Dez balizas para um ecossocialismo feminista e revolucionário
Ecossocialismo é vincular a luta pela proteção do meio ambiente à luta pela satisfação das necessidades das pessoas exploradas e oprimidas
Chamamos ecossocialismo ao raciocínio que consiste em vincular a luta pela proteção do meio ambiente à luta pela satisfação das necessidades das pessoas exploradas e oprimidas. Este raciocínio prepara a chegada de uma sociedade socialista democrática, não produtivista, sem dominação nem exploração, respeitosa e prudente em relação ao restante da natureza.
Conceito aberto, o ecossocialismo implica um certo número de interpretações diferentes. Os francófonos provavelmente conhecem o ecossocialismo de J. L. Mélenchon, que é de tendência mais estatista e soberanista. Em alguns países, uma social-democracia de gestão ou dos partidos verdes muito mainstream afirmam atuar com uma perspectiva ecossocialista. Não se pode portanto falar, em geral, do ecossocialismo. As dez balizas propostas abaixo resumem as concepções ecossocialistas da corrente marxista-revolucionária internacional a qual pertenço.
1. Nosso ecossocialismo deriva de quatro declarações:
A necessidade de um programa de transição anticapitalista que considere as limitações ecológicas e aporte respostas à destruição ecológica. Portanto, divergimos das correntes políticas que adiam a proteção e a restauração do entorno ao “dia de amanhã” do pós-capitalismo;
A necessidade de uma estratégia baseada na ação direta, democrática e auto-organizada das pessoas exploradas e oprimidas, numa perspectiva internacionalista e no respeito à autonomia dos movimentos sociais assim como no direito à auto-organização das mulheres e, em geral, das camadas oprimidas;
-a profundíssima crise de sentidos e valores que mina a sociedade capitalista. A dominação do valor abstrato e o patriarcado capitalista são a base de uma inversão entre as necessidades e a produção, entre trabalho vivo e trabalho morto, entre o planeta e o capital. O capital aliena assim ao ser humano de sua natureza de animal social pensante, produzindo consciente e coletivamente sua existência;
-o balanço ecológico catastrófico dos países do “socialismo real”, simbolizado pela catástrofe de Chernobyl, da secagem do Mar de Aral e da campanha maoísta para a eliminação dos pardais na China, para exemplificar.
Nosso ecossocialismo é portanto radicalmente anticapitalista, humanista, internacionalista, feminista e auto-gestionário. Ao mesmo tempo, é estratégia de luta, programa de reivindicações e projeto de sociedade.
2. Nosso ecossocialismo tem uma forte dimensão ética que se inscreve na perspectiva de uma civilização humana digna de tal nome.
Seguimos as pegadas de Marx que considerava que “a natureza é o corpo inorgânico da humanidade”. A destruição da natureza da qual fazemos parte é nossa própria destruição e a de nossos filhos. A expressão “crise ecológica” é, por isso, muito limitada. A situação a qual nos enfrentamos é muito mais que uma crise de funcionamento dos ecossistemas devido à lógica do lucro: é uma crise sistêmica da civilização humana agudizada principalmente por uma crise das relações entre a humanidade e o restante da natureza.
Substituir a produção de valor pela produção de valores de uso determinados democraticamente é uma condição necessário para encerrar isso; mas somente é uma condição necessária. As destruições ecológicas, como a opressão das mulheres, existe desde muito antes do capitalismo, ainda que fosse sob outras formas e em escala local mais do que global. Por outro lado, como foi dito, o “socialismo real” burocrático foi também tão destrutor do entorno como o produtivismo capitalista.
Juntas, estas duas realidades, sublinham a necessidade de um processo de revolução culturar a prosseguir muito mais além da abolição do capitalismo. Trata-se de romper com as visões dominantes e utilitárias, para tentar uma relação com o entorno baseada no cuidado, na prudência e no respeito.
3. O balanço ecologicamente destrutivo da URSS, China e países do Leste deve-se, antes de tudo, à degeneração stalinista burocrática da revolução.
