Ismail Kadaré (1936-2024), a literatura como admirável espelho da política
Uma homenagem ao escritor albanês falecido recentemente
Foto: Wikimedia Commons
Na noite de 1º de julho, em Tirana, aos 88 anos de idade, o coração do brilhante escritor Ismail Kadaré parou de bater. O maior escritor da história moderna da Albânia deixou uma obra extensa, amplamente traduzida para o português. Ela reflete, para além do talento extraordinário, a trajetória política e histórica da Albânia recente.
Soube da existência da obra de Kadaré de forma inusitada. No final dos anos noventa, ainda começando na militância, na antiga sede de Porto Alegre, mexendo em papéis antigos encontrei um caderno de formação da Convergência Socialista acerca do processo convulsionado do final da Albânia como Estado Operário. Uma pequena brochura que polemizava com a visão do PcdoB acerca do processo de desintegração do Estado Albanês, citando como exemplo as posições de Kadaré, à época já conhecido no Brasil. Kadaré se notabilizou em 1990 ao se exilar em Paris, criticando a dura repressão aos protestos que derrubaram o regime. A partir dali, por curiosidade, comecei a tomar contato com a literatura extraordinária de Ismail Kadaré.
Traduzido para cerca de 40 idiomas, Kadaré foi o mais conhecido e universal escritor albanês. O acolhimento à sua obra no Brasil foi intenso, tendo quase dez livros publicados pela Companhia Das Letras, uma adaptação de sua obra “Abril Despedaçado” para o cinema nacional e larga difusão em meios acadêmicos e literários. Vale registrar o trabalho do jornalista carioca Bernardo Joffily, profundo conhecedor da obra de Kadaré e da história da Albania, que traduziu algumas das principais edições, diretamente do albanês.
Kadaré se universalizou como escritor e universalizou as temáticas da cultura, da literatura e da própria política albanesa. Não por acaso venceu dois prêmios internacionais de grande envergadura como o Booker e o Príncipe de Astúria, chegando a ter Margarite Duras que com Kadaré a literatura albanesa superava a francesa; alguns lamentam a injustiça de não ter ganho um Nobel; do ponto de vista de vendas e publicações, Kadaré superou os milhões de leitores espalhados pelos cinco continentes.
Creio que dois elementos explicam a notoriedade de Kadaré: sua capacidade de expressar o “espírito do tempo” da Albânia, que por si só, apesar de ser um país pequeno, tem uma diversidade cultural como poucos, por sua história e heteregenoidade étnico-cultural; o peso político que a Albânia que teve nos setores de vanguarda, sobretudo a partir do final dos anos 70, como modelo do “socialismo real”, sendo levada como insígnia por um corrente que teve peso de massas em vários países, que no Brasil foi traduzida pela linha do PcdoB por duas décadas.
Ismail Kadaré nasceu em Girojaskter(ou Argirocastro), no extremo-sul da Albania, conhecida como “cidade das pedras”; a mesma cidade de Enver Hoxha, líder supremo do estado operário burocratizado albanês, nascido vinte anos antes de Kadaré. Ismail foi assim batizado em referência a Ismail Quemali, líder do movimento nacionalista, considerado o fundador da Albânia independente, durante seu breve governo(1912-1914), nos estertores do domínio Otomano.
É nesse caldo social, onde se imbricam raízes das diferentes etnias que habitam o território albanês, resquícios do império otomano que dominou a Albânia por tantos anos; a encarniçada e mortal luta antifascista que, combinada com a luta de libertação nacional, durou quase 30 anos, em meio a duas guerras mundiais, que Kadaré irá constituir os fundamentos da sua literatura. E claro, agregando os turbulentos anos que se sucederam ao triunfo antifascista, com a proclamação da República Popular da Albânia e do regime burocrático de Hohxa e do Partido do Trabalho.
Kadaré estudou em Moscou até a ruptura de relações da Albânia com a URSS, tomando contato com a influência do realismo socialista e escolas posteriores em voga à época. Fez poemas, além de romances e aprofundou seu estudo na história da Albânia e dos Balcãs.
Esse estilo único, utlizando alegorias diversas, fazem da obra de Ismail um todo integrado mas com uma dialética entre o particular e o universal, entre o histórico/tradicional e o contemporâno. Faz da riqueza e da diversidade cultural da Albânia, sua riqueza e diversidade.
