Eleições europeias: um giro conservador, que pode ou não se aprofundar
Uma reflexão sobre os resultados das recentes eleições para o Parlamento Europeu
Foto: Gabor Kovacs/European Union
Há muito impressionismo nas manchetes dos jornais da grande imprensa que apontam uma vitória retumbante da extrema direita nas eleições para o Parlamento Europeu. O Parlamento anterior foi eleito, em 2019 com 751 parlamentares, mas com a saída do Reino Unido do bloco, caiu para 705 em 2020, subindo agora para 720. Ainda faltam os resultados da Irlanda e em vários países ainda não temos os resultados finais. Mas já é possível uma avaliação geral. Uma avaliação sóbria evidencia uma inequívoca vitória da direita, que aprofunda as políticas conservadoras, que está longe de representar uma avalanche irresistível. Não se trata nem de subestimar o perigo da extrema direita, nem a magnitude dos desafios colocados para a esquerda socialista, mas o resultado não causou nenhum espanto nos que acompanhavam a situação política da Europa e está longe da “avalanche” que muitos antecipavam. Compreender bem os resultados eleitorais é essencial para entender o que se passa na consciência de diferentes setores da sociedade em distintos países e dimensionar as tarefas políticas.
A União Europeia é muito mais do que uma federação de estados soberanos e muito menos que um estado. Muitos utilizam o termo proto-estado para defini-la e outros falam de um “déficit democrático” em uma esfera política especificamente europeia que ganha um peso cada vez maior. Ela determina as políticas aplicadas pela UE e determina ou condiciona fortemente aquelas de seus estados membro. Temos sete partidos formalizados nessa esfera, indo da esquerda para a direita: “A Esquerda” (a esquerda socialista e verde-vermelha, onde está, por exemplo, o Bloco de Esquerda de Portugal e a França Insubmissa), os “Socialistas e Democratas” (a social-democracia tradicional), os “Verdes” (os ecologistas de mercado), a “Renovação Europeia” (os liberais como Macron), o “Partido Popular Europeu” (a direita conservadora tradicional, como as democracias cristãs, sendo o partido da atual presidente da UE, Ursula von der Leyen), os “Conservadores e Reformistas Europeus” (o partido da direita radical animado por Giorgia Meloni, que tem se colocado como europeista e pró-Ucrânia) e o partido “Identidade e Democracia” (que tem vínculos mais diretos com tradições anti-europeístas, impulsionado na França pela Frente Nacional de Marine Le Pen). A extrema-direita está fragmentada, não apenas em dois partidos europeus, mas como setores “independentes”; a AFD (os fascistas alemães) acabou de ser expulsa do “Identidade e Democracia” e o Fidesz de Viktor Orbán mantém sua autonomia. Mas também há partidos com perfil mais progressista fora dos sete partidos europeus, como o Cinco Estrelas italiano e a Aliança Sahra Wagenknecht, que talvez mereçam a designação de populistas.
O que se passou nessa eleição pode ser definido, centralmente, como uma recomposição em que os liberais e os ecologistas de mercado perderam peso em favor tanto dos conservadores (von der Leyen) como das direitas radicais (Meloni, de um lado, e Le Pen, de outro). Há, portanto, um deslocamento do centro de gravidade político da União Europeia mais para a direita, centrado em temas como restrição às migrações, conservadorismo social e armamentismo e solidariedade global com os EUA. Mas o impacto das eleições foi amplificado porque ecoou os impasses políticos vividos nos dois países mais importantes da UE, a França e a Alemanha.
No caso da França, o que está no centro da vitória de Marine Le Pen é o desastre que representa a política sistemática de ataques aos direitos sociais de Macron, sem que a esquerda consiga apresentar uma alternativa aceita por todos seus componentes. A Frente Nacional, partido de Le Pen, tem inequívocas raízes no fascismo europeu, mas tenta normalizar sua presença na política francesa há décadas e catalisar o descontentamento social. Em seu discurso domingo, Marine Le Pen reafirmou suas três prioridades: barrar toda a migração, defender a proteção social dos trabalhadores e reindustrializar a França. No segundo caso, há um imobilismo estratégico do governo alemão, que é uma aliança da social-democracia, dos verdes e dos liberais; a conta chegou particularmente pesada para os verdes que prometeram muito e não entregaram nada – a AFD e a Aliança Sahra Wagenknecht disputam o descontentamento que se instalou praticamente desde o atual governo foi eleito, em 2021, substituindo os conservadores depois de três gestões de Angela Merkel.
