O mundo está com Gaza: flotilhas, resistência e o renascimento do internacionalismo
Enquanto 13 ativistas brasileiros continuam presos nas masmorras sionistas, incluindo nossas companheiras Mariana Conti e Gabi Tolloti, publicamos esta análise sobre o movimento internacional de solidariedade ao povo palestino
O que Gaza expõe não é apenas a brutalidade da ocupação, mas também o esgotamento da ordem global que a sustenta. Hoje, o imperialismo opera menos por meio de colônias e mais por meio de muros, bloqueios, sanções e dívidas. Contra o ataque crescente desse aparato de fragmentação, somente o internacionalismo pode oferecer uma alternativa coerente. O internacionalismo, longe de ser um slogan nostálgico, surge novamente como a única política realista em um mundo organizado em torno do capital e da coerção.
A história avança através de momentos em que a imaginação moral da humanidade entra em conflito com a maquinaria do império. A saga das frotas de Gaza — embarcações civis que desafiam o bloqueio israelense em atos de solidariedade internacional — chegou mais uma vez a um momento crítico. Quando a Flotilha Sumud zarpou, levando alimentos, medicamentos e o princípio da dignidade humana, Israel respondeu não com diálogo, mas com força. Os barcos foram apreendidos, os ativistas presos e as águas internacionais foram mais uma vez transformadas num teatro de impunidade. No entanto, como em todas as agressões e narrativas imperiais, a repressão revela fraqueza em vez de força. Por cada navio interceptado, a ideia que ele encarna — de solidariedade global com os sitiados — viaja mais longe do que qualquer marinha pode alcançar.
Desde 2007, Israel impôs um bloqueio sufocante a Gaza, restringindo severamente a disponibilidade de alimentos, medicamentos e combustível para mais de dois milhões de residentes. O bloqueio foi intensificado após a vitória eleitoral do Hamas, transformando efetivamente a Faixa de Gaza em uma das prisões a céu aberto mais densamente povoadas do mundo. De acordo com a OCHA da ONU, mais de 80% da população de Gaza depende de ajuda humanitária, e as restrições às importações paralisaram hospitais, escolas e sistemas de saneamento. O direito internacional condena o bloqueio como punição coletiva — proibida pela Quarta Convenção de Genebra —, mas o cerco persiste com a cumplicidade ocidental.
Uma história de bloqueios e o movimento da flotilha
O mar tem sido há muito um corredor de consciência para Gaza. Em agosto de 2008, dois pequenos barcos do Movimento Free Gaza — o Liberty e o Free Gaza — foram os primeiros a chegar ao enclave desde 1967, quebrando o cerco naval com ativistas e jornalistas internacionais a bordo. O seu sucesso inspirou uma onda de missões de solidariedade que se seguiram. A mais trágica delas foi a do Mavi Marmara em 2010, quando comandos israelenses invadiram o navio em águas internacionais, matando dez ativistas e ferindo dezenas. O ataque provocou indignação mundial e tornou a “flotilha” sinônimo de resistência ao apartheid.
Desde então, mais de trinta missões desse tipo tentaram chegar a Gaza, incluindo o Women’s Boat to Gaza em 2016 e as múltiplas viagens da Freedom Flotilla Coalition. Essas viagens, sejam elas bem-sucedidas ou interceptadas, nos lembram que o mundo não aceita o cerco.
A Flotilha Sumud, cujo nome significa “perseverança” em árabe, dá continuidade a esse legado. Composta por várias pequenas embarcações navegando sob bandeiras escandinavas, irlandesas e sul-africanas, ela transportava uma tripulação internacional de ativistas, estudantes, médicos, jornalistas e marinheiros aposentados. Sua carga era em grande parte simbólica — kits médicos, pacotes de alimentos, livros e cartas de solidariedade —, mas a viagem tinha um objetivo maior: a recusa em normalizar a ocupação.
O lançamento da Sumud a partir de um porto europeu reacendeu o interesse pela resistência marítima. Os organizadores da Freedom Flotilla Coalition já anunciaram missões de acompanhamento para 2025, comprometendo-se a continuar “até que Gaza seja livre”. Para os participantes, a frota representa não um gesto pontual, mas o renascimento de uma consciência internacionalista — ecoando o espírito que outrora enviou brigadas para Espanha e voluntários para os movimentos anti-apartheid.
A máquina de repressão de Israel
A interceptação da frota pelo Estado israelense reflete um padrão consistente: agressão militar disfarçada de aplicação da lei, sustentada pelo patrocínio político e econômico ocidental. A apreensão de barcos civis em águas internacionais, a prisão e humilhação de ativistas desarmados e o assédio sistemático aos esforços de solidariedade revelam a arrogância do poder e sua dependência.
