Diário de Classe #2 | A sala de professores ou o encontro dos cansados
Um novo tempo é necessário. Um tempo de volta às discussões políticas das intencionalidades pedagógicas e sobre as ações das secretarias e gestores dessa educação em tempos de tecnologia, desmonte e sobrecarga
A sala dos professores de qualquer lugar do Brasil em novembro é um lugar de encontro. Encontro daqueles que, na verdade, são aquelas. As professoras são maioria. Passado o dia 15/10 e com um ano de trabalho já intenso e chegando às últimas semanas, todos os assuntos passam pelo cansaço e pelos comentários de colegas ausentes, ou pior, doentes. Uma frase atribuída à educadora Tina H. Boogren se popularizou nas redes sociais ao afirmar que “professores tomam mais decisões por minuto do que um neurocirurgião”. O complemento, em geral destinado às professoras, diz: “é por isso que você chega em casa tão exausta”. Planejar tarefas, organizar espaços pedagógicos, ministrar conteúdos, avaliar, interagir e conhecer os estudantes são tarefas colocadas cotidianamente para essas professoras e professores nas escolas (e fora delas), e são capazes de exaurir até o profissional mais preparado.
“A Sociedade do Cansaço”, de Byung-Chul Han, um livro de poucas páginas se tornou um clássico contemporâneo por abordar como a realidade atual do sistema capitalista implementa uma lógica de performance e de busca de produtividade internalizada nos indivíduos da classe trabalhadora. Mais que isso, como essa busca incessante de resultados leva a mais horas trabalhadas e, consequentemente, a um cansaço que na verdade é adoecimento físico e mental.
Mas que performance estamos tendo? Em 2025, por força da Lei 15.100, houve uma diminuição do problema do uso de celulares pelos estudantes, mas a atenção às atividades e a concentração ainda estão alteradas depois da consolidação da “era das telas” e dos cliques por segundo. Nossa atuação profissional tem passado por enfrentar – esse é o verbo mais adequado -, nas escolas, o colapso de políticas públicas de educação, de assistência social e de saúde em tempos de terceirização. Tudo estoura nas salas de aula. Da falta de emprego e moradia à violência de gênero presenciada em casa. Como seguir alheios ao caos e seguir ensinando matemática, história ou ciências?
Outro fator que influencia no nosso cansaço/adoecimento é o controle do trabalho docente, cada vez mais presente nas redes públicas e privadas. As plataformas das secretarias de educação cobram chamadas em tempo real e planejamentos de aulas com currículos padronizados. Neste cenário, não importa onde estamos, as aulas devem ser iguais em todas as escolas, a humanidade das relações sociais nas aulas e o processo de cada estudante é um detalhe sem atenção nessa lógica das cartilhas 2.0.
As formações político-pedagógicas e a valorização docente por premiação também reforçam essa lógica capitalista. As primeiras, ao substituir o debate por cartilhas encomendadas com fundações privadas, ao substituir a exposição dos/as pesquisadores/as da educação por mentorias de personalidades empreendedoras sem qualquer vínculo com a educação e ao substituir os encontros formativos presenciais por EaD assíncrona, entre outros exemplos. A segunda, ao “gamificar” a atividade dos/as professores/as, que progridem financeiramente na carreira ao atingir metas sequer debatidas pelos/as mesmos/as, onde vale apenas o objetivo (a meta) em detrimento do subjetivo (a formação humana). Essa formação e essa valorização aprofundam a responsabilização individual do/a professor/a pelo seu sucesso e o da educação, exaurindo esses/as e adoecendo-os/as, porque é uma tarefa impossível.
O adoecimento também acontece porque o trabalho docente não é apenas o de administrar os conteúdos. Cada vez mais, o trabalho de cuidado vem se tornando explícito e tomando um tempo e espaço maiores na tarefa docente. O cuidado realizado pelas/os professoras/es em todas as etapas de ensino faz parte do trabalho não-pago das professoras e professores. O sistema capitalista, assim, se vale deste trabalho realizado de maneira gratuita, “por amor”, para extrair ainda mais lucros sobre a sua mercadoria mais preciosa, a força de trabalho. O cuidado realizado pelos docentes e não-pago pelo capital desobriga o Estado e a iniciativa privada de promover este cuidado de maneira profissional. O colapso dos sistemas de saúde e de assistência social, como dito antes, estoura na escola, pois é lá que “as professoras cuidam”. Sim, cuidamos. Mas seria esse o nosso papel? O que seria do sistema hoje se todos os profissionais da educação resolvessem realizar apenas as tarefas para as quais são remunerados? A economia do Estado, que está deixando de proporcionar o cuidado profissional, devidamente remunerado, se dá ao sobrecarregar as/os docentes nas salas de aula. E é por isso que estamos tão exaustos.
Um novo tempo é necessário. Um tempo de volta às discussões políticas das intencionalidades pedagógicas e sobre as ações das secretarias e gestores dessa educação em tempos de tecnologia, desmonte e sobrecarga. Nós, que participamos dos movimentos sociais da educação, devemos formular uma crítica que desmascare e proponha a superação, via formação político-pedagógica, dessa lógica de responsabilização e valorização individuais que, na verdade, é uma forma de desumanizar a educação
Educadores/as do mundo, uni-vos/as!