“Calibã e a Bruxa” e uma ótica marxista e interseccional do feminismo
Federici demonstra o quanto a dominação das mulheres e o domínio do Estado sobre nossos corpos estão intrinsecamente relacionados com o capitalismo.
Tantos são os diferentes olhares feministas quanto são diferentes as mulheres. Não há e nem pode haver um único feminismo. A história da luta das mulheres é uma história de várias lutas.
Em “Mulher, Raça e Classe” Angela Davis conta que dez anos antes da primeira convenção pelos direitos das mulheres, ocorrida em 1848, uma mulher negra já era a primeira oradora nascida nos Estados unidos a se se dirigir a plateias formadas por homens e mulheres. Seu nome era Maria Stewart e aos ataques contra o seu direito de ministrar palestras ela respondeu: E daí que sou uma mulher?
Isso foi em 1827.
Mas a declaração de Sêneca Falls, resultante desta primeira convenção, foi redigida por uma dona de casa de classe média que ignorava a situação das mulheres trabalhadoras que já estavam em luta pelos seus direitos. Não havia nenhuma mulher negra na audiência e os documentos da convenção não fazem qualquer referencia a elas. Até mesmo as sociedades antiescravagistas femininas (brancas) ignoravam a questão específica da mulher negra.
Alguns anos depois, em 1851, um discurso feito por Sojourner Truth, uma mulher negra, ficou famoso por expor o viés de classe e o racismo do movimento de mulheres da época. Suas palavras ainda inspiram a luta feminista antirracista até hoje.
As líderes brancas do movimento pelos direitos das mulheres nos Estados Unidos não suspeitavam que a escravização da população negra do sul, a exploração econômica da mão de obra do norte e a opressão social das mulheres estivessem relacionadas de forma sistemática.
O livro de Silvia Federici, “Calibã e a Bruxa”, demonstra esta relação e vai mais além. Federici demonstra o quanto a dominação das mulheres, o domínio do Estado sobre nossos corpos, o patriarcado, o racismo e até mesmo a discriminação contra LGBTQIs estão intrinsecamente relacionados com o capitalismo e com a necessidade de dominar a classe trabalhadora, “educá-la” para o trabalho e para a reprodução da força de trabalho.
Buscando desenvolver um olhar marxista e interseccional do feminismo comecei por analisar a obra de Federici, e compartilho aqui algumas impressões pois, como ela mesma afirma, “assim que tiramos a parafernália metafísica da perseguição às bruxas, começamos a reconhecer nela fenômenos que estão muito próximos de nós.” (p. 431)
Degradar para dominar
O capitalismo precisou derrotar a resistência dos camponeses para se consolidar na Europa. Na América, os conquistadores precisaram derrotar a resistência dos nativos e dos escravos. Em ambos os contextos as mulheres eram parte fundamental da resistência. Degradar as mulheres, quebrar sua força na comunidade e submete-las aos interesses do novo modelo econômico era, portanto, um imperativo.
A caça às bruxas cumpriu este papel. Não casualmente a caça às bruxas coincidiu com revoltas urbanas e rurais, com as guerras camponesas contra o cercamento dos campos e a privatização da terra, especialmente na Inglaterra em 1549, 1607, 1628, 1631, mas também com força na França e Alemanha, muitas delas iniciadas e dirigidas por mulheres. Também na América a ideia da bruxaria foi utilizada para quebrar a resistência dos povos originários. Muito tempo depois, em 1871 durante a Comuna de Paris, a burguesia parisiense retomou o mito da bruxaria para demonizar as mulheres communards, acusando-as de querer incendiar Paris. Na definição de Federici, a caça às bruxas foi “uma guerra de classes levada a cabo por outros meios.” (p. 319)
Demonizar e reprimir as mulheres significava intimidar e reprimir todos os insatisfeitos e os que ousavam se revoltar. Os homens que haviam sido expropriados, empobrecidos e criminalizados culpavam as bruxas pela sua desgraça e viam no poder que as mulheres tinham ganhado contra as autoridades uma ameaça que poderia se voltar contra eles. Além disso, estava em jogo a tarefa da reprodução da força de trabalho. O corpo das mulheres não podia mais ser controlado por elas mesmas. Era preciso torna-lo território sob o domínio do Estado. A caça às bruxas cumpriu estas tarefas à custa da vida e da dignidade de centenas de milhares de mulheres.
