Um crime contra a vida das meninas
PL da Gravidez Infantil não é apenas um retrocesso mais uma sentença de morte a crianças vítimas de estupro e pessoas que gestam
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A cada minuto duas mulheres são estupradas no Brasil – e 6 em cada 10 vítimas são crianças com idade entre 0 e 13 anos, sendo que seus agressores são pessoas de sua família ou de seu círculo íntimo. Segundo a Associação Nacional de Ginecologia e Obstetrícia, 21.520 meninas com menos de 14 anos engravidaram em 2019. Contudo, avança na Câmara dos Deputados um projeto de lei que pretende criminalizar essas vítimas.
O Projeto de Lei 1904/24, conhecido como PL da Gravidez Infantil, propõe uma alteração na lei penal sobre o aborto – que autoriza a interrupção da gestação para vítimas de estupro, em caso de risco de vida ou de anencefalia fetal sem limite de idade gestacional. Com a nova proposta, qualquer aborto realizado após 22 semanas de gestação será equivalente a um crime de homicídio simples, com punição de seis a 20 anos de cadeia. Pena maior, portanto, que a aplicada para o crime de estupro de vulnerável, que preve de 8 a 15 anos de reclusão. O PL também punirá os médicos que executarem o procedimento, o que hoje não acontece.
Em outras palavras: a pretexto de “defender a vida” de crianças não nascidas o PL fecha o cerco contra o aborto penalizando, especialmente, crianças vítimas de estupro. Isso porque as meninas menores de idade costumam demorar mais para requisitar o aborto legal já que, muitas vezes, elas demoram para descobrir que estão grávidas e ainda tentam esconder o fato da família. Com a proibição do aborto, elas serão obrigadas a ser “mães”.
Isso com sorte. O obstetra Olímpio Moraes, diretor médico do Centro Universitário Integrado de Saúde Amaury de Medeiros e professor da Universidade de Pernambuco, considera a medida uma sentença de morte para muitas meninas. Em entrevista ao UOL, ele destacou que na infância e na pré-adolescência, especialmente, o seguimento de uma gravidez é sempre um risco.
“Entre essas crianças e meninas adolescentes, a principal causa de morte são justamente as complicações da gravidez. E a segunda é o suicídio devido à depressão, gerado muitas vezes pela situação de vulnerabilidade causada pela violência sexual. Então, o projeto vai condenar essas meninas muitas vezes à morte”, afirma.
Mulheres condenadas
O PL também trará riscos para pessoas adultas que gestams, uma vez que, em geral, as gestações costumam ser identificadas após 20 semanas. Caso o risco de vida para a mãe seja diagnosticado após esse prazo, por exemplo, ela será forçada a seguir com a gravidez ainda que possa morrer.
“Existem casos em que mulheres apresentam, acima de 20 semanas, uma descompensação cardíaca, ou percebe-se uma gravidez abdominal, uma gravidez ectópica [fora do útero] – -que é um risco muito grande. E o médico pode ficar com receio de interromper a gravidez, e a mulher pode morrer por causa dessa lei”, avalia Olímpio.
O obstetra acrescenta que as malformações fetais também podem ser identificadas tardiamente:
“No caso de feto mal formado seja sem cérebro, sem coração, sem rins? A lei dá a entender que ele está viável, então manda continuar a gravidez. As mulheres passam a ser obrigadas a continuar a gravidez muitas vezes de alto risco e destruindo a sua saúde mental. É uma tortura fazer isso com as mulheres”
Na Câmara
O projeto está em tramitação na Câmara e graças ao empenho do presidente da casa, Arthur Lira (PP-AL). foi votado em regime de urgência sem debate ou análise de comissões.
Uma mão lava a outra: autor do PL, o deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) é próximo ao pastor Silas Malafaia, que prometeu apoio da bancada evangélica a sua reeleição à presidência da Câmara em troca de celeridade na mudança da lei do aborto.
Como se não bastasse o apoio de reacionários, a aprovação do projeto teve anuência de parte da esquerda. O governo Lula prometeu liberar a base aliada na votação e, conforme reportagem da Folha de S.Paulo, lideranças do PT atuaram intensamente para que a votação fosse simbólica, não identificando como parlamentar votou. A ideia era se livrar de cobranças às vésperas de eleições municipais.
O projeto ainda não tem data para ser votado no plenário da Câmara, mas graças à pressão crescente de deputadas e movimentos feministas, Lira já prometeu entregar a relatoria do PL a uma “mulher moderada” – que, espera-se, altere o texto após discussão com a bancada feminina. Caso seja aprovado, seguirá para análise do Senado.