em museologia, com incentivo do edital do Projeto de Publicação de Conteúdo Culturan (Proac).

“Quando os sobreviventes assumiram como mediadores, começaram vir à tona as denúncias [aos visitantes] das violações aos direitos humanos [ocorridas no Carandiru] e do que o Estado fez e faz. Tudo com eles relacionando o acervo com o que viveram”, conta Nádia, que foi coordenadora do Projeto Memórias Carandiru.

Nesse ponto, segundo Karina, o trabalho começou a ganhar um peso popular muito grande, com interesse histórico, sobretudo, da juventude, que começou a frequentar o local. O acervo presente nas salas e os relatos de quem viveu a realidade do cárcere se tornou essencial a conscientização da população da cidade, em especial os adolescentes, que desconheciam a história e agora poderiam contribuir para que não fosse esquecida. Esse interesse, porém, passou a desagradar o governo.

“O governo, que fez parte do massacre, começa a se incomodar porque a história contada ali naquele roteiro de memória é a história dos egressos, é a história de quem estava ali. Eles começam a contar que não foram só 111 mortos, que houve mais, que até hoje existem pessoas desaparecidas. Que no dia do massacre pegou-se corpos de forma aleatória, jogaram em cima de um caminhão e os jogaram na calçada próxima ao cemitério. Isso começa a incomodar sobretudo a extrema direita, a mesma que derrubou a penitenciária, não com o intuito de fechar presídios, mas de apagar o que o massacre que aconteceu, para que não fosse mais lembrado”, conta Karina.

Começo do fim

A codeputada e a historiadora refletem que foi nesse ponto que, sem chamar a atenção, quem tinha poder começou a minar a existência do memorial. Pequenas e grandes ameaças, regadas a preconceito – como a sugestão de que as visitas fossem conduzidas por professores -, até o corte de verbas. Em agosto do ano passado, anunciou-se o encerramento das atividades para uma data próxima aos 31 anos do Massacre do Carandiru, com o fim dos recursos do Proac. Com a incerteza, nascia a resistência.

O primeiro passo foi marcar uma reunião com a pasta estatal à qual o equipamento cultural estava ligado. Cultura? Direitos Humanos? Não. Ciência e Tecnologia

“A Secretaria de Tecnologia e Ciência nem sabia da existência desse espaço. Por conta da troca de gestão, fomos até o secretário [Vahan Agopyan], e ele não sabia o que era. O que chegava para ele é que o memorial era inútil e que só estava atrapalhando a demanda da Etec”, conta Karina.

Apesar de várias tratativas e promessas – e até de um chamamento público que garantiu que ex-detentos se mantivessem no voluntariado – na mesma semana do aniversário do massacre, o Espaço de Memória foi fechado com uma tranca. O público ficou do lado de fora. Do lado de dentro, ficou a História.

Nos últimos sete meses, quem atuou à frente do projeto batalha por sua retomada e contra a ofensiva do Executivo para o apagamento de milhares de histórias de pessoas pobres, majoritariamente pretas, encarceradas e sumariamente mortas pelo Estado. Em um primeiro momento, o Movimento Pretas pleiteou que o memorial passe para a Secretaria de Cultura ou de Direitos Humanos do Estado. Outra frente seria  que o local se tornasse um museu, sob a égide do Ministério da Cultura.

Ambas as ambições, segundo Karina Correia, são mais viáveis que a aprovação de uma lei que mantivesse o memorial aberto.

“Qualquer proposta seria barrada pela extrema direita, direita e aliados do governo Tarcísio de Freitas (Republicanos), que representa cerca de dois terços dos deputados da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp). Se bate o projeto lá, não vai entrar nem em pauta. E tem uma coisa chamada vício de iniciativa, que é quando um projeto demanda orçamento, ele precisa ser proposto pelo governo. E o governo já sabe em quanto isso vai onerá-lo. É algo que nem o governo Tarcísio, nem outro governo de direita tem  vontade. Primeiro porque o Estado não lucra com esse tipo de equipamento. Segundo, porque o Espaço Memória Carandiru conta uma história que a TV não contou, que o rádio não contou, que os jornais calaram e que eles não querem ver contada”, afirma.

Lutar para não esquecer

Enquanto uma definição não vem, o espaço de organização dessa memória segue fechado e, até onde se sabe, o acervo está sem manutenção. Já o Projeto Memórias Carandiru segue em andamento, atendendo a visitantes no Parque da Juventude, no lado de fora do pavilhão tombado da antiga Casa de Detenção. Num gesto que sugere temor de uma invasão, a Etec, que funciona no prédio, mudou seu sistema de identificação para a entrada no edifício. A escola adotou um sistema de reconhecimento facial para funcionários. Já o acesso aos alunos se dá por uma carteirinha de identificação especial, que solta um bipe na passagem da catraca.

“São sistemas semelhantes aos de algumas penitenciárias”, observa Nádia, argutamente.

E assim caminham os mecanismos de apagamento de histórias, das vidas do povo preto, do povo periférico. Operam na intenção de esconder as humanidades desvalorizadas e ocultar a opressão e a ação criminosa dos poderosos, dos intolerantes e dos fascistas, sob pretexto de falta de verbas ou na invalidação das vítimas. Algo semelhante, aponta Karina, ocorre nas operações policiais assassinas em cidades paulistas. 

“Os morros, as favelas, a Baixada, onde tem acontecido a superação Escudo, que já são lugares que ninguém vai, são lugares de um apagamento enraizado. Se faz isso de uma forma muito sorrateira, porque são lugares onde ninguém tem interesse, onde tem pessoas pobres, que não tem letramento racial. Presídios são assim também. E o sistema atua e coopera para que as pessoas pobres, pretas, que têm chances reais de serem forçadas ao roubo ou a tráfico de drogas irem parar nesses lugares. A população precisa entender que talvez não seja só sobre violência, mas sobre formas de cercear, limitar e matar os indesejáveis. Primeiro a gente sequestra, depois a gente mata. Se não der para matar, dá para escravizar mais. Vamos prender essas pessoas. É uma forma cruel de marginalizar pessoas vulneráveis no mesmo sistema capitalista que escravizou essas pessoas e fez uma falsa abolição para submeter a população negra à fome, falta de saneamento e de trabalho. É apagamento e genocídio”, diz a codeputada.

É por isso, reforça Karina, que o movimento de resistência do Espaço Memória Carandiru precisa se fortalecer: 

“Temos esse desafio, não só enquanto mandato, mas enquanto militância, enquanto movimento negro, de fazer com que aquele espaço seja tombado de fato, com pessoas responsáveis e interessadas em tocar aquilo de forma verdadeira e de forma real. Essa história não pode morrer”.


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