Isso implicou, ao mesmo tempo, a renúncia à revolução mundial e o abandono das experiências e concepções ecológicas mais avançadas que se desenvolveram durantes os primeiros anos do poder soviético. Mas o stalinismo não explica tudo: no final do século XIX e no começo do século XX, o movimento operário e sua ala revolucionária estavam majoritariamente impregnados por uma visão da natureza como matéria a dominar, a modelar sem limites segundo a vontade humana. Esta visão estava presente e dominava também aos oponentes de esquerda ao stalinismo.
4. A emancipação das mulheres requer um movimento autônomo e a construção em seu seio de uma tendência socialista. Da mesma forma, parar a destruição ecológica exige a construção no seio da esquerda de uma corrente ecossocialista que intervenha, por assim dizer, em nome do restante da natureza numa perspectiva anticapitalista, internacionalista e anti-burocrática
Rechaçar a ideia de que esta corrente esteja condenada a pregar no deserto pelo fato de que o Homo sapiens seja destrutivo e insensível por natureza. A humanidade vem causando muitas destruições ecológicas, mas não há nenhuma razão para pensar que a inteligência e a sensibilidade humanas sejam insuficientes para reaprender o que esquecemos, cuidar do nosso entorno, reconstruir o que se possa, inventar uma nova relação com a vida em geral.
5. Nosso ecossocialismo é radicalmente anticapitalista e, consequentemente, marxista.
Encontramos em Marx não só uma crítica insubstituível da lógica do capital, mas também ideias preciosas e frequentemente desconhecidas que nutrem diretamente nossa reflexão ecossocialista. As principais são as seguintes:
-A natureza e o trabalho são as únicas fontes de toda riqueza, a natureza é a fonte principal dos valores de uso;
– A única agricultura racional é a baseada nos agricultores independentes ou na propriedade comunitária do solo (distinta da propriedade estatal dos kholkozes). A única exploração florestal racional é a que foge da busca do lucro “curto-prazista”;
-A busca de rendas (superlucro) estimula a pilhagem dos recursos naturais, minerais e orgânicos, sobretudo a tendência a uma agro-indústria cada vez mais intensiva que esgota os solos, pratica o monocultivo e privilegia a produção de carne;
-O capitalismo se baseia na despossessão. Não há capitalismo sem crescimento e, portanto, sem reprodução ampliada constante, com um duplo movimento: por um lado, apropriação/exploração da força de trabalho contra um salário, e por outro lado, apropriação/pilhagem dos recursos naturais.
– O capital não é uma coisa senão uma relação social de exploração do trabalho que exige inputs em recursos naturais e orientado para a produção de mais-valor. “O único limite do capital é o próprio capital”, dizia Marx: enigmática à primeira vista, a frase significa simplesmente que o capital prosseguirá sua obre de destruição tanto tempo quanto disponha de força de trabalho e de outros recursos naturais para explorar. Por isso, o capital não pode tombar até haver cruzado os limites. Nenhum mecanismo endógeno lhe permite considerar as fronteiras da sustentabilidade (“boundaries”).
– Em consequência, a produção de mais-valor implica necessariamente a ruptura dos equilíbrios na troca material entre a humanidade e o restante da natureza (“metabolic rift”). A acumulação capitalista esgota simultaneamente a terra e a classe trabalhadora. Parar a pilhagem de recursos (a “gestão racional da troca material” sociedade-natureza) exige a abolição da exploração da força de trabalho e a redução do tempo de trabalho.
6. Contudo, a obra de Marx e Engels está sob tensão.
Primeiro, está marcada em certo grau pelas ilusões do progresso e pela perspectiva de um “crescimento ilimitado das forças produtivas”; segundo, seu pensamento deve passar pelo crivo das análises eco-feministas sobre o patriarcado.
