Como salvar a democracia?

Dialogando com os cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, autores do best-seller “Como as democracias morrem”, autor aponta, dentro do marco de uma perspectiva política democrático-radical, para possibilidades reconstrutoras.

Isaque Castella 30 jul 2019, 13:17

Pouco tempo atrás, ainda antes de conhecer o trabalho de Levitsky e Ziblatt, desenvolvi em um texto publicado por aqui a ideia de que estaríamos vivendo um processo global de “des-democratização” bastante peculiar. Nesse sentido, a eleição de lideranças extremistas, sobretudo populistas de direita, foi apontada como uma ameaça interna à democracia, proveniente do interior das próprias instituições democráticas. Trata-se do que os professores de Harvard estão se referindo como a ascensão de governantes que, embora respeitem, em grande medida, os regimes constitucionais, acabam por matar a democracia ao violarem regras informais do jogo democrático, a saber, a tolerância mútua e a reserva institucional.

​Para os autores, a “tolerância mútua diz respeito à ideia de que, enquanto nossos rivais jogarem pelas regras institucionais, nós aceitaremos que eles tenham direito igual de existir, competir pelo poder e governar. Podemos divergir, e mesmo não gostar deles nem um pouco, mas os aceitamos como legítimos” (p. 103-104). Nesse ponto, faz-se pertinente salientar os ensinamentos de Chantal Mouffe ao conceber seu modelo agonístico de democracia, calcado na impossibilidade de expurgarmos o conflito como elemento basilar da política. Todavia, os sinais de alerta são ligados quando adversários se tornam inimigos, no sentido de que a subsistência de um lado dependeria da eliminação do outro.

​O caso brasileiro pode ser tomado como exemplar do desrespeito à referida regra. Após uma disputa eleitoral extremamente polarizada em 2014, Dilma Rousseff (PT) venceu democraticamente nas urnas. Em que pese sua incontestável vitória, para além de qualquer concordância ou não com seu projeto político, o rival Aécio Neves (PSDB) se mostrou inconformado com a derrota. Logo tratou de questionar a legitimidade do processo eleitoral brasileiro, um dos mais aplaudidos do mundo. Não bastasse a inquietação gerada por seu comportamento, poucos meses depois o tucano começou a se articular em torno de um possível impeachment de Dilma.

​Reforçando a polarização nas ruas, em níveis nada saudáveis, os adversários da presidenta eleita produziram um clima belicoso. Não demorou para que o processo de impedimento, com bases jurídicas bastante dúbias, se concretizasse. O ódio mobilizado contra o PT pesou mais do que qualquer apelo minimamente racional, e o golpe de Estado se consumou. Contudo, a trama novelesca era ainda mais complexa. Em outra frente, o objetivo político de derrotar o PT nas urnas contou com o apoio nada legal, legítimo e republicano de outro poder e de outras instituições democráticas. Era preciso, nessa lógica, impedir que o principal player para a próxima eleição, o ex-presidente Lula, concorresse novamente à Presidência.

​O que hoje os vazamentos de conversas entre o juiz Moro e procuradores da Operação Lava Jato, divulgados pelo The Intercept, revelam é o que já chamei aqui de maior escândalo democrático-institucional da Nova República. Dúvidas sobre motivações políticas e sobre a fragilidade probatória na condenação criminal do ex-presidente se tornaram ainda mais fortes.Não é possível deixarmos de destacar a rápida ascensão política do magistrado em questão, que se tornou Ministro da Justiça e da Segurança Pública do governo do principal adversário de Lula nas urnas, Jair Messias Bolsonaro (PSL).

​O novo Presidente da República Federativa do Brasil é um caso típico do que os estudiosos estadunidenses consideram como figuras políticas extremistas, que abusam do apelo ao discurso político demagógico e populista. Na campanha, Bolsonaro não mostrou simples discordância em relação às gestões petistas, mas lançou mão de uma estratégia de guerra, na medida em que associou os petistas ou “vermelhos” a todos os tipos de imoralidades, depravações, perversidades e conspirações. Para os apoiadores da nova direita, a esquerda, de uma forma geral, deveria ser banida do país e seguir rumo à Cuba. As notícias falsas foram a principal arma na tentativa de deslegitimação dos oponentes.