França e Alemanha são os dois principais países da União Europeia, mas generalizar uma onda pan-europeia de extrema-direita é tomar a parte pelo todo; é falso. Há vitórias específicas, mas os grandes vitoriosos na escala continental foram os conservadores europeistas e pré-EUA, que vão continuar a se equilibrar, como já fazem, entre partidos mais radicais de direita (veja-se a Meloni, e pode ser o caso amanhã da Le Pen) e a social-democracia e seu apêndice verde.
É isso que vemos nos dados iniciais, no dia 10 de junho: a Esquerda ficou com o mesmo número (ou perde um) e a Social-democracia também fica igual. Quem perde e bastante, são os liberais da Renovação (Macron) e os Verdes alemães e franceses (que também são liberais), cada um dos partidos elegendo em torno de vinte deputados a menos. Eles são normalmente chamados de “centro” embora estejam aplicando políticas sociais bastante direitistas. A direita tradicional, do PPE de Ursula von der Leyen, cresceu mais de vinte deputados. Os dois partidos de extrema-direita, o Conservadores e Reformistas Europeus de Meloni e o Identidade e Democracia de Marine Le Pen cresceram respectivamente 4 deputados e 9 deputados. Há uma maior fragmentação dos “independentes” de direita e de esquerda, que cresceram de 62 para 98 deputados.
Falando objetivamente, não ocorreu a avalanche fascista que alguns temiam. Os jornais empresariais têm destacado que “o centro europeista se sustenta”, deslocando-se mais para a direita. Há problemas gerais que estimulam isso, como mais de dois anos de guerra na Ucrânia, que coloca as “questões de segurança europeia” no centro da agenda, e o evidente declínio econômico e geopolítico do continente, agravado pela crise pandêmica. Podemos, entretanto, localizar o deslocamento da vontade política principalmente nos casos nacionais da França e da Alemanha, mas há outros contra-exemplos relevantes, como a Escandinávia.
Isso não significa que a eleição não possa ser o início de um salto de qualidade no movimento para a direita. Mas isso depende do que se passe na França. Derrotado, Macron convocou imediatamente eleições parlamentares no país, apenas dois anos depois delas ocorrerem (ele está em um governo minoritário desde então). O resultado, a julgar pelo indicador dessas eleições europeias (que tiveram a abstenção de metade do eleitorado), pode ser que em um mês o primeiro ministro da França seja o midiático Jordan Bardella, de 28 anos, o presidente da Frente Nacional de Le Pen. Macron está fazendo uma manobra arriscada, provavelmente imaginando que, no caso de vitória agora da Frente Nacional, o ônus da continuidade de um governo caótico recaia, nas próximas eleições, sobre Marine Le Pen. Mas o resultado pode ser também entregar o poder no país nas mãos da líder da Frente Nacional. Esperamos que a esquerda francesa esteja à altura dos desafios colocados!
Uma observação para concluir. Uma semana atrás, esperava-se, pelas manchetes de jornais da grande imprensa, mas também de veículos da esquerda, que o resultado da rodada de eleições que se concluíam na Índia, na África do Sul e no México seria o reforço da extrema-direita no mundo, com uma vitória avassaladora da coalizão de extrema-direita hinduísta de Modi e um giro completo na política sul-africana. Mas nenhum dos dois casos se deu: Modi se enfraqueceu e a oposição a ele se fortaleceu de maneira expressiva e a crise do Congresso Nacional Africano abriu espaço para outras legendas de esquerda. Além disso, a presidente eleita do México, Claudia Sheinbaum, ganhou, com o resultado eleitoral acachapante, condições de impulsionar políticas mais progressistas que as do atual presidente Andrés Manuel López Obrador.
A extrema-direita é hoje uma ameaça em quase todo o mundo todo. O crescimento de uma vasta constelação conservadora emerge das condições atuais da decadência do capitalismo neoliberal, que destrói o tecido social e a teia da vida no planeta; uma esquerda ecossocialista tem que oferecer alternativas para isso. Mas não podemos apresentar os avanços da direita radical e do fascismo como uma trajetória linear de ascenso irresistível, como nas profecias auto-realizáveis da imprensa liberal. Tanto a vitória como a derrota se dão na disputa político-social e só podem ser contabilizadas depois da luta travada e finalizada. No caso da Europa, a eleição para o Parlamento Europeu representou uma derrota, mas a luta ainda está em curso. O mesmo vale para os EUA. E para o Brasil!
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