O fenômeno da caça às bruxas
Nós, mulheres feministas, somos herdeiras das “bruxas” que arderam nas fogueiras, um fenômeno que raramente aparece na história do proletariado ou mesmo na história da luta das mulheres. A maior parte das vítimas foram mulheres camponesas pobres, o que para Federici talvez explique a abordagem acadêmica misógina, que retrata as vitimas como mulheres loucas, desonradas, frustradas e/ou pervertidas.
Foram as autoras, acadêmicas e ativistas feministas que fizeram emergir da clandestinidade esta tragédia, ao se identificarem com as bruxas e as adotarem como símbolo da revolta feminina. “As bruxas sempre foram mulheres que se atreveram a serem corajosas, agressivas, inteligentes, não conformistas, curiosas, independentes, sexualmente liberadas, revolucionárias (..) WITCH vive e ri em cada mulher, ela é parte livre de cada uma nós (…) Você é uma bruxa pela fato de ser mulher, indomável, desvairada, alegre e imortal.”
Durante a caça às bruxas centenas de milhares de mulheres foram massacradas e submetidas às formas mais cruéis de tortura porque significavam um desafio às estruturas de poder. Esta guerra, que começou na Europa e chegou ao mundo todo, foi um momento decisivo na história das mulheres, um ponto determinante no processo de degradação social que as mulheres viveram com a chegada do capitalismo e que, portanto, conforma a misoginia que ainda caracteriza as relações entre homens e mulheres.
Para Federici,
“A caça às bruxas constituiu um dos acontecimentos mais importantes do desenvolvimento da sociedade capitalista e da formação do proletariado moderno. Isto por que o desencadeamento de uma campanha de terror contra as mulheres, não igualada por nenhuma outra perseguição, debilitou a capacidade de resistência do campesinato europeu frente ao ataque lançado pela aristocracia latifundiária e o Estado, em uma época na qual a comunidade camponesa já começa a se desintegrar sob o impacto combinado da privatização da terra, do aumento dos impostos e da extensão do controle estatal sobre todos os aspectos da vida social. A caça às bruxas aprofundou a divisão entre mulheres e homens, inculcou nos homens o medo do poder das mulheres e destruiu um universo de práticas, crenças e sujeitos sociais cuja existência era incompatível com a disciplina do trabalho capitalista, redefinindo assim os principais elementos da reprodução social.” (p. 297-298)
Juristas, magistrados e demonólogos sistematizaram os argumentos e ajudaram a conformar e aperfeiçoar o aparato legal que deu um formato quase padronizado aos julgamentos, com cooperação dos intelectuais de grande prestígio, como Thomas Hobbes, que aprovou a caça as bruxas como forma de controle social, ou Jean Bodin, que insistiu que as bruxas deveriam ser queimadas vivas.
A caçada foi uma iniciativa política de grande importância, o que não minimiza o papel da Igreja Católica, que forneceu o arcabouço metafisico e ideológico, estimulando a perseguição. Mas não foi somente a igreja, pois no apogeu da caça foram cortes seculares que conduziram a maior parte dos julgamentos, e a Inquisição sempre dependeu da cooperação do Estado para levar adiante as execuções. “Se considerarmos o contexto histórico no qual se produziu a caça às bruxas, o gênero e a classe dos acusados, bem como os efeitos da perseguição, podemos concluir que a caça as bruxas na Europa foi um ataque à resistência que as mulheres representaram contra a difusão das relações capitalistas e ao poder que obtiveram em virtude de sua sexualidade, seu controle sobre a reprodução e sua capacidade de curar.” (p. 309-310)
O porquê da demonização das mulheres
Desde a sociedade medieval as mulheres já tentavam controlar sua função reprodutiva. Designadas como “poções para a esterilidade”, são inúmeras as referencias ao uso feminino de contraceptivos e também ao aborto. Até a Alta Idade Média a própria igreja reconhecia que as mulheres tinham o direito de limitar suas gestações por razões econômicas.