Para Marx, como vimos, “o capital esgota as duas únicas fontes de toda riqueza, a terra e o trabalhador”. Nesta citação, “o trabalhador” inclui a trabalhador. Portanto, o trabalho está feminizado. As mulheres assumente gratuitamente a maioria dos trabalhos de reprodução no marco da família, e este trabalho está “invisibilizado” na sociedade capitalista. Marx diz também que “a apropriação privada da Terra, parecerá um dia tão barbára como a apropriação privada de um ser humano por outro”. E, portanto, o capitalismo integrou o patriarcado pré-existente que constituiu uma forma de apropriação de um ser humano por outro. Engels, havia assim assinaldo: “na família, o homem é o burguês, a mulher é o proletário”.
Nosso ecossocialismo desenvolve, portanto, a frase de Marx para integrar explicitamente o trabalho de reprodução. A lógica capitalista que aumenta a exploração do trabalho assalariado e dos recursos tende também a aumentar a opressão patriarcal das mulheres. A apropriação do corpo das mulheres, o trabalho doméstico que prestam gratuitamente e sua discriminação na esfera produtiva, constituem uma forma específica de riqueza pelo capitalismo. Esta forma deve ser evidenciada para que a crítica deste modo de produção seja completa.
7. Nosso ecossocialismo trata de integrar todos estes aspectos.
A opressão das mulheres se combina com a exploração do trabalho assalariado e a pilhagem de recursos, com a ruína dos camponeses independentes e a destruição de comunidades indígenas.
As lutas das mulheres fazem parte da luta de classes, sem se limitar a isso, porque a opressão patriarcal é uma das bases do capitalismo. As lutas ambientais fazem parte da luta de classes, sem se limitar a isso, porque o apetite insaciável do capital para consumir recursos é a inclinação de sua dependência do trabalho vivo que, por um lado, transforma esses recursos em valor, e por outro lado, reproduz no âmbito doméstico, a força de trabalho.
A lutas campesinas e dos povos indígenas fazem parte da luta de classe, sem se limitar a isso, porque a bulimia capitalista implica a apropriação de todos os recursos e a mercantilização de todas as relações e, em consequência, também a proletarização generalizada.
Nosso ecossocialismo é, portanto, não apenas uma aliança anti-produtivas do social e do ambiental; ou seja, aliança social-operária-campesina-povos indígenas, mas que também leva em conta o feminismo no social e no ambiental. Ou seja, eco-feminismo socialista. Esta visão é a base de nossa estratégia ecossocialista de convergência das lutas.
John Bellamy Foster estima que há uma “ecologia de Marx”. Seu livro neste aspecto é claro e acerta os ponteiros em relação ao suposto produtivismo marxista. Mas rechaçamos a apologia. “A ecologia de Marx”, em nossa opinião, é uma obra inacabada. Nosso ecossocialismo visa continuar sua construção, superando os limites e, às vezes, as contradições. Esta visão se estreiteza é indispensável para considerar as novas questões como os “direitos da Mãe Terra”, o sofrimento animal, etc.
8. É uma ilusão crer que um modo de produção baseado na apropriação do corpo das mulheres e na exploração da força de trabalho humana como recurso natural poderia engendrar na maioria da população com uma consciência social respeitosa com os recursos naturaise com a natureza em geral.
Num sistema de produção generalizado de mercadorias, ou seja, de “coisificação” generalizada, a ideologia dominante frente à “natureza” forçosamente é uma ideologia do mercado, que considera o entorno como uma reserva de recursos gratuitos. As lutas ecológicas devem se vincular e se entrelaçar com as lutas econômicas e feministas, a fim de que se transformem em força social de transformação da ordem existente. As questões do trabalho, da produção, da reprodução e do desenvolvimento estão no centro de nosso ecossocialismo. A natureza do Homo sapiens é produzir socialmente sua existência mediante a expressão do trabalho, relação ineludível entre a humanidade e a natureza. Porém a natureza humana só existe em concreto mediante suas formas históricas. A resposta à crise ecológica não consiste em “sair do trabalho”, em “sair do desenvolvimento”, em “sair do consumo”, em “sair do crescimento”, etc., que são abstrações a-históricas. Consiste em sair do trabalho abstrato produtor de valor, portanto sair do modo de desenvolviment capitalista centrado no crescimento dos lucros e do modo de distribuição/consumo que dele se deriva.
