O sonho de Sócrates
No aniversário da morte do grande jogador brasileiro, relembramos crônica de Xico Sá sobre o atleta.
Sem paciência para futebol feio, sonhava com a boniteza da torcida do Corinthians
Na sua segunda internação neste ano, Sócrates tinha um sonho recorrente: tabelava com o Casagrande e ouvia a Fiel cantando ao fundo. “Só que não saía gol de jeito nenhum, você acredita? Mas a gente era feliz, e o Biro-Biro era um craque.”
A narrativa, com outros personagens, se repetiu ontem no Pacaembu. Um 0 a 0 dos sonhos e um título dedicado ao doutor. “O Biro me dizia no ouvido: deixa que eu corro, faz só a catega, a classe”.
Deus está nas coincidências, como queria Nelson Rodrigues e como acreditava o ídolo corintiano. Coincidências, nos últimos tempos, que desmentiam os dicionários, segundo a visão do mestre do calcanhar. Nada de uma simples “concorrência casual e supostamente improvável”.
Seus olhos viam mais longe quando falava ultimamente no espiritismo. O cara ria e ria, mesmo em momentos mais pesados. “É mais leve do que a gente imagina, seu peste, deixa de se preocupar”, mandava, imitando meu sotaque franco-nordestino. “Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”, tirava onda com uma canção cearense.
Deus está nas coincidências. Era uma aliança do materialismo utópico do sonho socrático com as coisas que a gente vai morrer sem saber direito. Ele acreditava cada vez mais que havia um desenho tático, um tanto quanto incompreensível, nos acontecimentos.
Como o 0 a 0 de ontem, por exemplo. Chorado. Duplamente chorado. Pelo doutor e pelo espírito corintiano.
Sonhos e coincidências eram as matérias que compunham o filho do cearense Vieira ultimamente. Como ele falava no pai. Quase a toda frase. O fiscal de renda que, com toda gana, defendia: primeiro a escola, depois a bola.
Sócrates, sonhos hospitalares à parte -não foi fácil um cara tão humano respirar por tantos aparelhos-, passou uma vida sonhando. Todo dia tinha um sonho: “Acho que a gente devia fazer alguma coisa por esses meninos!”.
Os meninos eram os capitães de areia de sempre. Ultimamente os do crack.
Não sossegava com sua ideia de país na cabeça. Desde a campanha das “Diretas Já” até hoje. O futebol era sempre uma forma de ler o que rolava no mundo, não o jogo. O Magrão não tinha mais tanta paciência para futebol feio, mas sonhava com a boniteza da torcida do Corinthians. Se Sócrates morreu, toda feiura com a bola é permitida.
Sonhai por nós, Magrão, do seu amigo morto de saudade por tudo que vivemos. Intensamente.
(Artigo originalmente publicado na Folha de S. Paulo.)