Foi a catástrofe demográfica resultante da “peste negra”, que entre 1347 e 1352 dizimou mais de um terço da população europeia, que levou a uma mudança brutal neste cenário, pois o controle das mulheres sobre a reprodução começou a ser visto como uma ameaça à estabilidade econômica e social diante da crise do trabalho provocada pela Peste, ao escassear a mão de obra e aumentar o seu custo.
As terras abundantes e a população pouco numerosa modificaram as relações de poder em prol das classes baixas, fazendo também crescer a vontade das pessoas de romper os laços de dominação feudal pois os camponeses podiam facilmente achar novas terras para trabalhar:
“Até o final do século XIV, a recusa a pagar aluguel e realizar serviços havia se transformado em um fenômeno coletivo. Aldeias inteiras organizaram-se conjuntamente para deixar de pagar multas, os impostos e a talha, deixando de reconhecer a troca de serviços e as determinações dos tribunais senhoriais que eram os principais instrumentos de poder feudal.” (p. 80)
Revoltas estouraram pela Europa como resposta às tentativas do poder feudal de aumentar a exploração do trabalho e “regiões inteiras rebelaram-se, formando assembleias e recrutando exércitos. Algumas vezes, os camponeses se organizaram em bandos, atacaram castelos dos senhores e destruíram os arquivos onde eram mantidos os registros escritos da servidão.” (p.83)
Esta época foi descrita como a “idade de ouro do proletariado europeu”. Os salários eram altos e a comida barata, configurando o século XV como uma época de poder sem precedentes para parte importante do campesinato e dos trabalhadores urbanos da Europa ocidental. “Os servos agora são senhores e os senhores são servos” reclamava John Gower em Mirour de l’Omme (1378) diante da “arrogância” exibida pelos trabalhadores que determinavam quando, quanto e em que condições iriam trabalhar.
“Para o proletariado europeu, isto significou não só a conquista de um nível de vida que não foi igualdo até o século XIX, mas também o desaparecimento da servidão. No fim do século XV as amarras entre os servos e a terra havia praticamente desaparecido.” (p.86)
Uma contrarrevolução entra em marcha então para controlar esta situação insustentável para as classes altas. Conforma-se uma aliança entre a burguesia e a nobreza para derrotar as revoltas, levando “à centralização do Estado como único agente capaz de confrontar a generalização da luta e de preservar as relações de classe.” (p.90) Todas as forças do poder feudal uniram-se para enfrentar as rebeliões. A própria burguesia urbana, que havia por dois séculos lutado por soberania, restituiu o poder à nobreza e deu o primeiro passo na consolidação do Estado absolutista.
Na Baixa Idade Média a economia feudal estava condenada e em resposta a esta crise a classe dominante europeia fez uma ofensiva global que durou três séculos e estabeleceu as bases do sistema capitalista mundial, garantindo a sua apropriação das novas fontes de riqueza e dominando a classe trabalhadora. Esta transição para o capitalismo foi sangrenta, baseada no roubo, na escravização e na conquista, configurando, nas palavras de Silvia Federici e no conceito cunhado por Marx, uma “acumulação primitiva ou originária”.(p.111)
Esta acumulação primitiva, para Federici, não consistiu apenas na expropriação dos meios de subsistência dos trabalhadores europeus e na escravização dos povos da América e África. Ela também consistiu em “uma acumulação de diferenças e divisões dentro da classe trabalhadora, na qual as hierarquias construídas sobre o gênero, assim como sobre a raça e a idade, se tornaram constitutivas da dominação de classe e da formação do proletariado moderno.” (p. 113, grifo da autora)
Os séculos XVI e XVII foram marcados pela privatização da terra e pela mercantilização das relações sociais, mas também por uma intensa resistência. Para Federici é neste contexto que devemos “situar a historia das mulheres e da reprodução na transição do feudalismo para o capitalismo, por que as mudanças que a chegada do capitalismo introduziu na posição social das mulheres – especialmente entre as proletárias, seja na Europa, seja na América – foram impostas basicamente com a finalidade de buscar novas formas de arregimentar e dividir a força de trabalho.” (p. 118)
A caça às bruxas foi parte da estratégia da classe dominante para construir uma nova ordem patriarcal, definida por Federici como “patriarcado do salário”, a fim de disciplinar e expandir o proletariado.
