O sistema de castas e os dilemas da esquerda indiana
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O sistema de castas e os dilemas da esquerda indiana

Um debate sobre o sistema de castas indiano a partir da teoria marxista

Sankha Subhra Biswas 6 maio 2025, 08:00

Foto: Manifestação para erradicação de coleta manual em Chennai. (Wikimedia Commons/Reprodução)

Via Alternative Viewpoint

Publicamos estes texto recente da página eletrônica Alternative Viewpoint, nova ferramenta de comunicação da esquerda marxista indiana.

O debate entre casta e classe há muito tempo impulsiona (e divide) as conversas progressistas na Índia. Normalmente, ele começa com o objetivo de desmantelar a opressão baseada em castas, um vestígio das hierarquias pré-capitalistas e bramânicas, mas frequentemente se transforma em polêmicas desagradáveis que atrapalham o movimento de esquerda mais amplo. Apesar disso, é moral e politicamente imperativo se opor categoricamente à escalada das atrocidades de casta perpetradas sob os auspícios do Partido Bharatiya Janata (BJP), cujos fundamentos ideológicos no Hindutva têm como objetivo reviver e institucionalizar as hierarquias sociais baseadas em varna.

Eixo distinto de opressão

Na realidade, a discriminação baseada em castas é um eixo distinto de opressão que muitas vezes opera de forma independente, mas também está profundamente ligada às hierarquias de classe, gênero e religião; não é uma “contradição secundária” ou um derivado da exploração de classe. Embora, de acordo com o marxismo, a base econômica determine as estruturas sociais, até o próprio Karl Marx reconheceu a importância da história e de fatores não econômicos na formação da consciência. Incorporada não apenas às instituições, mas também às ideias e relações sociais cotidianas, sua observação em O Dezoito de Brumário de Luís Bonaparte, de que “a tradição de todas as gerações mortas pesa como um pesadelo sobre os cérebros dos vivos”, encapsula perfeitamente como o legado da casta continua a assombrar a Índia moderna.

Em A Contribuição à Crítica da Economia Política, Marx diz: “Não é a consciência dos homens que determina seu ser, mas, ao contrário, é seu ser social que determina sua consciência”. Entretanto, ele também advertiu contra a redução de toda a história ao determinismo econômico. Em suas Cartas a Kugelmann, Marx declarou explicitamente que “a história mundial seria de fato muito fácil de fazer, se a luta fosse empreendida apenas sob a condição de chances infalivelmente favoráveis”. Esse reconhecimento da contingência histórica e da complexidade superestrutural cria uma oportunidade de entender a casta não apenas como um resquício pré-capitalista, mas como uma estrutura que o capital pode cooptar e reproduzir.

No contexto indiano, as tradições do Partido Comunista, ou seja, as facções do CPI, CPI(M), CPI(ML) etc., tentaram algumas vezes integrar a casta à luta de classes. E.M.S. Namboodiripad reconheceu a importância da casta, mas argumentou que ela “murcharia” com o declínio do capitalismo e do feudalismo. Essa visão é coerente com a posição tradicional do CPI, que via a questão da casta como “apenas uma parte da superestrutura” e esperava que ela desaparecesse com o capitalismo. Entretanto, dentro da modernidade capitalista, essa redução econômica levou a um persistente descuido sobre como a casta poderia perdurar – e até mesmo prosperar. B R Ambedkar desempenhou um papel fundamental na reformulação da casta como uma estrutura de poder distinta que resistia à categorização econômica.

Em Annihilation of Caste, Ambedkar argumenta que “a casta não é meramente uma divisão de trabalho. É uma divisão de trabalhadores… uma hierarquia na qual a divisão de trabalhadores é classificada uma acima da outra”. (…) “Essa não é uma diferenciação funcional; é uma ordem moral profundamente internalizada e reproduzida por gerações, sancionada pela religião e imposta pela violência.”

Essa percepção destaca os aspectos psicológicos e culturais da opressão de castas – elementos às vezes negligenciados nas teorias marxistas convencionais. A visão de Ambedkar se alinha à ideia de hegemonia de Gramsci, em que o controle é tanto coercitivo quanto consentido ideológica e culturalmente. Profundamente arraigado na ordem social indiana, o sistema de castas funciona exatamente por meio desses processos hegemônicos – ritos de templos, escrituras, endogamia e linguagem cotidiana.

Em The Hindu Social Order: Its Essential Features, Ambedkar observa: “A ordem social hindu nada mais é do que uma divisão da sociedade em castas. É um sistema que não dá margem à mobilidade social… É uma sociedade que não reconhece o princípio da igualdade nem a necessidade da liberdade. Essa desigualdade fundamental contradiz os próprios valores que uma sociedade justa e emancipatória deve defender.”

