Dia da Consciência Negra: precisamos falar da fome como projeto de exclusão racial no Brasil
Captura-de-Tela-2025-11-21-às-09.58.48-1

Dia da Consciência Negra: precisamos falar da fome como projeto de exclusão racial no Brasil

A fome ainda é o principal obstáculo e o limitador para qualquer perspectiva mínima de vida melhor e mais estruturada para pessoas negras no Brasil

Adriano Mendes 21 nov 2025, 14:56

Nesse Dia da Consciência Negra, precisamos falar daquilo que historicamente é o maior desafio das pessoas mais pobres e negras no país: ter o que comer. O relatório da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PnadC) do IBGE, de 2025, revelou que 24,2% dos domicílios no Brasil ainda vivem em insegurança alimentar.

Em um cálculo simples, podemos deduzir que esse percentual de domicílios representa mais de 50 milhões de pessoas, sendo que 70,4% dos domicílios são conduzidos por pessoas negras, a maioria por mulheres. Esse é só um retrato do que é o Brasil, e é curioso que a publicação do site da Secretaria Geral da Presidência da República sequer cite a palavra “negro” ou “preto” ao informar esses dados. A fome tem cor, e qualquer política pública que não tenha isso como elemento central estará fadada ao fracasso.

A fome ainda é o principal obstáculo e o limitador para qualquer perspectiva mínima de vida melhor e mais estruturada para pessoas negras no Brasil. Para muitas pessoas, ainda vivemos como se fosse 14 de maio de 1888, o dia seguinte à abolição formal, em que negros e negras não tinham garantias mínimas de se manter vivos, e estavam à própria sorte sobrevivendo com muita dificuldade e resistência, porém, deixados a morrer, sendo encarcerados ou mesmo sendo mortos diretamente. Estruturalmente quase nada mudou.

Esse cenário não é acidental, ao contrário, mostra como o Brasil organizou de forma intencional suas relações de trabalho após a abolição formal da escravidão, pois em termos materiais, a abolição pouco significou para os “libertos” que seguiram lutando por liberdade. Por isso, precisamos entender isso como um projeto, que mesmo na perspectiva de direitos civis mínimos de uma sociedade liberal, não teve lugar para negros e negras. Nas relações de classe, em que o trabalhador tem sua força de trabalho explorada pelo patrão, o negro ocupa o lugar mais precarizado (quando consegue).

Lélia Gonzalez interpreta, pela perspectiva racial, inclusive a ideia de exército industrial de reserva exposto por Marx em O capital, apontando que as relações capitalistas brasileiras produziram simultaneamente um exército de reserva funcional (pessoas sem trabalho utilizadas nos momentos de urgente necessidade no capitalismo) e outro não funcional, este último composto majoritariamente pela população negra (Gonzalez, 2020, p. 35).

Lélia usou a categoria Massa Marginal, originalmente discutida também por outros autores, para explicar essa mão de obra de pessoas negras que é utilizada pelo capitalismo de forma marginal ao mercado formal, em que o negro ocupa os trabalhos mais precarizados e instáveis. Essa configuração expressa a continuidade estrutural entre a exploração escravista e as formas atuais de superexploração da força de trabalho de pessoas negras, mantendo praticamente as mesmas funções (empregadas domésticas, garis, ambulantes, entregadores, babás, cortadores de cana, catadores, ajudantes de pedreiro, vendedores de rua etc.), com remuneração inferior ao necessário para sua subsistência e sem nenhuma proteção.

Esse continua sendo o lugar do negro, a vida material da população negra, em que milhões têm a fome como principal desafio a ser superado, e lutam todos os dias para pôr um prato de comida na mesa como única refeição do dia, em condição de ausência de direitos, em submoradias, em condições precárias de saúde, educação, saneamento e extrema violência, condição essa já retratada nos mínimos detalhes por Carolina Maria de Jesus em seus diários, onde saia todos os dias para conseguir alguns cruzeiros, sempre para o hoje, nunca tinha o amanhã.

Por fim, os dados sobre fome e insegurança alimentar são os mais diversos e poderíamos aprofundar com faixa etária, gênero etc. Porém minha intenção foi demarcar que a fome ainda segue sendo nossa histórica condição limitante. Que este Dia da Consciência Negra, que agora é feriado nacional, nos lembre que a luta pelo mínimo, por direitos básicos, como comer, morar e viver com dignidade, é, antes de tudo, uma luta antirracista que precisa ser tomada por todos e todas os que almejam alguma transformação social. Raça e classe são partes indissociáveis e indispensáveis para qualquer perspectiva revolucionária.

Referências

GONZALEZ, Lélia. As relações raciais no Brasil após a abolição. In: RIOS, Flávia; LIMA, Márcia (org.). Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

MARX, Karl. Produção progressiva de uma superexploração relativa ou exército industrial de reserva. In: O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 704 a 716.

https://www.gov.br/secretariageral/pt-br/noticias/2025/outubro/brasil-reduz-a-inseguranca-alimentar-em-mais-de-2-2-milhoes-de-domicilios

https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/44728-mais-de-dois-milhoes-de-lares-saem-da-inseguranca-alimentar-em-2024


TV Movimento

Encontro Nacional do MES-PSOL

Ato de Abertura do Encontro Nacional do MES-PSOL, realizado no último dia 19/09 em São Paulo

Global Sumud Flotilla: Por que tentamos chegar a Gaza

Importante mensagem de três integrantes brasileiros da Global Sumud Flotilla! Mariana Conti é vereadora de Campinas, uma das maiores cidades do Brasil. Gabi Tolotti é presidente do PSOL no estado brasileiro do Rio Grande do Sul e chefe de gabinete da deputada estadual Luciana Genro. E Nicolas Calabrese é professor de Educação Física e militante da Rede Emancipa. Estamos unindo esforços no mundo inteiro para abrir um corredor humanitário e furar o cerco a Gaza!

Contradições entre soberania nacional e arcabouço fiscal – Bianca Valoski no Programa 20 Minutos

A especialista em políticas públicas Bianca Valoski foi convidada por Breno Altman para discutir as profundas contradições entre a soberania nacional e o arcabouço fiscal. Confira!
Editorial
Israel Dutra | 10 nov 2025

A COP-30 no espelho da situação nacional

A realização da COP 30 na Amazônia coloca novamente a emergência climática no centro do debate público no Brasil
A COP-30 no espelho da situação nacional
Publicações
Capa da última edição da Revista Movimento
A ascensão da extrema direita e o freio de emergência
Conheça o novo livro de Roberto Robaina!
Ler mais

Podcast Em Movimento

Colunistas

Ver todos

Parlamentares do Movimento Esquerda Socialista (PSOL)

Ver todos

Podcast Em Movimento

Capa da última edição da Revista Movimento
Conheça o novo livro de Roberto Robaina!

Autores