A privatização da terra, através do cercamento dos campos, acabou com o sistema de terras comunais, que era especialmente importante para as mulheres. Tendo menos direitos e menos poder social, as mulheres eram mais dependentes delas para sua subsistência e sociabilidade. Por isso também foram parte importante dos motins e rebeliões, como durante o reinado de James I, na Inglaterra:
“Alguns protestos eram inteiramente femininos. E, 1607, por exemplo, 37 mulheres, lideradas por uma tal “Capitã Dorothy” atacaram mineiros de carvão que trabalhavam naquilo que as mulheres reivindicavam como sendo os campos comuns do vilarejo de Thorpe Moor”(p.130)
Federici explica que
“As mulheres foram as que mais sofreram quando a terra foi perdida e o vilarejo comunitário se desintegrou. Isso se deve, em parte, ao fato de que para elas era muito mais difícil tornarem-se ‘vagabundas’ ou trabalhadoras migrantes, pois uma vida nômade as expunha à violência masculina, especialmente num momento em que a misoginia estava crescendo. As mulheres também tinham a mobilidade reduzida, devido à gravidez e ao cuidado dos filhos (…). As mulheres tampouco podiam se tornar soldados pagos, apesar de algumas terem se unido aos exércitos como cozinheiras, lavadeiras, prostitutas e esposas; porém essa opção também desapareceu no século XVII, à medida que, progressivamente, os exércitos foram sendo regulamentados e as multidões de mulheres que costumavam segui-los foram expulsas dos campos de batalha.”(p. 131-132)
As mulheres, confinadas ao trabalho reprodutivo foram então desvalorizadas, na medida em que a vida se mercantilizava e as relações monetárias começaram a dominar a vida econômica. Nas sociedades baseadas na produção para o uso (não mercantil) havia uma unidade entre a produção e a reprodução. No modelo mercantil e monetário somente a produção para o mercado era considerada uma atividade produtora de valor, e a reprodução do trabalhador deixou de ser considerado um trabalho. Quando realizado fora do lar continuou sendo pago, embora em valores cada vez menores, mas o trabalho doméstico e sua função fundamental na acumulação de capital tornaram-se invisíveis.
Uma derrota histórica
A posição das mulheres na sociedade e na sua relação com os homens foi redefinida em termos de total sujeição e dependência econômica. “Dessa forma, a separação efetuada entre produção de mercadorias e reprodução da força de trabalho também tornou possível o desenvolvimento de um uso especificamente capitalista do salário e dos mercados como meios para acumulação de trabalho não remunerado” (p. 133), e tornou as mulheres ainda mais despossuídas do que os homens, pois praticamente não tinham acesso ao trabalho assalariado. As mulheres foram as mais degradadas neste processo, mas a desvalorização e feminização do trabalho reprodutivo desvalorizou também o seu produto, a própria força de trabalho.
A transição do feudalismo para o capitalismo libertou o capital, permitindo que a terra funcionasse como meio de acumulação e exploração e não mais apenas como meio de subsistência. Ao separar os trabalhadores e seus meios de produção e criar relações monetárias, tornou possível a redução do salário real através do aumento dos preços, pauperizando a classe trabalhadora europeia.
No contexto do século XVI a ideia de que a quantidade de cidadãos determinava a riqueza de uma nação era algo inquestionável e o apoio ao crescimento da população teve seu auge no mercantilismo, em cuja teoria e prática vamos encontrar
“a expressão mais direta dos requisitos da acumulação primitiva e da primeira política capitalista que trata explicitamente do problema da reprodução da força de trabalho. (…) Porém, mesmo antes do auge da teoria mercantilista, na França e na Inglaterra, o Estado adotou um conjunto de medidas pró natalistas, que, combinadas com a assistência pública, formaram o embrião de uma política reprodutiva capitalista. Aprovaram-se leis que bonificavam o casamento e penalizavam o celibato (…). Foi dada uma nova importância à família enquanto instituição chave que assegurava a transmissão da propriedade e a reprodução da força de trabalho. ” (p. 155-156)
Para garantir esta política era preciso quebrar o controle que as mulheres haviam exercido sobre seus corpos e sobre a reprodução. Isto foi feito principalmente através da política de caça às bruxas, que demonizou o controle da natalidade e a sexualidade não reprodutiva, e implementou penas mais severas ao aborto, à contracepção e ao infanticídio. As parteiras foram marginalizadas, pois era necessária uma vigilância estrita às mulheres durante a gravidez e o parto. Assim, os médicos homens passaram a tomar conta dos partos, expulsando o grupo de mulheres que reunia-se em torna da futura mãe e tirando das mulheres o controle sobre este momento.