A impunidade de Israel repousa sobre suas alianças. Os Estados Unidos, seu principal patrocinador, fornecem cerca de 15% do orçamento militar de Israel por meio de ajuda e transferências de armas. Os Estados europeus também continuam a exportar tecnologia de dupla utilização, apesar das proibições formais. Entre 2014 e 2022, o governo indiano importou mais de US$ 1,5 bilhão em drones, mísseis e sistemas de vigilância israelenses. Os circuitos econômicos da ocupação se estendem muito além de Tel Aviv.
A história está repleta de experiências que nos mostram que mesmo o império mais poderoso não consegue silenciar permanentemente as vozes da consciência. A criminalização da solidariedade lembra precedentes coloniais — a prisão de ativistas anti-escravidão, a perseguição de voluntários internacionais na Espanha e a repressão de redes anti-apartheid. A história mostra que a repressão, quando dirigida contra o senso moral da humanidade, tende a universalizar a dissidência em vez de extingui-la.
Indignação global e o retorno da solidariedade em massa
A resposta mundial ao ataque contra a Sumud foi imediata. Governos da América Latina, África e partes da Europa condenaram a agressão de Israel e pediram o fim do bloqueio. O Ministério das Relações Exteriores da África do Sul invocou paralelos com sua luta contra o apartheid, enquanto Chile, Colômbia e Bolívia emitiram declarações conjuntas de protesto.
No entanto, a ressonância mais profunda veio de baixo — dos movimentos, não dos ministérios. Sindicatos, grupos estudantis e grupos religiosos organizaram vigílias, boicotes e marchas em todos os continentes. Foi animador ver ações da classe trabalhadora em apoio a Gaza, como na Itália e na Espanha, onde os trabalhadores portuários se recusaram a manusear navios de carga israelenses. Em Londres, milhares se reuniram em frente à Downing Street exigindo sanções. Em todo o continente latino-americano, as mobilizações de protesto combinaram demandas por um cessar-fogo em Gaza com críticas à austeridade neoliberal em casa, ligando a violência imperial no exterior à exploração em casa.
Essas mobilizações revelam uma nova fase na política global: uma fase em que a moralidade pública diverge cada vez mais da política estatal. As redes de solidariedade que se formam em resposta ao cerco de Gaza ecoam a energia moral que outrora animou os movimentos contra a guerra e o apartheid. Elas também sinalizam que o internacionalismo — há muito descartado como ultrapassado — está retornando como uma prática viva, especialmente entre os movimentos juvenis e operários.
Vozes palestinas e o significado da resistência
Dentro de Gaza, ativistas e grupos da sociedade civil receberam a frota como uma tábua de salvação material e moral. Declarações de organizações como o Centro Al-Mezan para os Direitos Humanos e o Centro Palestino para o Diálogo Humanitário expressaram gratidão pela iniciativa, enquadrando-a como uma extensão da firmeza palestina (sumud). “Esses barcos nos lembram que o mar ainda traz esperança”, declarou uma declaração, “e que a liberdade não pode ser colocada em quarentena”.
O simbolismo da frota reside em transformar o isolamento de Gaza em uma responsabilidade global compartilhada. Cada barco interceptado amplifica o direito dos palestinos de viver, retornar e resistir à desumanização. O desafio da Flotilha Sumud, assim como os protestos contínuos em Rafah e Khan Younis, expressa a mesma lógica ininterrupta de resistência: que existir com dignidade sob ocupação é, por si só, uma forma de revolta.
A divisão global – Estados e povos
A crise da frota também apontou de forma gritante o fosso crescente entre os governos e os seus cidadãos. As classes dominantes ocidentais – entrelaçadas com lobbies de armas e alianças ideológicas – permanecem firmes em seu apoio a Israel. No entanto, nas universidades, sindicatos e igrejas, a opinião pública está mudando. Pesquisas no Reino Unido e nos Estados Unidos mostram agora que a maioria é a favor de um cessar-fogo e questiona seu apoio incondicional a Israel.
Enquanto isso, o Sul Global está afirmando uma independência moral e política nunca vista desde a década de 1970. O processo movido pela África do Sul contra Israel no Tribunal Internacional de Justiça e o amplo apoio que recebeu de países da África, América Latina e Ásia mostram como a memória anticolonialista perdura. Milhões de pessoas nessas regiões percebem a causa palestina não como uma questão estrangeira, mas como algo que reflete suas próprias histórias de expropriação. Hoje, ela carrega o mesmo peso moral que outrora tiveram as lutas antiapartheid e anti-imperialistas.
A mudança da Índia da solidariedade para a cumplicidade
Infelizmente, nesse ressurgimento global da solidariedade, a Índia se destaca como uma trágica exceção. Enterrando sua própria história de liderança na solidariedade anticolonial e não alinhada, o Estado indiano moveu-se decisivamente em direção ao alinhamento com Israel. A mudança começou na década de 1990, mas se acelerou sob o regime de Modi, transformando-se de uma relação diplomática em uma parceria ideológica.
