Ainda estão impunes os torturadores e assassinos de Rubens Paiva
Prque a luta contra a ditadura continua tão atual
Foto: Rubens Paiva (Reprodução)
O filme “Ainda Estou Aqui”, dirigido por Walter Salles, estreou alcançando uma bilheteria de mais de 1 milhão de espectadores nas primeiras semanas, evidenciando o interesse e a urgência de revisitar os impactos da ditadura em tempos de renovadas ameaças à democracia.
A produção aborda uma história pessoal que reflete uma luta mais ampla por justiça e memória no Brasil. A obra traz às telas a história de Eunice Paiva, interpretada por Fernanda Torres e Fernanda Montenegro em diferentes fases da vida, e narra sua luta para descobrir o paradeiro de seu marido, Rubens Paiva, desaparecido durante a ditadura militar brasileira. Baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva, filho de Eunice, o filme destaca o impacto do regime autoritário na vida das famílias e a busca incessante por memória e justiça.
“Ainda Estou Aqui” não é apenas sobre uma família, mas sobre uma luta histórica no Brasil. O filme reflete o sofrimento de tantas outras famílias que, assim como a de Eunice, foram destroçadas pelo autoritarismo e enfrentaram a dor e o silêncio impostos pelo Estado. Essa ausência de justiça transicional no Brasil contrasta com muitos outros países que buscaram responsabilização, como a Argentina, que julgou e condenou líderes da ditadura militar, incluindo Jorge Rafael Videla, ditador entre 1976 e 1981. O filme denuncia como o processo de redemocratização não promoveu justiça e sim garantiu impunidade.
Quando o assunto é a impunidade, lembro de entrevista que certa vez fiz com Suzana Lisboa: “A Lei da Anistia não trouxe justiça, ela apenas garantiu que os criminosos da ditadura continuassem livres de qualquer punição.” Essa frase ilustra bem como a Lei da Anistia, promulgada em 1979, tem sido um dos maiores obstáculos para que se faça justiça em relação aos crimes cometidos durante a ditadura. Proposta como um suposto gesto de reconciliação nacional, a lei acabou garantindo impunidade aos agentes do Estado que cometeram torturas, execuções e desaparecimentos.
Suzana Lisboa se dedicou plenamente à busca por memória, verdade e justiça no Brasil. Seu marido, Luiz Eurico Tejera Lisboa, dirigente estudantil, foi morto pela ditadura e enterrado sob nome falso no Cemitério de Perus, em São Paulo. Embora tenha conquistado o reconhecimento das circunstâncias reais de sua morte, os responsáveis não foram nomeados, e a luta pela responsabilização continua. Suzana também critica abertamente as falhas da Comissão da Verdade e a falta de ações incisivas por parte dos governos federais: “A comissão foi superficial, muitos arquivos permaneceram fechados, e a responsabilização não aconteceu.” A Comissão da Verdade foi um marco ao oficializar relatos de violações e identificar responsáveis, mas sua atuação esbarrou na falta de abertura total de arquivos e na ausência de um mecanismo efetivo de responsabilização judicial.
Entre os pontos positivos da Comissão da Verdade, destaca-se o detalhamento sobre o que aconteceu após o sequestro do marido de Eunice. Rubens Paiva foi levado por agentes do regime militar em 1971 e, segundo as investigações, foi torturado até a morte no DOI-Codi, no Rio de Janeiro. O destino de seu corpo permanece desconhecido. Os responsáveis por seu assassinato, incluindo José Antonio Nogueira Belham, Rubens Paim Sampaio, Jurandyr Ochsendorf e Souza, Jacy Ochsendorf e Souza, e Raymundo Ronaldo Campos, nunca foram julgados. Até hoje, esses agentes permanecem impunes, protegidos pela Lei da Anistia e pela falta de vontade política de reabrir os casos.
Entre os cinco envolvidos, três já faleceram: Raymundo Ronaldo Campos, em 2017; Jurandyr Ochsendorf e Souza, em 2018; e Rubens Paim Sampaio, em 2020. Os outros dois, José Antonio Nogueira Belham, general reformado que reside em Brasília, e Jacy Ochsendorf e Souza, continuam vivos. Apesar de a Comissão Nacional da Verdade ter consolidado provas sobre a participação de cada um no caso, nenhum deles foi julgado e punido, perpetuando uma cultura de impunidade que remonta ao período de redemocratização.
Esta é a impunidade que pavimenta o caminho para novas tentativas golpistas. A Lei da Anistia, ao garantir proteção aos torturadores e assassinos da ditadura, criou um precedente de ausência de responsabilização que fortaleceu discursos autoritários. Essa lógica permite que crimes políticos e ataques às instituições democráticas sejam tratados como eventos isolados, quando, na verdade, fazem parte de um ciclo de impunidade que ainda persiste.
Essa continuidade histórica de impunidade conecta diretamente os crimes da ditadura aos ataques recentes à democracia, evidenciando como a ausência de responsabilização molda práticas políticas que ameaçam instituições até hoje.
O lançamento do filme ocorre enquanto as questões de justiça e memória mostram sua urgência. O Brasil enfrenta uma tentativa de apagar crimes recentes, como os cometidos pela extrema-direita em 8 de janeiro, combinado ao plano revelado de assassinar Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes. Tudo com o envolvimento inegável de Jair Bolsonaro que ainda busca recuperar seus direitos eleitorais.
Assim como a impunidade dos torturadores de 1964 foi garantida pela anistia, agora busca-se uma nova anistia para os golpistas. ‘Ainda Estou Aqui’ é um alerta para aprender com o passado e garantir que ele não se repita. A luta por punição aos crimes da ditadura permanece relevante, pois é fundamental impedir que novas ‘anistias’ encubram os crimes da extrema-direita e perpetuem a impunidade.