“Enquanto na Idade Média as mulheres podiam usar métodos contraceptivos e haviam exercido um controle indiscutível sobre o processo de parto, a partir de agora seus úteros se transformaram em território político, controlado pelos homens e pelo Estado: a procriação foi colocada diretamente a serviço da acumulação capitalista.” (p. 163)
Foi negado às mulheres o controle sobre seus corpos, a maternidade foi transformada em uma obrigação e a reprodução tornou-se o lugar de confinamento das mulheres, reduzindo sua situação a de não trabalhadoras.
Até o final do século XVII as mulheres foram expurgadas ou submetidas a severas restrições nas funções que haviam exercido até então. Tinham cada vez mais dificuldade para conseguir empregos que não fossem os mais mal remunerados, como o de empregadas domésticas, vendedoras ambulantes, bordadeiras ou amas de leite. Assim massificou-se também a prostituição, pois sem acesso à terra e com pouco acesso ao trabalho assalariado, para muitas mulheres não restou outra alternativa. Mas, enquanto na Baixa Idade Média a prostituição era vista como um mal necessário e proporcionava altos salários, no século XVI o “clima de intensa misoginia, caracterizado pelo avanço da reforma protestante e pela caça às bruxas, a prostituição foi, inicialmente, sujeita a novas restrições e depois criminalizada.” (p. 170)
A família burguesa cumpriu um papel essencial ao se separar da esfera pública e tornar-se o principal centro para a reprodução da força de trabalho.
“Complemento do mercado, instrumento para a privatização das relações sociais e, sobretudo, para a propagação da disciplina capitalista e da dominação patriarcal, a família surgiu no período de acumulação primitiva também como instituição mais importante para a apropriação e ocultamento do trabalho das mulheres.” (p. 175)
Tanto nas famílias burguesas como nas famílias da classe trabalhadora o marido tornou-se o representante do Estado, por ser o possuidor da propriedade, no caso da burguesia, e por ser o assalariado, no caso da classe trabalhadora. Muito embora em muitos casos a mulher também trabalhasse para o mercado, era o marido quem recebia o salário. Em ambos os casos o homem era o encarregado da dominação sobre os demais membros da família a ele subordinados.
Federici define esta situação da mulher trabalhadora, impossibilitada de ter seu próprio dinheiro e assim objetivamente sujeita aos homens, como “patriarcado do salário”. (p.177)
O ataque contra as mulheres, sua demonização, degradação, vilipendio econômico e moral serviu para justificar a apropriação masculina de seu trabalho e a criminalização do seu controle sobre a reprodução. O extermínio sempre foi uma resposta da classe dominante diante da resistência, e com as mulheres não foi diferente. A caça às bruxas exerceu este papel decisivo na construção da nova função social das mulheres e da degradação de sua identidade social.
Este processo se constituiu em uma derrota histórica para a as mulheres:
“Com sua expulsão dos ofícios e a desvalorização do trabalho reprodutivo, a pobreza foi feminizada e, para colocar em prática a ‘apropriação primitiva’ dos homens sobre o trabalho feminino, foi construída uma nova ordem patriarcal, reduzindo-se as mulheres a uma dupla dependência: de seus empregadores e dos homens. O fato de que as relações de poder desiguais entre mulheres e homens existiam mesmo antes do advento do capitalismo, assim como uma divisão sexual do trabalho discriminatória, não foge a esta avaliação. Isso por que, na Europa pré- capitalista, a subordinação das mulheres aos homens esteve atenuada pelo fato de que elas tinham acesso às terras e a outros bens comuns, enquanto, no novo regime capitalista, as próprias mulheres se tornaram bens comuns, dado que seu trabalho foi definido como um recurso natural, que estava fora da esfera das relações de mercado.” (p. 175)
No final do século XVII, após mais de dois séculos de terrorismo de Estado contra a mulheres durante o qual elas foram retratadas como “seres selvagens, mentalmente débeis, de desejos insaciáveis, rebeldes, insubordinadas e incapazes de se controlarem, o cânone foi revertido. Agora as mulheres eram retratada como seres passivos, assexuados, mais obedientes e morais que os homens, capazes de exercer uma influência positiva sobre eles.” (p. 187-188)
O “disciplinamento do corpo” (Foucault), isto é, “transformar as potencialidades dos indivíduos em força de trabalho” (Federici) foi uma das condições necessárias para o desenvolvimento do capitalismo. Nas regiões da Reforma Protestante da Europa Ocidental durante o século XVI, onde também emerge a burguesia mercantil, surge um novo conceito de pessoa, em meio a uma batalha contra o corpo. Esta pessoa é o indivíduo trabalhador que é marcado pela alienação do seu próprio corpo, sem direito a qualquer forma espontânea de desfrutar a vida e totalmente subordinado a ordens externas. Um ser que vende “livremente” seu trabalho e que entende seu corpo com um capital que será entregue a quem pagar o preço.