A casta, longe de ser um resquício do passado, continua a facilitar a expansão capitalista. Muitas vezes sem estabilidade no emprego ou proteções legais, os trabalhadores Dalit e Adivasi são metodicamente designados para os setores mais exploradores da economia: coleta manual, trabalho de saneamento, trabalho escravo e empregos no setor informal. Essa discriminação não é acidental; ela determina como a casta e o capital interagem. Conforme observado pelo economista político K. Raju, “a classe capitalista indiana fez as pazes com a casta, usando-a como uma ferramenta de gestão para segmentação do trabalho e controle social”.

Essa dinâmica se reflete na própria análise de Marx sobre como os sistemas de dominação evoluem para atender às necessidades do capital. Em O Capital, Marx escreve sobre a “compulsão muda das relações econômicas”, em que a exploração não precisa ser violenta ou excessiva – ela está incorporada na vida cotidiana, nas instituições e nas normas sociais herdadas. A casta, nesse sentido, funciona tanto como uma ideologia “superestrutural” quanto como um mecanismo concreto de exploração econômica.

Além disso, as campanhas Mandal-Mandir da década de 1990 expuseram os limites tanto do reducionismo de classe da esquerda quanto do liberalismo secular. Enquanto Mandal defendia uma reafirmação política da identidade das castas atrasadas, o movimento Mandir buscava unir os hindus das castas superiores sob uma bandeira majoritária. Presa entre esses opostos, a esquerda negligenciou a resposta com uma estratégia que pudesse unir a luta de classes com a luta contra a opressão de castas.

Debate Marx-Ambedkar

As ONGs liberais e os movimentos baseados em identidades preencheram o vazio deixado pelo recuo teórico e organizacional da esquerda após Mandal. Embora importantes para elevar as vozes subalternas, essas intervenções liberais às vezes não tinham uma crítica ao capitalismo e eram facilmente cooptadas pelo Estado e pelas agendas dos doadores. Portanto, uma política emancipatória forte na Índia precisa combinar a crítica marxista do capital com a crítica ambedkarita da casta.

Ainda assim, essa síntese exige uma reavaliação dramática de ambas as tradições. A interação maoista com Ambedkar, por exemplo, tem sido mais instrumental do que dialética, embora seja mais flexível do que a do CPI/CPI(M). As pessoas invocam Ambedkar não como um pensador que desafia o cerne da ortodoxia marxista, mas como um líder tático. “Acrescentar” Ambedkar a Marx sem mudar o centro teórico do movimento é repetir o erro histórico de subestimar a casta pela classe.

É preciso desenvolver um marxismo aberto que considere seriamente a co-constituição de casta, classe, gênero e religião. Como Anupama Rao demonstrou em The Caste Question, “a casta tem uma vida além da economia, mesmo quando interage com os processos econômicos; é uma forma de governança e um relacionamento eficaz”.

Ambedkar também nos apontou essa direção quando disse que “a democracia social significa um modo de vida que reconhece a liberdade, a igualdade e a fraternidade como princípios da vida”. (Debates da Assembleia Constituinte, 25 de novembro de 1949)

Esses não eram ideais abstratos, mas compromissos éticos necessários para uma política que se recusa a separar a dignidade da justiça. Não apenas a luta de classes, mas a transformação social ancorada na dignidade e no reconhecimento; a demanda do momento não é apenas a redistribuição, mas também as reparações. Como Ambedkar anunciou durante o Mahad Satyagraha, “Não estamos indo ao tanque apenas para beber sua água. Estamos indo para afirmar que nós também somos seres humanos”.

Para fundamentar ainda mais essa dialética no passado material da Índia, temos que olhar para o principal historiador marxista do país, D.D. Kosambi. Seu método se concentrava na interconexão entre as forças produtivas e as formações sociais, mas, ao contrário da maior parte da tradição ortodoxa do PC, Kosambi também reconhecia a perdurabilidade e a resiliência da casta ao longo dos séculos.

Em An Introduction to the Study of Indian History (1956), Kosambi não analisou a casta como uma forma de desvio religioso ou cultural. Em vez disso, ele levantou a hipótese de que a casta funcionava como um dispositivo de apropriação do excedente agrário no contexto do desenvolvimento histórico da Índia, servindo como um sistema de mediação que influenciava o acesso à terra, ao trabalho e à autoridade política. Na visão de Kosambi, a casta estava longe de ser uma relíquia estática do passado; ela representava uma formação social historicamente condicionada que evoluiu em resposta às mudanças nas condições materiais. Para Kosambi, “a casta é uma forma de classe em um modo de produção primitivo, uma maneira de lidar com as questões da divisão do trabalho. Uma vez que essa divisão se tornou fixa e hereditária, ela serviu para estabilizar e perpetuar a desigualdade”.

