Retrospectiva 2025: o colapso em aceleração
A aprovação do PL da Devastação autorizou o desmonte do licenciamento ambiental e expôs (mais uma vez) a convergência entre agronegócio, mineração e capital fóssil e o Congresso Nacional
Foto: Agência Brasil
O ano de 2025 ficará registrado como o momento em que o Congresso Nacional decidiu levar às últimas consequências a tramitação do Projeto de Lei 2.159/2021, rebatizado por ambientalistas, cientistas e movimentos sociais como PL da Devastação. Apresentado originalmente em 2004 e ressuscitado em 2021 sob o argumento de “modernizar” o licenciamento ambiental, o projeto ganhou tração definitiva neste ano, impulsionado pela maioria ruralista na Câmara e no Senado e pela pressão direta de setores do agronegócio, da mineração, das empreiteiras e do capital fóssil – tudo isso às vésperas da COP-30, sediada pelo Brasil.
A ofensiva legislativa começou ainda no primeiro semestre, quando a Câmara dos Deputados aprovou um texto-base que flexibilizava drasticamente o licenciamento, reduzindo o papel regulador do Estado e ampliando mecanismos de autodeclaração por parte dos empreendedores. O texto seguiu para o Senado, onde encontrou terreno fértil: a Casa é hoje dominada por parlamentares ligados à Frente Parlamentar da Agropecuária, responsável por impor um rito acelerado à proposta. Em maio, o Senado aprovou o projeto, abrindo caminho para que se consolidasse o maior desmonte da política ambiental desde a criação da Política Nacional do Meio Ambiente, em 1981.
O governo Lula tentou conter parte dos estragos por meio de vetos presidenciais, mas a correlação de forças no Congresso se mostrou desfavorável. Menos de uma semana após o encerramento da COP30, quando o Brasil discursava internacionalmente sobre liderança climática, deputados e senadores derrubaram 56 dos 63 vetos presidenciais, restaurando o núcleo duro do PL da Devastação. Para o Observatório do Clima, a decisão “mata o licenciamento ambiental no Brasil” e institucionaliza uma lógica de risco permanente.
Entre os pontos mais graves restabelecidos estão o licenciamento por adesão e compromisso (LAC), que permite que empreendimentos de médio impacto sejam licenciados apenas com base em informações autodeclaradas; a fragmentação das regras ambientais entre estados e municípios, estimulando uma corrida por normas mais frouxas; o enfraquecimento da proteção da Mata Atlântica; a exclusão da Funai e da Fundação Palmares de processos de licenciamento em áreas ainda não homologadas; e a liberação de licenças para produtores com Cadastro Ambiental Rural irregular, beneficiando diretamente a grilagem e a especulação fundiária.
Como se não bastasse, o Congresso avançou ainda mais ao aprovar, em rito relâmpago, uma Medida Provisória que criou a Licença Ambiental Especial (LAE) – um mecanismo “expresso” para liberar, em até um ano, megaempreendimentos de alto impacto, como hidrelétricas na Amazônia, perfurações de petróleo e obras rodoviárias historicamente associadas ao avanço do desmatamento, como a BR-319. O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), admitiu que a votação fazia parte de um acordo político com a Casa Civil. Segundo o Observatório do Clima, a MP foi apresentada como um “presente” ao senador, na tentativa de preservar os vetos presidenciais – que, ainda assim, acabaram derrubados. O resultado foi uma derrota dupla do governo: política e ambiental.
A tramitação do PL da Devastação escancarou quem ganha e quem perde com o novo marco legal. Ganham o agronegócio predatório, as mineradoras, as petroleiras e grandes empreiteiras, agora livres de estudos de impacto robustos e de controle social efetivo. Perdem as populações mais vulneráveis, os povos indígenas e quilombolas, os trabalhadores urbanos e rurais e as futuras gerações, que já convivem com eventos climáticos extremos cada vez mais letais. Dados do Inmet, do MapBiomas, do MCTI e da Confederação Nacional de Municípios mostram que o Brasil vive uma escalada sem precedentes de ondas de calor, secas, enchentes e incêndios, com bilhões de reais em prejuízos e milhares de mortes evitáveis.
É nesse contexto que a reação da comunidade científica ganhou centralidade. À frente do Laboratório de Gases de Efeito Estufa do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), a climatólogo Luciana Gatt preparou uma nota técnica que foi anexada à apelação do Observatório do Clima e da bancada do PSOL ao Supremo Tribunal Federal STF), contra o PL.