Mas este processo não se deu sem resistência. O disciplinamento da mão de obra assalariada ao longo dos séculos XVI e XVII não foi pacífico. Muitos dos trabalhadores e artesãos expropriados não aceitaram o assalariamento convertendo-se em mendigos, vagabundos ou criminosos e muitos preferiram a forca ao assalariamento. Leis e penas mais duras contra esta insubordinação foram implementadas, junto a um regime de verdadeiro terror.
A vis erótica precisava ser transformada em vis lavorativa (p. 282), racionalizando a natureza humana cujos poderes tinham que ser subordinados ao desenvolvimento e formação de mão de obra para o trabalho. Para isso foi necessário condenar e reprimir a sexualidade feminina e também ajustar a vida sexual a esta nova disciplina do trabalho. Por isso também foi “criminalizada qualquer atividade sexual que ameaçasse a procriação, a transmissão da propriedade dentro da família ou que diminuísse o tempo e a energia disponíveis para o trabalho.” (p. 354)
Desta necessidade veio a condenação das formas de sexualidade não “produtivas”: homossexualidade, sexo entre jovens e velhos, sexo entre pessoas de classes diferentes, sexo anal, nudez e danças eróticas, e também a sexualidade pública e coletiva que prevaleceu durante a idade média. (p. 354)
Assim acaba o conceito de corpo que predominou no mundo medieval e nasce uma máquina de trabalho. Erradicar a “bruxaria” era uma condição necessária para a conclusão deste processo. Foi na fogueira e na tortura que se forjaram os novos paradigmas do feminino: submissão, domesticidade e obediência.
A revisitação proposta por Federici à transição do feudalismo para o capitalismo nos permite entender a importância do corpo na compreensão do domínio masculino e na construção do que hoje ainda predomina como a identidade social feminina. A degradação das mulheres e do seu corpo em uma máquina de reprodução foi instrumento fundamental na afirmação do poder patriarcal e da exploração masculina do trabalho das mulheres. Isto coloca a sexualidade e a procriação como pontos fundamentais na história da opressão feminina e o corpo da mulher como um laboratório privilegiado para a implementação das relações de poder de exploração capitalista sobre todos os seres humanos.
A conclusão fundamental de Federici é que “o gênero não deveria ser tratado como uma realidade puramente cultural, mas como uma especificação das relações de classe”(p. 21) e que “o corpo é o lugar de uma alienação fundamental que só pode ser superada com o fim da disciplina-trabalho que o define” (p. 23).
A violência do capitalismo no presente contra outros sujeitos rebeldes, a escravidão sob novas formas, a feminização da pobreza, a violência persistente contra as mulheres, o racismo e as novas formas de acumulação por espoliação demonstram que o sistema precisa desconstituir a natureza daqueles a quem ele explora com maior intensidade, como mulheres, negros e imigrantes, com o propósito de ocultar a contradição entre suas promessas de liberdade e prosperidade e a realidade de opressão, miséria e desigualdade cada vez maiores.
A destruição deste sistema perverso passa pela visibilização desta contradição e por uma luta de dimensão global pela libertação do corpo e da mente de todos os seres humanos, uma luta de classes que seja feminista antirracista, anti-lgbtqifóbica, combinando a luta pelo fim da exploração com as lutas contra todas os tipos de opressão.
Artigo originalmente publicado em casadamaejoana.com.