​Invertendo as relações de conexão, Bolsonaro trabalhou com a ideia, artificialmente criada por sua narrativa, de que o PT transformaria o Brasil em uma Venezuela, fazendo referências ao regime de Nicolás Maduro no país vizinho. Entretanto, como mostram Levitsky e Ziblatt, o regime venezuelano, também com fortes desvios e inclinações pouco democráticas, se aproxima mais de Bolsonaro do que das lideranças petistas.

​A segunda regra básica do jogo democrático é o que os professores chamam de reserva institucional, que “pode ser compreendida como o ato de evitar ações que, embora respeitem a letra da lei, violam claramente o seu espírito” (p. 107). Assim, é possível dizermos deprocessos de impeachment contemporâneos como o brasileiro e, ampliando-se a ideia, das reformas constitucionais que ferem o espírito da Constituição vigente. O que está colocada hoje é uma disputa sobre o paradigma de Estado brasileiro. Embora estejamos sob a égide do Estado democrático de direito, que preconiza o alargamento das fronteiras da cidadania com a progressividade dos direitos sociais, a prática demonstra um movimento de cunho neoliberal com vistas a promover o retrocesso em matéria de proteção social. O desmonte de qualquer perspectiva de Welfare State é uma realidade global no atual estágio de desenvolvimento do modo de produção e sociabilidade capitalista. Penso que a Reforma Previdenciária, em trâmite no Congresso Nacional, é, nesse sentido, um golpe de Estado.

​Uma série de sintomas, no bojo de um contexto de primavera global antissistêmica após a crise econômica de 2008, têm apontado para a crise do modelo de democracia liberal, cujas duas principais regras informais foram ressaltadas. O déficit de legitimidade dos representantes políticos, sinalizado pela onda de protestos em várias partes do mundo, é um deles. Assim foi em Junho de 2013 no Brasil, nas ocupações públicas nos Estados Unidos e no movimento difuso de Los Indignados, na Espanha.

​Se, por um lado, dita crise abre espaço para o retrocesso democrático, materializado na ascensão de figuras de extrema-direita ao poder, munidas de um discurso fortemente antissistêmico, por outro, também pode culminar no alargamento das fronteiras democráticas. Me parece que o segundo caminho representa hoje a possibilidade real de salvarmos a democracia. Todavia, essa alternativa não está dada e precisa ser, por óbvio, construída a partir de uma série de providências.

​Em diálogo com Levitsky e Ziblatt, creio que o primeiro passo é a formação de amplas coalizações democráticas para a execução de uma oposição firme e civilizada diante do projeto de barbárie dos extremistas. Nesse momento, infelizmente precisaremos estar lado a lado com rivais de outrora e tentar minimizar nossas diferenças, que continuam existindo. Concomitantemente a esse processo, os campos progressista e conservador precisam se reorganizar, marginalizando qualquer extremismo.

​Do lado progressista, ao qual me filio, é fundamental que articulemos alianças entre várias lutas democráticas, das quais destaco a da negritude, as das minorias sexuais e de gênero, dos setores ecologistas, dos trabalhadores do campo e da cidade, dos imigrantes, de artistas e representantes da cultura, dentre outros. Assim, poderemos construir uma nova maioria social, na luta hegemônica, para preservar as conquistas e radicalizar os pilares da democracia liberal, a saber, a liberdade e a igualdade. Precisamos, contudo, apresentar um programa contundente e radicalmente democrático, que, ao invés de apostar, como fez erradamente o PT, em políticas assistencialistas voltadas a determinados segmentos sociais, propõe uma agenda social universalista, com pretensão de garantir um Estado protetivo forte, com políticas redistributivas de alta intensidade. Um ponto de partida é talvez pensarmos em uma renda básica universal ou renda básica de cidadania. Tudo isso faz parte do que hoje poderíamos chamar de socialismo democrático, engajado com demandas de redistribuição e reconhecimento cultural, simbólico, jurídico-político.

​Atacar a desigualdade social é uma condição fundamental para minimizar a ultra polarização política destrutiva e estabelecer as bases de uma sociedade disposta a se comprometer com um modelo de convivência mais efetivo. Ao mesmo tempo, faz-se necessário a ampliação dos canais de participação democrática e o avanço rumo a umademocracia direta e digital.

​Em suma, proponho que o campo da esquerda retorne à luta hegemônica, nos termos de Chantal Mouffe e Ernesto Laclau, na construção de uma nova identidade coletiva para defender os direitos e radicalizar a tradição libertária em torno de um modelo forte e materialmente igualitário. Que possamos construir um país (e um mundo) feminista das e dos 99%, multiétnico e diverso, em que ninguém fique para trás!


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