Acordo Argentina–EUA: contrapartida do resgate
Quase cem anos depois, a Argentina volta, pelas mãos do presidente Milei, a encadear seu destino ao de uma potência em declínio
Via VientoSur
Nosso país caminha para conformar uma aliança estratégica com os EUA, à qual se subordina incondicionalmente, que aprofundará as assimetrias já existentes e condicionará qualquer governo que suceda o atual.
Quase cem anos depois, a Argentina volta, pelas mãos do presidente Milei, a encadear seu destino ao de uma potência em declínio. Assim foi no início da década de 1930, quando o presidente Julio Argentino Roca assinou o acordo Roca–Runciman com a Grã-Bretanha, a potência declinante daquele período histórico. Assim ocorre agora com a declaração conjunta sobre “Comércio recíproco e investimentos” entre a Argentina e os EUA, a potência declinante deste período, que se retrai sobre seu quintal, tentando blindá-lo frente à ascensão da China.
Algo mais que um marco geral
A declaração que conhecemos graças a um comunicado unilateral do país do norte constitui um “marco geral” sem maiores precisões (os acordos seriam divulgados por partes). No entanto, de seu texto é possível deduzir que se trata de uma relação entre governos, que redefine o papel do Estado, que busca dar garantias aos investidores norte-americanos enquanto abre nossos mercados para eles, ao mesmo tempo em que concede livre acesso ao fluxo de informação digital.
Em apertada síntese: nosso país dará preferências a numerosas exportações norte-americanas de produtos industriais (entre eles medicamentos, químicos, tecnológicos, maquinários e automotores), ao ingresso de gado vivo e a uma ampla gama de produtos agropecuários. Para isso, eliminar-se-ão barreiras para-tarifárias e serão adotadas nossas normas segundo os critérios e regulamentos técnicos dos EUA, incluindo um novo regime de propriedade intelectual. Em contrapartida, os EUA eliminariam tarifas sobre “certos recursos não disponíveis e produtos não patenteados para aplicações farmacêuticas”. Como se vê, não há muita reciprocidade nessa declaração.
“Recuperando” a América Latina
A declaração conjunta constitui o último elo (pelo menos até agora) de uma cadeia de decisões que incluem o inédito salvamento [resgate] do Tesouro dos EUA (intervindo diretamente em nossa praça cambial), o swap de 20 bilhões de dólares (que já teria sido ativado), a possibilidade de um crédito contingente pelo mesmo montante sustentado por um pool de bancos (liderados pelo JP Morgan) e a criação de um fundo no qual participariam o Tesouro dos EUA e organismos multilaterais que interviriam diante de qualquer possibilidade de default da dívida argentina.
Esse encadeamento não é apenas resultado da decisão do presidente Trump de proteger seu principal aliado na região e bloquear a ascensão da China, mas faz parte de uma estratégia dos EUA para seu “quintal”, que havia sido negligenciado durante décadas após os fracassos da Aliança para o Progresso (1961) e da ALCA (1994) (de fato, este acordo foi divulgado junto com o dos outros três países da região). O secretário Scott Bessent disse sem eufemismos: “Estamos recuperando a América Latina através de nossa liderança econômica, não haverá balas”. Claro, nada disse sobre o desdobramento naval diante das costas da Venezuela.
Novo ordenamento do comércio global
Sob a presidência de Trump, os EUA estão redesenhando o comércio global, deixando para trás as normas da OMC e os acordos consensuados entre países para passar ao modo de “imposição negociada”, no qual as tarifas não apenas articulam o comércio internacional segundo os interesses norte-americanos, como também são uma arma contra determinadas medidas políticas (por exemplo, como sanção à prisão de Bolsonaro no Brasil). Tudo pode ter um caráter provisório, circunstancial e arbitrário, criando um estado de caos que Trump administra para, finalmente, negociar.
Tratar-se-ia de uma nova ordem baseada no comércio e nos investimentos, cuja orientação é determinada pela necessidade de reduzir o enorme déficit comercial e de conta-corrente dos EUA. Estão em jogo a necessidade de incrementar suas exportações e direcionar um fluxo de investimentos a áreas consideradas estratégicas pelo país do norte.
A Argentina ocuparia um lugar subordinado nessa nova ordem. O resgate foi obrigatório para garantir a estabilidade econômica do governo Milei como um primeiro passo imprescindível para depois abrir as possibilidades de uma complementação parcial das economias dos dois países. É isso que subjaz à declaração conjunta. As novas tecnologias tornam possível essa complementação, já que a Argentina possui recursos estratégicos (minerais críticos, terras raras) de que os EUA necessitam. É nesse plano que entram tanto as reformas Trabalhista e Tributária (exigidas pelo FMI e pelo Círculo Vermelho) para reduzir custos e diminuir a carga tributária sobre as empresas, quanto a modificação da Lei de Glaciares (exigida pelos governadores de várias províncias) para redefinir a área “periglacial”, habilitando assim investimentos hoje bloqueados por limites ambientais. Como se sabe, os recursos hidrocarboníferos e minerais são provinciais, mas é uma lei nacional que determina as proteções ambientais.
Em definitiva, essa declaração conjunta é um marco geral, caracterizado pelo sigilo das negociações, sem nenhum tipo de consulta aos setores que seriam afetados. Seria o prólogo de uma aliança estratégica a consolidar, que tende a cristalizar uma relação cuja assimetria se aprofundará e que avançará na desindustrialização do país com as consequências sociais previsíveis. Será necessário conhecer a letra miúda para determinar se esses acordos devem ou não passar pelo Congresso Nacional.
Assim como com a reforma trabalhista, é necessário convocar a mais ampla mobilização para rejeitar esse acordo de submissão e subordinação ao império que condicionará qualquer governo que suceda o atual.