O sionismo e o Hindutva compartilham um vocabulário de supremacia étnico-religiosa, nacionalismo militarizado e islamofobia. A Índia é agora o maior comprador de armas israelenses depois dos Estados Unidos, respondendo por cerca de 45% das exportações de defesa de Israel. Joint ventures na fabricação de drones, segurança cibernética e vigilância de fronteiras se expandiram rapidamente. As tecnologias de ocupação na Palestina encontram réplicas ao longo das próprias fronteiras militarizadas da Índia e nos sistemas de vigilância da Caxemira.
Igualmente impressionante é o silêncio moral. Tanto o partido governante BJP quanto os principais partidos da oposição deixaram de condenar as ações de Israel em Gaza. Temendo serem rotulados de “antipatriotas”, até mesmo comentaristas liberais e seculares, antes tão expressivos, se calaram. A mídia indiana, inundada por comentários pró-Israel, reflete o alinhamento autoritário entre o sionismo e o Hindutva.
Esse silêncio contrasta fortemente com o passado da Índia. O governo da era Nehru se opôs à adesão de Israel à ONU, e a política externa inicial da Índia vinculava consistentemente a liberdade anticolonial interna à autodeterminação palestina. Essa herança, embora tênue, sobrevive hoje apenas nas declarações da esquerda e em protestos esparsos nas ruas.
A esquerda resiste — e precisa se renovar
Ainda assim, a resistência persiste. Em campi e cidades indianas, grupos pequenos, mas determinados — sindicatos estudantis, partidos e organizações de esquerda, sindicatos de trabalhadores e coletivos feministas — organizaram comícios, palestras e campanhas de arrecadação de fundos para Gaza. Seu número ainda é modesto, mas seu significado é imenso. Essas reuniões, por menores que sejam, representam o espírito de uma tradição mais antiga e nobre — o espírito do internacionalismo e do anti-imperialismo. Cada encontro reafirma o princípio de que o internacionalismo não é uma abstração, mas uma prática enraizada na solidariedade. Contra a escuridão abrangente da uniformidade, eles mantêm viva a ligação essencial que une Bhagat Singh e Ho Chi Minh, Calcutá e Gaza, greves de mineiros e frotas da liberdade.
Globalmente, a esquerda enfrenta sua crise. Décadas de reestruturação neoliberal, a fragmentação do trabalho e a ascensão da política baseada na identidade enfraqueceram o poder de classe organizado. No entanto, a tragédia de Gaza catalisou algo novo: o ressurgimento de um internacionalismo moral e baseado em classes. Trabalhadores portuários recusando embarques de armas, profissionais de saúde denunciando bombardeios a hospitais e artistas boicotando intercâmbios culturais mostram como a solidariedade pode mais uma vez assumir forma material.
Para a esquerda indiana, este momento exige reconectar as lutas internas com as globais. Os agricultores que resistem à apropriação de terras pelas empresas em Chhattisgarh, os adivasis que se opõem à mineração em Odisha, os trabalhadores que se organizam nos corredores industriais e as minorias que enfrentam a violência da maioria — todos habitam a mesma dialética de poder e resistência que o povo de Gaza. Apoiar a Palestina não é demonstrar caridade; é reconhecer a lógica comum de expropriação que define nossa era.
O internacionalismo, longe de ser um slogan nostálgico, surge novamente como a única política realista em um mundo organizado em torno do capital e da coerção.
Um internacionalismo renovado
O que Gaza expõe não é apenas a brutalidade da ocupação, mas também o esgotamento da ordem global que a sustenta. O imperialismo hoje opera menos por meio de colônias e mais por meio de muros, bloqueios, sanções e dívidas. Contra o ataque crescente desse aparato de fragmentação, apenas o internacionalismo pode oferecer uma alternativa coerente.
A frota, nesse sentido, é uma metáfora da política que a esquerda deve redescobrir; devemos assumir riscos coletivos para a emancipação coletiva. Ela demonstra que a solidariedade é uma arma mais duradoura do que drones e postos de controle. Ao unir as lutas dos trabalhadores, estudantes, camponeses e deslocados através das fronteiras, a esquerda pode novamente articular um projeto global de libertação.
Um apelo à ação
O bloqueio de Gaza terminará um dia — assim como todos os bloqueios acabam terminando. A pergunta que a história fará é: quem se manteve firme quando os mares estavam agitados? O apelo agora é por uma maior mobilização, uma solidariedade mais profunda e um internacionalismo renovado da classe trabalhadora.
Que a consciência da Índia, outrora um farol da solidariedade anticolonial, desperte novamente. Que sindicatos, estudantes e cidadãos exijam o fim da cumplicidade com o apartheid. Levantem o embargo. Parem com as mortes. Apoiem Gaza — não como um ato de caridade, mas como um ato de justiça.
Apoiar Gaza é defender o direito de todos os povos de respirar livremente, resistir ao império e recuperar o mundo da lógica do cerco. A geografia moral da humanidade hoje começa, mais uma vez, nas costas de Gaza.