“A comunidade científica não pode ficar calada quando está vendo que as mudanças climáticas já chegaram. Já tem muita gente morrendo”, afirmou. “Cientista é cidadão do mundo. A sociedade me paga para eu viver estudando e o mínimo que eu posso fazer é voltar para a sociedade e dizer o que eu aprendi”.
A especialista – uma das vozes mais potentes sobre a relação entre a destruição ambiental e as mudanças climáticas no Brasil – analisa que, após o governo Bolsonaro acelerar o desmatamento, “o Congresso assumiu a tarefa de seguir acelerando as mudanças climáticas”. E é categórica ao afirmar que o Congresso ignora consensos científicos básicos:
“O desmatamento causa perda de chuva, aumento de temperatura e aceleração dos eventos extremos. Mas a gente hoje tem um problema na ciência que são ou cientistas de outras áreas ou pessoas que trabalham em ambientes científicos, que são, na verdade, negacionistas da ciência que atingem uma determinada vantagem pessoal indo contra tudo que a grandíssima maioria dos pares concordam. Temos mais de 95% da comunidade científica assumindo todas as evidências, mas você vê um ou outro resolvendo falar contra. O agronegócio, que quer autorização para desmatar, obviamente que vai adorar o discurso desse falso cientista”, diz.
Os riscos
A pesquisadora alertou que o Brasil caminha rapidamente para um cenário de catástrofe climática, marcado pelo aumento exponencial de eventos extremos, destruição generalizada e crescimento acelerado do número de mortes. Segundo ela, não se trata mais apenas de evitar o agravamento da crise, mas de reconhecer que as medidas atualmente propostas são insuficientes diante da gravidade da situação. Nesse sentido, criticou a meta do governo federal de zerar o desmatamento apenas em 2030, classificando-a como tardia e ineficaz, já que a perda acumulada de florestas compromete de forma irreversível o equilíbrio climático. Gatti ainda comparou os períodos recentes para ilustrar o impacto direto das políticas ambientais.
“Antes de Bolsonaro, até 2018, o número de mortes por eventos extremos no Brasil significava entre 60 e 70. Em 2019, entra Bolsonaro com Ricardo Salles desmatando geral. Acabou a “fábrica de multas do Ibama”, desmatamento generalizado no Brasil inteiro: o número de mortes salta para 300 por evento extremo de chuva. Veja a resposta imediata. Porque cada árvore participa do equilíbrio climático. Como? A árvore pega a água do solo e joga na atmosfera na forma de vapor. Para acontecer isso com a água, você precisa dar energia do calor para ela. A colocamos no fogo para ela ferver, você tem que dar calor para ela. E a árvore, quando está fazendo isso, está roubando do ambiente a energia do calor, que é a energia infravermelha, que é a energia das mudanças climáticas, do aquecimento global, que é a energia que o gás de efeito estufa segura aqui”, explicou.
Para a pesquisadora, os danos que a aprovação do projeto tende a provocar são irreversíveis: “A mudança climática é como uma bola de neve descendo uma montanha. Um desequilíbrio provoca outro, e outro. Não tem recuperação”.
As provas
Os números corroboram o alerta. Estudos do Inmet indicam que 2024 foi o ano mais quente já registrado no Brasil desde 1961, com aquecimento médio mais intenso justamente nas regiões mais devastadas pelo agronegócio. Relatórios do MCTI e do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas apontam que, mantida a trajetória atual, o país pode enfrentar aquecimentos superiores a 4°C ainda neste século, tornando regiões inteiras inabitáveis. Como lembra Gatti, “isso literalmente significa um decreto de morte para uma parcela grande da população”, sobretudo crianças, idosos e mulheres pobres, que não têm acesso a condições mínimas de proteção contra ondas de calor.
A retrospectiva de 2025 deixa claro que o PL 2.159/2021 não é um erro técnico nem um excesso isolado: trata-se de uma escolha política consciente, alinhada a interesses econômicos de curto prazo e profundamente desconectada da realidade climática do país. Ao acelerar sua tramitação e desmontar o licenciamento ambiental, o Congresso assumiu o papel que antes era do negacionismo explícito: o de empurrar o Brasil para mais desmatamento, mais calor, mais mortes. Como resume Luciana Gatti, diante desse cenário, resta à sociedade “catar a bandeira e lutar”, porque o que está em jogo já não é apenas o meio ambiente, mas a própria sobrevivência coletiva.