Kosambi não se sentia à vontade com a compreensão superestrutural da casta em si. Sua estrutura materialista enfatizava a necessidade de compreender como a casta foi reproduzida durante a hegemonia monástica budista, a consolidação bramânica, o Sultanato de Delhi e o colonialismo britânico – não em oposição a essas mudanças, mas adaptando-se a elas. Esse método de pesquisa tem muito em comum com a observação de Ambedkar sobre a casta como um sistema ideológico e institucional de dominação que é muito mais robusto do que as estruturas convencionais de classe.

Além disso, Kosambi também reconheceu que o capitalismo colonial não aboliu o sistema de castas, mas o reconstituiu de várias maneiras, utilizando-o para disciplinar e dividir o trabalho. Essa observação está de acordo com a preocupação de Ambedkar de que o colonialismo perpetua e institucionaliza a casta em vez de eliminá-la. As pesquisas etnográficas britânicas, os documentos de censo e o reconhecimento legal das identidades de casta não foram meros esforços burocráticos desapaixonados – eles solidificaram a casta como uma ordem social imutável, útil para a dominação e a tributação.

Kosambi também era realista quanto à função da religião na justificativa da injustiça de casta. Segundo ele, “a história da religião na Índia é a história da luta de classes em linguagem teológica”. Essa leitura tem relação direta com o entendimento de Ambedkar sobre o hinduísmo, não como uma fé pessoal, mas como uma doutrina de desigualdade graduada. O apelo de Ambedkar para “abandonar o hinduísmo” não era tanto teológico quanto político – um gesto de ruptura com a ordem de uma civilização baseada na hierarquia de castas.

Enquanto Ambedkar revelou a violência normativa da casta, Kosambi seguiu suas fontes materiais, mostrando como ela beneficiou a extração de excedentes e a dominação de classe. Essa é a essência de uma síntese radical: a casta como ideológica e econômica, moral e material, espiritual e estrutural. Suas respectivas críticas nos levam a questionar a possibilidade de alcançar o socialismo em uma sociedade em que a igualdade não faz parte de seu DNA cultural.

Os escritos de Kosambi também advertem indiretamente contra a leitura economicista da história que domina as tradições marxistas indianas. Embora ele não fosse um ambedkarita, sua receptividade à antropologia, arqueologia e filologia tornou sua abordagem excepcionalmente sintonizada com a particularidade da Índia. O ecletismo metodológico é necessário para construir o que Gramsci teria chamado de um projeto contra-hegemônico “nacional-popular” sintonizado com as contradições experimentais da sociedade indiana.

Além disso, a interpretação de Kosambi sobre a história como uma luta de classes ininterrupta, com alguns elementos indianos, nos adverte contra a adoção cega de categorias europeias. Seu apreço pelo trabalho de campo e pelas evidências, que o distingue dos marxistas de poltrona, reforça firmemente suas conclusões. Portanto, incorporar Kosambi ao debate Marx-Ambedkar traz especificidade material e profundidade histórica a ele.

Em nosso contexto atual, essa síntese deve abordar não apenas as atrocidades contra as castas ou a exploração capitalista isoladamente, mas sua lógica co-constitutiva. Com o Estado indiano sob o Hindutva tentando re-brahmanizar as instituições públicas, corporativizar a economia e comunalizar a política, uma estrutura marxista-ambedkarita combinada torna-se não apenas desejável, mas necessária.

Esse projeto não lutaria apenas pela redistribuição econômica, mas também pela transformação cultural, pela dignidade social e pela justiça epistêmica. Ele veria o fim da casta e da exploração como objetivos igualmente importantes. O materialismo de Kosambi, o radicalismo moral de Ambedkar e a crítica ao capital de Marx formam juntos a estrutura de um novo horizonte revolucionário.

Como Ambedkar expressou em Annihilation of Caste, “não se pode construir nada com base na casta. Não se pode construir uma nação. Não se pode construir uma moralidade”. Nas páginas finais de An Introduction to the Study of Indian History, Kosambi advertiu que “a história não pode ser escrita sem tomar partido”. Em nossa época, tomar partido de alguém implica não criar um binário entre Marx ou Ambedkar, mas avançar com ambos – em direção a um futuro em que a igualdade não seja apenas econômica, mas existencial.

Qualquer política revolucionária atual parte dessa ideia: a dignidade não é uma reflexão posterior à justiça econômica, mas sim sua condição principal. Uma esquerda verdadeiramente radical deve centralizar a ética de Ambedkar de transformação social em seu esforço. Isso implica enfrentar a casta como uma lógica constitutiva do Estado e da sociedade indianos, e não como um sinal de subdesenvolvimento. O desafio, portanto, não é escolher entre Ambedkar e Marx, mas estabelecer uma relação dialética entre eles, uma relação que não reduza a diferença, mas que a utilize a serviço da emancipação.

Qualquer tentativa séria de aniquilar o sistema de castas deve procurar ir além dos limites do parlamentarismo burguês. Como bem observou Vivek Chibber, “qualquer movimento Dalit, se quiser de fato atender às necessidades dos Dalits como um grupo, deve se ver como parte de um movimento de classe”.


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