O fim de ciclo

Em entrevista, a filósofa e ensaísta argentina analisa o desempenho de governos progressistas latino-americanos da última década e meia e o recente giro conservador na região.

Maristella Svampa 25 jul 2017, 12:25

Em “Del cambio de época al fin de ciclo”, a filósofa e ensaísta Maristella Svampa analisa os déficits e acertos dos governos progressistas, que se iniciaram na América Latina há mais de uma década para compensar as sequelas do neoliberalismo e estimularam políticas como a ampliação de direitos sociais e o crescimento do papel do Estado, que hoje são atacadas pelo giro conservador que domina a região.

Durante 2003 e 2006, enquanto na Europa e nos Estados Unidos se expandia o desconforto causado pela volta da xenofobia e das desigualdades sociais, a expectativa política esteve depositada nas forças progressistas que governaram o continente impulsionadas pelo boom no preço de commodities como a soja e os minerais, o que permitiu aumentar os gastos sociais e facilitou as trocas regionais.

Ao longo da década, o capital político destas gestões foi desfazendo-se à medida que suas conquistas se desmanchavam: o modelo extrativista — centrado na mineração e expansão da matriz petroleira — foi inibido por suas ameaças ao meio ambiente, o crescimento econômico desacelerou ou interrompeu-se, a corrupção veio à tona e, eventualmente, o personalismo de alguns líderes marcou uma mudança no sentido do populismo.

“Houve um esgotamento político do progressismo, lógico depois de tantos anos de hegemonia, um cansaço em relação à narrativa tão polarizadora e exagerada no social, político e econômico, que gerou feridas profundas em nossas sociedades que estão longe de cicatrizar” — destaca Svampa a Télam — “E com a chegada de governos de direita, a polarização não cessou.”

Río Negro — Na Argentina estamos diante de uma nova versão do neoliberalismo?

Maristella Svampa — Poderia-se dizer que não há uma volta linear ao neoliberalismo noventista, mas sim uma atualização, na qual se mesclam políticas clássicas de ajuste, de transferência direta de ingressos aos setores mais concentrados, com eixos próprios de um conservadorismo social e territorial, orientado para os mais excluídos, como o aumento do abono por filho [bolsa mensal para filho(s)] ou dos planos sociais para as organizações piqueteiras. Por outro lado, os níveis de conflito são muito altos e não há indícios de que vá instalar-se um consenso neoliberal como nos anos 90. Existem amplos setores subalternos que reagem a estas políticas reafirmando uma determinada linguagem de direitos, que está muito ligada ao novo ciclo de mobilização social que se abre em 2001-2002 e se reconfigura logo durante o kirchnerismo. Nesse sentido, a sociedade não é a mesma que a dos anos 90.

RN — Por que em alguns dos governos de tendência progressista que ocorreram concomitantemente na América Latina foi extinta a pretensão transversal ou de integração de minorias?

Os populismos são fenômenos políticos complexos e contraditórios: por um lado, estabelecem uma política de inclusão e de direitos dos setores excluídos; por outro lado, estabelecem fronteiras maniqueístas e pretendem ser os únicos representantes da vontade popular. Em todo caso, os populismos foram excluindo aquelas outras narrativas de recorte emancipatório que os incomodavam. Outro traço comum é seu caráter contraditório, porque ainda que desenvolvam uma retórica de confronto, terminam negociando com o grande capital. O consenso populista, inclusive na versão transformista que Lula encarnou no Brasil, buscava incluir os setores baixos e médios através do consumo, enquanto satisfazia os interesses das grandes corporações empresariais.

RN — O extrativismo foi uma característica destes governos latino-americanos. Como o panorama se reconfigurou agora que as commodities não geram a mesma rentabilidade e vantagens?

A baixa nos preços das commodities não quer dizer que tenhamos saído do Consenso das Commodities forjado. Todos os países latino americanos multiplicaram os projetos extrativistas para cobrir o déficit comercial, ampliando os limites hidrocarbônicos, mineiros e de agronegócios. Isso trouxe uma maior dependência com relação à China, com quem vêm se consolidando uma relação de troca cada vez mais assimétrica. Mais extrativismo, menos democracia.

RN — Você defende que onde há atividades extrativistas, caracterizadas pela masculinização dos territórios, se intensificam as desigualdades de gênero. Como você explica que quanto mais visibilidade têm as reivindicações para melhorar a situação das mulheres, mais se intensifica a opressão sexista e os obstáculos para decidir sobre o próprio corpo?

Acredito que o aumento da violência de gênero, com extremos de crueldade dementes, está ligado ao questionamento cada vez maior do patriarcado, e consequentemente, à reconfiguração acelerada que as relações de gênero experimentaram nas últimas décadas. Quanto maior a afirmação de autonomia por parte da mulher, em um cenário de crise e de colapso do modelo tradicional de construção da masculinidade, maior é a violência de gênero. No movimento “Ni una menos” encontramos muitas mulheres jovens, que pensam as relações de gênero a partir de um lugar diferente do da sociedade tradicional e da heteronormatividade, a partir da igualdade. Mas os obstáculos em temas como o aborto falam do peso que as diferentes igrejas têm na América Latina e a pouca vontade política que houve por parte dos governos progressistas. Na região houve várias presidentas mulheres, mas isso não se traduziu em uma discussão sobre o tema do aborto.

RN — A relação entre o progressismo latino americano e as questões ambientais também tem sido problemática. No caso da Argentina a política condescendente com a ação de multinacionais como a Barrick Gold ou a Monsanto se explica pela reativação econômica que implicariam suas atividades no país?

Muitas esquerdas latino-americanas continuam lendo o conflito social a partir da contradição capital-trabalho, deixando de lado as contradições entre capital e natureza, que impulsiona o capitalismo atual, o qual avança sobre os territórios exigindo mais matérias primas e energia. Não estão vendo que as lutas anticapitalistas do século XXI estão aí, na resistência à expropriação dos territórios, na defesa básica da vida e de sua reprodução. As esquerdas tiveram uma visão de desenvolvimento ligada ao produtivismo e à visão “eldoradista” que atravessa a história colonial da América Latina. Por conta desta visão mágica do desenvolvimento, a Argentina segue pensando, por exemplo, que pode vir a ser a Arábia Saudita do Sul explorando o gás não convencional e rechaça qualquer tipo de questionamento sócio-ambiental. Pode-se ver Cristina Kirchner e Mauricio Macri lado a lado na defesa do extrativismo, ainda que o façam de formas diferentes.

(Texto originalmente publicado pelo site Rio Negro. Tradução de Charles Rosa)


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