9. Rechaçamos a ideia de que “a natureza” sofre da humanidade como uma doença.
A humanidade faz parte da natureza que transforma. Outras espécies transformaram a natureza em profundidade. Mas a transformação do Homo sapiens é distinta: longe de ser “natural”, está determinada historicamente pelas relações sociais de produção. Assim, não há “capacidade de carga” específica da espécie humana. Em função da produtividade do trabalho, a “capacidade de carga” humana variou, por exemplo, desde 8 humanos/km², para a agricultura de “corta e queima”; 25 humanos/km² para os primeiros agricultores sedentários; 100 humanos/km² na agricultura de irrigação do Antigo Egito…
Por outro lado, a história apresenta vários casos em que o progresso da produtividade do trabalho foi ecologicamente positiva (por exemplo, na Europa Ocidental a descoberta do papel das leguminosas como “abono verde” vem freando o desflorestamento). Atualmente, as tecnologias energéticas renováveis supõem um progresso da produtividade cuja extensão generalizada se impõe para evitar a mudança climática rumo a um “planeta estufa”. Mas no marco capitalista produtivista e “adorador do crescimento”, tais tecnologias se somam às energias fósseis em vez substituí-las, e se lençam a serviço do lucro. Razão pela qual não detêm a destruição ambiental.
Assim, fica evidente que o problema não é o progresso geral, mas o que Michael Löwy chama de “progresso destrutivo” do modo capitalista de produção. Esse “progresso” produz sob nossos olhos e cada vez mais rápido uma natureza transformada e empobrecida. Está a ponto de destruir milhões de formas de vida, ameaça a existência de centenas de milhões de pobres, cria o risco de uma queda da humanidade na barbárie, e inclusive poderia, eventualemnte, afinal de contas, ameaçar a espécie humana em seu conjunto.
10. A “autêntica natureza” virgem não existe
Aqueles que pensam que a “autêntica natureza sem Homo sapiens” não têm nenhuma solução para a crise sistêmica. Sua única alternativa lógica consistiria em desejar a desaparição dos humanos (em tal caso, que nos mostrem o exemplo!)… Ante estas concepções misantropas, a cosmogonia dos povos indígenas (a Mãe Terra) constitui uma fonte de inspiraçao. Mas não nos equivoquemos: esta cosmogonia não implica “defender os bens comuns”, que o seriam por natureza. Com efeito, esta noção dos bens comuns implica em contrapartida que certos bens não seriam, naturalmente, comuns. Muito ao contrário, trata-se de afirmar a legitimidade de um processo de construção DO COMUM.
Esse processo de definição democrática do que queremos instituir como comum não está limitado a priori por nenhuma natureza das coisas. Uma sociedade eco-comunista, sem classes, recorda em certos aspectos às chamadas sociedades “primitivas”. Ela instituiria O comum. Contudo será muito diferente, visto o nível de desenvolvimento das forças produtivas. Esta sociedade elaborará um conceito das relações humanidade-natureza que provavelmente lembrará em certos aspectos a dos povos indígenas, mas também será diferente. Um conceito no qual as noções éticas de precaução, de respeito e de responsabilidade, assim como se maravilhar ante a beleza do mundo, se nutrirão permanentemente da apreensão científica, ao mesmo tempo, mais sutil e claramente incompleta. Pois quanto maior o progresso da ciência, mais cresce a consciência do que não foi explicado ainda…
Intervenção de Daniel Tanuro na escola de ecologia do Center for Alternative Researches and Studies (CARES), recentemente inaigurado em Senlis-sur -mer, Ilhas Maurício. Fonte: Fonte: http://www.europe-solidaire.org/spip.php?article46769