Sua posição quanto ao regime é única: manteve a independência crítica, contudo de forma diferente a outros gigantes que enfrentaram diretamente a burocracia stalinista como Alexander Soljenítsin; também não é a mesma que Leonardo Padura, outro gigante que reproduz as paisagens cubanas, sem perder a crítica ao regime, mas sem perder o diálogo com a simpatia com Cuba e sua revolução.
Apenas como exemplo, tomamos três das mais importantes obras do autor:
− “Dossie H”(1981): onde a narrativa move dois pequisadores irlandeses – etnógrafos como também era Kadaré – para buscar os sentidos mais profundos da tradição oral da poesia, lendas e crenças dos povos do interior; se ampara no estilo das obras clássicas de Homero, como Ilíada e Odisseia, para fundir a tradição e a oralidade das grandes narrativas com as contradições do regime em tempo presente, acompanhando as hostilidades dos hábitos e do regime contra os etnógrafos.
− “Concerto de fim do inverno”(1988): no mais “político” dos romances de Kadaré, ele não firma contradições com o regime, ao contrário, se apoia de forma lúcida em elementos geais do modo de vida albanês para criticar as ações da China. Kadaré se beneficia da “volatilidade” do sistema internacional do regime albanês, que saltou da aliança com Tito para a URSS, da URSS para a China e por fim rompeu e demonizou o regime chinês. Isso sem perder as credenciais do lugar da tradição na cultura da Albânia, como na passagem que fala da leitura da borra de café, ao modo turco, prática tradicional na crendice do povo.
− “Abril despedaçado” (1978 ) : o mais conhecido romance no Brasil trata do “kanun”, um código ético implicito e histórico que determina as condições para uma “vendeta”(vingança). No começo do século XX, a vendeta atravessa a vida de famílias rivais, passando por várias gerações. Como citamos acima, a adptação para cinema, em filme de 2001, foi um marco. Dirigido por Walter Salles, o “Abril despedaçado” nas telas contou com atuação épica de Rodrigo Santoro, transpondo as areias e pedras da Albânia para o nordeste brasileiro, em 1910. Vale registar o gênio de Kairan Ainouz, o roteirista responsável por essa pérola.
O outro elemento que levou Ismail Kadaré a ser conhecido no Brasil e em diversas partes do mundo foi o lugar da Albânia na cultura popular de massas. Posso relatar algumas dessas evidências: conheci mais de um dirigente e militante da esquerda no Peru que tinha como primeiro nome Enver, batizado por seus pais em homenagem ao que julgavam ser a “Pátria do socialismo”; um dos mais populares blocos carnavalescos de Maceió, lançado em 1986, era o “Meninos da Albânia” impulsionado por militantes e simpatizantes do PcdoB.
O PcdoB no Brasil – um partido que superou o PCB em influência política, presença orgânica na sociedade, teve vínculos estreitos com a Albânia. Sua direção chegou a reunir uma conferência em Tirana durante a clandestinidade; vários dirigentes viveram no país, colaborando com a articulação internacional em apoio a corrente de Hoxha que teve uma presença forte em diversos países como Equador e Portugal.
Voltando a brochura lida há quase trinta anos que enunciei no começo do artigo, me parece que a crítica feita por Kadaré – que em parte defendia algumas opções de radicalismo “igualitarista” do regime, muito menos pragmático e hipócrita que a URSS de Kruchscev e a China de Deng, mas combatia (até chegar ao ponto de não retorno durante as jornadas de revolta contra Ramiz Alia no final de 1990) a gestão ditatorial da vida política e social encontrou amplo na esquerda e na sociedade. A esquerda radical nunca dissociou o socialismo da liberdade e se colcou ao lado das revoltas de Berlm (1953), Budapeste (1956), Praga (1968), dos operários de Gdansk (1982) e dos estudantes da Praça da Paz Celestial (1989).
A forma de controle policialesco da vida, a repressão aos intelectuais, os crescentes privilégios de uma camada burocrática de dirigentes e falta de participação popular e coletiva no planejamento ecônomico são os pilares de um pensamento crítico imortalizado pelas “almas livres” como era de Ismail Kadaré.
Os que abraçam a ideia do comunismo e da liberdade como projeto de vida perderam um companheiro de viagem. Os que gostam da boa literatura perderam um imprescíndivel.